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Visibilidade trans: por que (ainda) precisamos de um dia para falar o óbvio?

Ano após ano, o Dia Nacional da Visibilidade Trans enseja a publicação de dados alarmantes sobre a violência contra a pessoa travesti ou transexual. Em 2020, ano do último relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), a situação se agravou ainda mais: foram 175 assassinatos reportados, um aumento de mais de 40% em relação ao ano anterior. Já em janeiro de 2021, a transfobia segue fazendo vítimas, cada vez mais jovens – a menina Keron Ravach, de apenas 13 anos, foi morta por espancamento no Ceará, e seu nome precisa ser lembrado para que não seja apenas um número na grossa lista de vidas perdidas.

Isso mostra como a transfobia pode se apresentar desde a infância. E, especialmente quando se trata de crianças, a informação e quebra de tabus é fundamental para o desenvolvimento saudável da identidade de gênero. “A angústia em não poder se expressar, em não poder pertencer ao seu gênero pode desenvolver vários transtornos, tais como depressão, transtorno de ansiedade, além de tentativas de suicídio, entre outros. O sofrimento é de fora para dentro, pois a sociedade impõe como deve ser”, explica a Psicóloga Wilsali Pallu Hobmeir (CRP-08/23160), que atende este público em consultório. “Eles já vivem o conflito por não se sentirem aceitos, pois são diferentes do que as pessoas esperam que sejam. Sendo assim, um conflito interno, mais a pressão social, só pode resultar em sofrimento. É só imaginar como seria ter que representar um gênero onde não nos reconhecemos”, complementa.

Leia também: Esta foi a história vivenciada por Agatha, uma menina que hoje tem 5 anos de idade e vive plenamente seu gênero feminino, dentro do que se deve esperar de uma criança de sua idade. A história de sua transição social é contada no livro “Minha criança trans? Relato de uma mãe ao descobrir que o amor não tem gênero” (e também no Instagram @minhacriancatrans). Confira em Minha criança trans: a jornada de (re)descoberta de uma família, na página 6 da Revista Contato Janeiro/Fevereiro 2021

A transexualidade na infância é ainda mais envolta em dogmas do que quando manifestada na vida adulta, pois muitas pessoas sentem receios sobre os impactos físicos e psicológicos que a transição pode causar. Wilsali, no entanto, destaca que os tratamentos com hormônios e cirurgias jamais são aplicados em pacientes menores de 16 anos. “Existe só uma transição social e não corporal. Em relação aos bloqueadores, é importante que ocorra no início da puberdade, para evitar o desenvolvimento de caracteres que causam sofrimento na pessoa”, explica. Já a transição social – nome, roupas e brinquedos, por exemplo – não tem idade certa para acontecer e deve ser realizada no ritmo ditado pela criança, e não da família.

O acompanhamento psicológico se faz necessário durante todo o processo, uma vez que as formas como as crianças ou adolescentes expressam a transexualidade é bastante diferente dos adultos. “O adulto expressa na fala o que incomoda. A criança sente e é mais livre no agir. Dentro do consultório fazemos o acolhimento e observação da demanda que a criança vai mostrar, na maioria das vezes dentro de um processo lúdico, mas é preciso entender que a criança pode falar e expressar de forma muito clara como se sente a respeito. Tudo vai depender da subjetividade, construção de cada uma, umas mais tímidas, outras mais abertas”, comenta a Psicóloga. Neste sentido, é fundamental que o trabalho seja baseado em respeito, escuta, empatia e observação. “Temos que dar voz aos nossos pequenos e desconstruir a crença de que uma criança não sabe se expressar.”

Por fim, não é apenas a criança que precisa de acolhimento. Muitas mães, pais e responsáveis se deparam com inseguranças, desinformação e preconceitos. Wilsali busca em suas experiências profissionais referências para referendar a importância deste acolhimento: “Acolhemos esta família dentro das dificuldades que ela enfrenta e ainda vai enfrentar, pois sabemos que a sociedade ainda não está preparada para lidar com situação, principalmente envolvendo crianças e adolescentes. Uma vez ouvi uma mãe falar ‘Quando nosso filho é trans, a família toda passa pela transição’, acho que é isso mesmo. A família vai precisar de todo apoio que busca para, da mesma forma, apoiar estes filhos ou familiar. Quando existe um acolhimento dentro da família, a chance de uma transição saudável, física e psicológica, é um fato”.

Para além de todas as dúvidas comuns às famílias – como realizar a transição, como informar à escola, entre outras – há ainda um medo mais evidente que as ronda: o medo da violência, aquela que matou 175 pessoas trans só em 2020 no Brasil (país que segue na liderança desse tipo de violência). “Quando recebemos uma família em consultório com angústia porque não sabem o que fazer com a informação que receberam, o fato é que a primeira pergunta é: ‘Onde erramos?’ Outra é: ‘Como vamos proteger?’ Essa sociedade mata por preconceito, de uma forma ou de outra”, constata a profissional.

“(...) o aumento da violência denuncia o reflexo da perseguição de setores conservadores do Estado às pautas pró-LGBTI e a campanha de ódio contra o que eles chamam de “ideologia de gênero”, que é um nítido ataque à existência das pessoas trans. Além disso, também é preocupante a associação de grupos anti-trans que têm se organizado em uma agenda global para impedir a conquista de novos direitos, cassar direitos conquistados e avançar com a manutenção do cissexismo. O cissexismo pode ser compreendido como a organização cistemática de ações, noções discriminatórias e inferiorizantes de maneira institucional e/ou individual contra pessoas trans. A sua finalidade é afirmar que travestis, mulheres e homens trans, pessoas transmasculinas e demais pessoas trans são seres inferiores, que deveriam ocupar um lugar subalterno na sociedade. É uma instituição social que legitima e reconhece unicamente as identidades cisgêneras em detrimento das identidades transgêneras, através da sub-representação e invisibilidade, a fim de assegurar o status quo das identidades cis como o padrão hegemônico de ser e existir na sociedade.”

Falta de atendimento clínico e outras violências

Curitiba conta, desde 2014, com um ambulatório especializado no atendimento de pessoas transexuais e travestis: o CPATT – Centro de Pesquisa e Atendimento a Travestis e Transexuais (em tempo: o CPATT atende apenas o público adulto; para crianças e adolescentes, há um projeto ainda não operacionalizado na capital).

Uma equipe multidisciplinar, composta por profissionais da Psicologia, Medicina, Enfermagem e Serviço Social, recebe desde então esta população no sistema portas abertas. No entanto, de lá para cá, houve mudanças, nem sempre para melhor. A melhor organização e o aumento da equipe de Psicologia são destaques feitos pela Psicóloga Esther Siza Tribuzy (CRP-08/11449), que atua no equipamento. No entanto, ela pontua que o número de Médicas(os) diminuiu e o Serviço Social deixou de existir. A pandemia, como em muitas outras instâncias, escancarou ainda mais algumas destas vulnerabilidades.

“A gente lida com situações de pessoas sem recurso nenhum. Então, essa possibilidade da internet [para atendimento] é uma possibilidade quando a gente tem a vida mínima preservada, garantida, assegurada. Mas a gente tem pessoas sem essa condição mínima”, conta, lembrando de pacientes que iam aos atendimentos a pé e sem alimentação (antes da pandemia), e que com o distanciamento social até mesmo perdeu contato em alguns casos. “Eu falei que fazia falta o Serviço Social e faz mesmo, muita falta, até para a gente acionar outros recursos da rede. A pandemia nos mostrou que nós precisamos providenciar o mínimo de uma vida decente para muitas pessoas. É muito triste não conseguir minimizar o sofrimento deste abismo social.”

A fila de espera no serviço também é grande e as equipes não dão conta de atender a todas as pessoas – até por conta da complexidade dos acompanhamentos, que são longos – e o que resta muitas vezes é realizar o encaminhamento a outros serviços (como a Psiquiatria, quando necessário, já que esta especialidade não está disponível no CPATT).

Além disso, algumas cirurgias de redesignação sexual ainda não são realizadas pelo Hospital de Clínicas (HC), mesmo após diversas articulações e compromissos assinados. Esther destaca que, uma vez que estes procedimentos comecem a ser realizados, é fundamental que pacientes do CPATT sejam priorizados, tendo em vista que realizam acompanhamento há muitos anos e muitos já contam com condições emocionais para se submeter aos processos, mas não com recursos para procurar a rede particular. “A gente precisa de uma parceria entre os serviços dos SUS. Nós não temos um processo transexualizador integrado no SUS no Brasil, uma fila única, que poderíamos ter, já que todos os serviços são habilitados pelo Ministério da Saúde. Os pacientes de São Paulo conseguem fazer cirurgia, enquanto os nossos não”, finaliza.

A política de morte do Estado

Segundo o Dossiê Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2020, há uma política de morte perpetrada pelo Estado, “apresentando-se como ferramentas para a manutenção da violência no cenário que vemos anualmente ser apresentado e que precisam ser enfrentados”. Alguns fatores que contribuem para este cenário, de acordo com a Antra, são:

  • Proibição das discussões sobre gênero, sexualidade e diversidade nas escolas;
  • Interferência no Estado de uma ideologia religiosa em detrimento do Estado laico;
  • Disseminação de uma política institucional anti-trans através da narrativa falaciosa de uma suposta “ideologia de gênero”;
  • Alinhamento de grupos anti-trans nas esferas públicas e institucionais;
  • Falta de campanhas de educação/prevenção da violência transfóbica;
  • Ausência de projetos, ações e campanhas sobre educação e empregabilidade para a população trans;
  • Dificuldade no acesso ou negação de atendimento de pessoas travestis e mulheres transexuais nas Delegacias da Mulher e demais aparelhos de proteção às vítimas de violência doméstica;
  • Ausência de dados populacionais e estatísticos sobre a população LGBTI;
  • Dificuldade no acesso à saúde, especialmente no acesso aos procedimentos previstos no processo transexualizador e cuidados com a saúde mental;
  • Ausência de casas-abrigo para LGBTI+ que são expulsos de casa, em retorno de migração forçada ou tráfico de pessoas, perseguidos politicamente, em situação de rua ou que, por algum outro motivo, não tenha acesso a moradia/local para viver.
  • Omissão frente às violações de direitos humanos e a necessidade de mapeamento, acompanhamento e controle quantitativo sobre a população trans privada de liberdade;
  • Ausência de campos ou informações sobre nome social e identidade de gênero das vítimas no registro das ocorrências;
  • Dificuldade no entendimento e na correta aplicação da decisão do STF que reconheceu a LGBTIfobia como crime de racismo nos termos da lei nº 7716/89; e
  • Não reconhecimento e garantia da proteção através da Lei Maria da Penha ou a tipificação das mortes como feminicídio.

             

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