A violência doméstica tende a se ampliar durante períodos de crise, sejam essas econômicas e/ou políticas, e de distanciamento social como a que temos vivenciado em função da pandemia de Covid-19, causada por um novo coronavírus. O aumento é representado por indícios e números divulgados em todos os países gravemente afetados por esta crise. A preocupação também aparece em um documento elaborado pela Organização das Nações Unidas que avaliou os impactos da pandemia a partir das dimensões de gênero.
No Brasil, país onde a violência contra as mulheres já registrava números extremamente elevados antes da crise, agora tem dados alarmantes. Segundo divulgou a Agência Brasil, órgão de comunicação pública ligado ao governo federal, casos de violência doméstica cresceram 50% no Rio de Janeiro durante o período de distanciamento social até o momento.
Em Curitiba, afirma o Instituto Patrícia Galvão, as delegacias de plantão também tiveram aumento no número de casos de violência doméstica no primeiro fim de semana de confinamento. Para combater o efeito, a Prefeitura do Município lançou no final de março uma campanha para divulgar os canais de denúncia e auxílio que podem ser acessados por mulheres.
Já o Paraná como um todo parece estar na contramão dessa tendência. Segundo informações divulgadas pela Secretaria de Segurança Pública no último dia 25 de março, o número de boletins de ocorrência relacionados à violência doméstica apontou redução de 40%. Apesar de a uma primeira vista parecer positivo, o dado pode trazer uma preocupação, apontada também pelo Instituto Patrícia Galvão: as mulheres podem estar enfrentando dificuldades para denunciar a violência uma vez que não encontram oportunidade para sair e podem não estar acessando os canais de atendimento remoto.
O instituto reforça, portanto, a importância da divulgação dos canais remotos e da atenção e suporte prestados por profissionais de saúde nesse momento, com o acolhimento e oferta de informações às mulheres em situação de violência doméstica.
Mudança na legislação impacta a Psicologia
Entre as e os profissionais que realizam esse acolhimento e atendem as mulheres em situação de violência estão as(os) Psicólogas(os). Até fevereiro, a conduta para esse atendimento estava totalmente prevista pela Nota Técnica de Orientação Profissional em Casos de Violência contra a Mulher, do Conselho Federal de Psicologia (CFP). No entanto, em março deste ano uma mudança na Legislação por meio da Lei 13.931/2019 passou a obrigar profissionais de saúde a denunciar casos de indícios ou confirmados de violência contra as mulheres à autoridade policial no prazo de 24 horas. A denúncia, obriga a legislação, deve ocorrer mesmo quando essa não é a vontade da pessoa atendida.
Essa é uma mudança que merece a reflexão e o debate no contexto da atuação de Psicólogas(os). Embora a comunicação dos casos já estivesse presente anteriormente como uma exceção ao dever de sigilo de profissionais de Psicologia, ela poderia ocorrer de duas formas diferentes: a primeira por meio da notificação – obrigatória em todos os casos – não configurando quebra de sigilo, pois era realizada exclusivamente aos órgãos de saúde por meio do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). O segundo caso previsto era a denúncia, realizada à autoridade policial sempre visando o menor risco às mulheres atendidas – a fim de preservar-lhes a vida e de seus familiares – e com seu conhecimento prévio.
Com a mudança, a legislação federal passa a obrigar a denúncia. A questão, no entanto, é se essa denúncia por si será capaz de auxiliar a mulher atendida a superar a situação de violência ou poderá agravar ainda mais esse cenário. Da perspectiva da Psicologia é importante considerar como a questão da violência doméstica está implicada na vida dessa mulher e se é possível auxiliá-la a construir e compreender uma vida sem violência a partir de um desrespeito à própria autonomia, ou seja, igualmente uma violência simbólica.
Desta forma, denunciar o caso à polícia à revelia dessa mulher não implicaria em reduzir sua capacidade de decidir sobre a própria vida? De forma alguma defende-se deixar impune a violência ou restringir o atendimento de mulheres no sistema de garantia de direitos ou às medidas protetivas disponíveis. Pelo contrário, significa tomar condutas para que ela possa acessar esses serviços com planejamento, autonomia e previsão de suas consequências.
É preciso considerar também que, em geral, dada a dificuldade do Estado em oferecer medidas de proteção suficientes e capazes de evitar a escalada da violência, notificações sem consentimento pode levar a um agravamento das agressões após a denúncia – com risco de feminicídio – antes que outras medidas de proteção possam ser tomadas. Importante mensurar também que muitas mulheres podem deixar de procurar o atendimento em serviços de saúde em função dessa mudança, exatamente pela possibilidade de uma denúncia sem sua anuência ou que possa colocá-la em maior risco no curto prazo.
Há ainda que se pensar em situações nas quais a violência possa recair exatamente sobre os denunciantes, sobretudo em comunidades menores onde não será difícil inferir e atribuir a profissionais de saúde a origem de denúncias como estas. Mais do que isso, quais serão então os reflexos para a compreensão da população de que no trabalho de Psicólogas(os) outros temas sejam mantidos em sigilo? A Psicologia está ainda em construção no imaginário popular, mas um dos valores mais reconhecidos têm sido exatamente o da garantia de que os temas íntimos e mais dolorosos sejam mantidos em segredo e trabalhados internamente, respeitando desejos e possibilidades das usuárias dos serviços.
No momento, o CRP-PR como autarquia federal tem o dever de comunicar às(aos) Psicólogas(os) a mudança na legislação. Mas, ao mesmo tempo, convida a categoria a participar e aprofundar essa discussão, possibilitando a ampliação do diálogo e a compreensão de quais medidas são necessárias para preservar a vida e a autonomia das mulheres, garantindo o cumprimento do Código de Ética.
Nova lei inviabiliza Nota Técnica do CFP
Como ficou:
A partir de 9 de março de 2020, um dia após o Dia Internacional da Mulher, passou a vigorar a Lei Federal nº 13.931/2019, que versa sobre a notificação compulsória, em todo território nacional, para casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados. Esta lei estabelece, em seu Art. 1º, § 4º que os casos em que houver indício ou confirmação de violência contra a mulher serão obrigatoriamente comunicados à autoridade policial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, para providências cabíveis e fins estatísticos.
Como era antes:
A notificação compulsória era regida anteriormente pela Lei Federal nº 10.778/2003, que foi alterada pela Lei nº 13.931/2019. Na legislação revogada, a finalidade da notificação era apenas epidemiológica e seguia um processo interno no âmbito da Saúde Pública, com a finalidade de fundamentar a construção de políticas públicas mais eficazes. Neste cenário, a identificação da vítima restava protegida, posto que esta informação permanecia restrita aos órgãos públicos de saúde. Somente em caso de risco à comunidade ou à vítima, previa-se a obrigatoriedade de comunicação externa (denúncia), que deveria acontecer com conhecimento prévio da vítima ou responsável.
Em dezembro de 2016, foi publicada pelo Conselho Federal de Psicologia a Nota Técnica de orientação profissional em casos de violência contra a mulher. Dentre outras orientações, este documento estabelecia as diferenças entre a notificação compulsória e a comunicação externa, indicando os casos em que cada um dos procedimentos deve ser adotado pela (o) psicóloga (o).
De acordo com a Nota Técnica, seria obrigatória a notificação de todos os casos de violência contra a mulher atendidos pelas (os) psicólogas (os), conforme dispõe a Lei Federal nº 10.778/2003. Contudo, a comunicação externa (quebra de sigilo – com ou sem o consentimento da mulher) só era indicada em situações em que a vida da mulher corria sério risco ou ainda a de seus filhos ou de pessoas próximas. Nos demais casos, a atuação da (do) psicóloga (o) deveria ter como objetivo o fortalecimento do protagonismo da mulher, oferecendo ferramentas para sua autonomia na tomada de decisões.
Próximos desafios:
O Conselho Federal de Psicologia compreende que a comunicação externa baseada em indícios de violência, como proposta pela nova lei, vulnerabiliza ainda mais as mulheres, podendo aumentar o risco de novas agressões ao invés de preveni-las. Entende-se que a nova regra contraria o interesse público ao determinar a identificação da vítima, mesmo sem o seu consentimento e ainda que não haja risco de morte.
Neste sentido, o que está disposto na Lei nº 13.931/2019 se contrapõe às orientações dos Conselhos Regionais de Psicologia em relação à temática (sintetizadas na Nota Técnica citada acima). Contudo, diante da vigência da Lei nº 13.931/2019 a partir do dia 09 de março, cumpre ao Conselho informar a categoria de que qualquer normativa infralegal, como resoluções ou notas técnicas, fica revogada naquilo em que contraria a Lei superveniente. Ou seja, neste momento devem ser respeitadas as disposições da Lei nº 13.931/2019, muito embora o Sistema Conselhos se contraponha aos procedimentos que esta normativa estabelece.
Por fim, cabe informar que o tema está em discussão no âmbito dos Conselhos Regionais, incluindo o CRP-PR, bem como por meio do Grupo de Trabalho (GT) Políticas para Mulheres, do Conselho Federal de Psicologia, a fim de aprimorar e contra-argumentar, possibilitando, assim que possível a rediscussão e reorientação da legislação, que pode colocar as mulheres em risco ainda maior.