O Brasil se comprometeu perante a comunidade internacional com a erradicação do trabalho infantil. Segundo o compromisso, a partir deste ano, 2020, nenhuma criança ou adolescente estaria sujeita às piores formas – mais insalubres e perigosas – de trabalho infantil. E, até 2025, essa faixa etária estaria livre de qualquer tipo de trabalho que pudesse afetar seu desenvolvimento, saúde e integridade.
Os dois compromissos estão longe de serem cumpridos e, ao que parece, o maior “passo” dado nesse sentido é a ausência de informações sobre esse tipo de desrespeito aos direitos humanos: há dois anos não são divulgadas atualizações dos dados acerca do trabalho infantil. O último dado disponível – da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PnadC) realizada em 2016 – mostra que havia 2,4 milhões de crianças e adolescentes de cinco a 17 anos em situação de trabalho infantil. O número representava 6% da população (40,1 milhões) nesta faixa etária na época.
E, mesmo esse número, não passou sem polêmicas. O IBGE havia deixado de computar o trabalho de crianças que “produção para próprio consumo” e “construção para próprio uso, reduzindo em mais de 700 mil pessoas o total oficial. Instituições, pesquisadores e defensores dos direitos humanos alertaram para a redução com base em um critério que escapa o entendimento internacional sobre o tema. Em sua defesa, o IBGE informou à época que a nova metodologia não ocultava dados, estava apenas realizando registros separados entre as ocupações registrando separado conforme diretrizes internacionais para aprofundar as possibilidades de investigações acerca da temática.
Subnotificação
Mas, mesmo os dados oficiais podem estar notificados. Os dados da PNAD são declarativos, ou seja, dependem de quem responde ao pesquisador e dados sobre o trabalho infantil podem não ser informados corretamente. Outra fonte de informação são as notificações obrigatórias no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), mas, mesmo assim, dependem geralmente de denúncias, o que não representa um retrato fiel da realidade.
De acordo com a conselheira do Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR), Priscila Soares Pereira do Nascimento (CRP-08/12303), que é trabalhadora do SUAS, muitas crianças e adolescentes estão ocupadas em atividades perigosas como o tráfico de drogas ou sofrem exploração sexual e esses dados não estão devidamente computados. ” Muitas destas questões são analisadas a partir de uma perspectiva moral e racista, que não considera a violência do Estado enquanto contribuição significativa para a exposição de crianças e adolescentes ao trabalho exploratório. Se utilizar desta leitura é afastar possibilidades de intervenção protetivas no âmbito da garantia de direitos”, alerta a Psicóloga.
Essa também é a percepção do colaborador do CRP-PR, Cleverson Pereira de Souza (CRP 08/26568), que acompanha as atividades do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) de Cascavel. Ele aponta que as análises e preocupações quanto ao tema estão focadas na evasão escolar, mas não nas causas que leva crianças e jovens a abandonar a escola para trabalhar. Parte das repostas são bastante simplificadas: colocando nas crianças, adolescentes e suas famílias a maior parte da responsabilidade sobre o fato de elas não poderem estar brincando ou na escola e sim dedicando seu tempo a ganhar ou ajudar a família a ganhar o sustento.
Culpa da família?
Para a Psicóloga Priscila é preciso considerar a questão do trabalho infantil como parte de um cenário composto pela falta de ações e investimentos para possibilitar que crianças e adolescentes tenham outras oportunidades. Apesar de garantias previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA – como a destinação privilegiada de recursos e a “proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência” – há uma lacuna de programas na área.
Faltam possibilidades de renda complementar às famílias para alimentação e manutenção de condições mínimas de vidas para essa população, escolas em período integral e atividades de esporte, cultura e lazer. “Muitas mães, sobretudo de famílias monoparentais, não têm condições de trabalhar desacompanhadas de seus filhos. Consequências da desresponsabilização paterna, falta de vagas na educação integral e infantil e ausência de redes de apoio familiares e comunitária. Diante disto, é preciso problematizar se a questão trata de negligência familiar que expõe a criança a situação de trabalho infantil ou refere-se à consequência da ausência do respeito aos direitos fundamentais, entres estes o direito à subsistência, que deveria ser garantido pelo Estado”, comenta Priscila.
Para os adolescentes, acesso a trabalhos que preservem o tempo de atividade escolar e permitam a aprendizagem adequadas também estão distantes da realidade, sobretudo para os jovens negros.
Racismo no bojo do problema
O número de crianças e adolescentes negras trabalhadoras é maior do que a de brancas nos dados oficiais: são cerca de 1,4 milhão de negras para 1,1 milhão de crianças brancas. Na realidade, esses números devem ser ainda mais desiguais. Segundo Priscila, o racismo também está implicado na ausência de políticas públicas e na dificuldade de acesso ao mercado de trabalho formal na faixa etária adequada.
“O fato de um adolescente morar em determinado local ou a forma que se apresenta em sua vestimenta, muitas vezes é utilizado como critério de exclusão nos programas de aprendizagem. Não há como desconsiderar a violência simbólica e racista presentes nos processos seletivos. Em decorrência desses movimentos excludentes, se torna propícia a exposição desses adolescentes a trabalhos exploratórios e que geram riscos, inclusive a sua integridade física e ao desenvolvimento psicossocial”, alerta.
Portanto, erradicar o trabalho infantil também implica no reconhecimento do racismo implícito no bojo dessa questão e na discussão e aplicação de recursos e de perspectivas de construções coletivas, que priorizem quem mais precisa.
Investimentos não atendem quem mais precisa
Infelizmente, isso é o oposto do que é percebido. Segundo observa Cleverson, boa parte do parco investimento destinado, por exemplo, a preparação de jovens para o mercado de trabalho não recebe as populações mais vulnerabilizadas, como os jovens negros e pobres. Ocupam a maior parte dessas vagas jovens fora das condições de risco social ou de classe média, mas que apresentam “características” desejadas pelo mercado de trabalho.
O foco dessa preparação também é desviado. Muitas dessas atividades deixaram de ser realizadas diretamente pelo poder público e terceirizadas – são conduzidas pelas chamadas OSCS, organizações da sociedade civil, várias de cunho ou origem religiosa. Desta forma, da temática da preparação para o mundo do trabalho, as atividades passam a contar com formações sobre “valores” ou conteúdos “religiosos”. “Esse é uma modificação das atividades que acaba empurrando para os jovens valores e conceitos que não estão ligados à execução da política ou garantia de direitos e, por outro lado, o que deveria ser oferecido não é realizado”, analisa o Psicólogo.
Priscila explica que como o valor remunerado às OSCS para desenvolver a atividade é muito baixo, a maioria das entidades que aceita realizar os trabalhos têm origem religiosa exatamente porque possuem outras fontes de renda. “O valor que subsidia a execução dos serviços de convivência e fortalecimento de vínculos é aquém do esperado para ofertar serviços de qualidade, por vezes a manutenção se dá outras fontes de renda complementares, as quais as entidades religiosas estão mais propensas a receber”, comenta.
Meninas e jovens mulheres – trabalhadoras não reconhecidas
Nas estatísticas, o número de meninas trabalhadoras também é menor em relação aos jovens do sexo masculino. A proporção é de 35,1% e 64,9% respectivamente. O dado, no entanto, pode mascarar uma realidade. As meninas e adolescentes estão muitas vezes dedicados ao trabalho doméstico e ao cuidado dos irmãos. Nestas situações muitas vezes precisam deixar a escola ou não conseguem condições adequadas para permanecer e concluir os estudos.
“É preciso considerar que o machismo também está presente quando não se compreende o trabalho doméstico enquanto trabalho infantil. Estes casos são subnotificados, uma vez que recai sobre as meninas a ideia equivocada que os cuidados familiares e domésticos pertencem a elas. É naturalizado também o abandono escolar pela justificativa da necessidade de estas terem que ocupar esse lugar, que na verdade não as pertence”, alerta Priscila. Segundo ela, é preciso um debate conceitual sobre o trabalho infantil que também permita aprofundar e construir programas capazes de responder às necessidades da população e produzir resultados mais efetivos.
“É salutar escutar quem necessita e será beneficiário do serviço para construir junto com estes programas e projetos mais atraentes e que dialogam com a realidade vivenciada. Neste sentido, a participação efetiva dos usuários destes serviços nas conferências municipais, estaduais e nacionais dos direitos das crianças tem um caráter central e essencial para a sua execução”, comenta. Além da construção conjunta, a Psicóloga reforça que é necessário investimento. “É preciso previsão orçamentária para a execução de projetos e práticas concretas para a erradicação do trabalho infantil, caso contrário a ideia se mantém apenas enquanto discurso e não enquanto prática”, avalia.
Para ir além da data
Ouvir não parece exatamente a proposta governamental. Recursos são destinados mais a falar: por meio de campanhas midiáticas o Dia Mundial contra o Trabalho Infantil, lembrado em 12 de junho, é anunciado. A data recebe peças publicitárias e estampam portais governamentais que fazem alusão a uma necessidade de combate e da erradicação bastante difusa, sem aprofundar o debate sobre o tema.
Já os espaços destinados à construção de políticas públicas não têm a mesma sorte. A Conferência Nacional de Assistência Social que ocorreria no ano passado chegou a ser convocada oficialmente, mas foi cancelada. Sem recursos federais para subsidiar a participação de trabalhadoras(es) e usuárias(os) dos serviços, foi realizada uma conferência democrática com chamamento popular, mas que não possibilitou a participação mais ampla das categorias de trabalhadores e da sociedade com o governo federal acerca da política. As Conferências Nacionais e locais dos Direitos da Criança e do Adolescente também vêm recebendo investimento e mobilização reduzidos.
A falta de financiamento e de debate sobre as políticas é uma demonstração da pouca importância dada ao SUAS, que executa os programas destinados a cumprir a promessa brasileira de erradicar o trabalho infantil. Uma promessa que, ao que tudo indica e ao custo da infância e juventude de muitas crianças e adolescentes, não será cumprida tão cedo.