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Para não esquecer, para nunca mais se repetir

As palavras e a escuta são um caminho para que se possa trazer à consciência situações e emoções, permitindo que seja possível escolher novos caminhos ou comportamentos. O inverso também é verdadeiro: não dar vazão às palavras pode nos levar à repetição. O Brasil nunca desvendou profundamente o que ocorreu durante a ditadura, deu nome e rosto às milhares de pessoas torturadas e desaparecidas, puniu os responsáveis e reparou verdadeiramente e das mais variadas formas – das simbólicas às pecuniárias – as vítimas desse sistema.

Sem uma análise do passado e um conhecimento histórico disseminado, o que se vê no presente são mensagens negacionistas – e pior, saudosistas – do período cercado por dor e sofrimento, que pedem aqui e ali seu retorno. 

Justamente por isso, lembra o presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro e representante do Conselho Federal de Psicologia no Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Pedro Paulo Gastalho de Bicalho (CRP-05/26077), “é muito importante que olhemos ao passado e percebamos todos os momentos nos quais o Estado brasileiro legitimou a tortura e também reconhecer os momentos nos quais a tortura está presente hoje, que acontecem também como efeito da violência de Estado e em especial no momento que vivemos hoje, no qual é negado e construído um discurso negacionista sobre a tortura, em especial a experimentada durante o período de ditadura civil-militar brasileira”. E acrescenta: “Estarmos sendo governados por um governo que não só legitima, mas enaltece aquelas pessoas que foram protagonistas na tortura, produz efeitos que são bastante perceptíveis e isso é tem impactos também no que vivemos hoje.”

 

O Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR) conversou com Pedro Paulo e também com a Psicóloga Ana Lúcia Canetti (CRP-08/10403), que colaborou com a Comissão da Verdade no Paraná, para compreender os efeitos da tortura sobre as pessoas e a sociedade, tanto a prática vivenciada na ditadura militar quanto suas manifestações nas práticas e costumes atuais. A reportagem lembra o dia 26 de junho, Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura, como colaboração para que possamos conhecer e não esquecer esse capítulo terrível da história brasileira e, mais ainda, estarmos atentas(os) para não o repetir.

Reparação insuficiente

 

“Entre todos os países da América Latina, quem menos reparou a verdade ocorrida na época da ditatura foi o Brasil. Nós não conseguimos contar nossa própria história completamente. Nós ainda carecemos de ações que possam desvelar o que ocorreu de fato, para que possamos então reparar adequadamente. Países como a Argentina, Chile e Uruguai possuem a história de suas ditaduras muito mais reveladas, e também uma compreensão social mais profunda de seus efeitos”, conta Pedro Paulo.

 

Para se ter uma ideia da diferença na celeridade em busca dessa história: a Comissão da Verdade da Argentina foi criada um ano após o fim da ditadura no país, em 1984; no Chile, foi instituída logo após o fim do regime de Pinochet, em 1991. No Brasil, foi criada apenas em 2011, 26 anos após o término da ditadura, como conta Ana Lúcia. “No Brasil houve uma pequena e tardia reparação, uma vez que a Lei de Anistia inocentou os responsáveis. Não se deve deslegitimar as indenizações concedidas porque são um importante instrumento para reconhecer esses fatos e as pessoas que foram torturadas e mortas. Mas é inegável que falta muito para se ter reparação.”

 

Segundo dados do Portal da Transparência da Comissão de Anistia, dos 67 mil requerimentos apreciados com pedidos de indenizações de vítimas da ditadura, 39 mil foram deferidos, 24 mil negados e 11 mil estão pendentes, e sem perspectivas recentes de serem analisados. Deste total, R$ 10 bilhões de reais em indenizações teriam sido pagas e R$ 14 bilhões aguardariam pagamento. O volume, no entanto, é aquém do número de pessoas prejudicadas diretamente pelo período ditatorial.

 

O reconhecimento pecuniário dos prejuízos causados e autorizados pelo Estado à sua população é importante como reparação, mas as concessões de indenizações vão muito além disso. É um reconhecimento objetivo dessa história e da responsabilidade do Estado perante ela.  É um reconhecimento desses sujeitos, é uma reparação a esses seres humanos e a toda a sociedade, o que é um remédio necessário contra a tortura. “A tortura se constrói a partir de uma negação da condição de sujeito. E ela se faz sobre o corpo desse sujeito. A única maneira que você tem de torturar alguém, um semelhante seu, é não o reconhecer como ser humano”, afirma Paulo Pedro Bicalho.  

Mais presente do que nunca

 

A falta de reparação e de discussão acerca desse período histórico e de seus efeitos possibilita a reatualização dessa dor para as vítimas da ditatura e uma implicação na tortura como práticas naturalizadas na realidade atual. “Falta a nós conhecer nossa história, para reconhecer quais foram os processos que levaram à legitimação da tortura, até para que possamos reconhecer como hoje, em um momento aparentemente democrático, a tortura continua sendo legitimada”, explica Pedro Bicalho.

 

A ausência de iniciativas de combate e de prevenção a essas práticas reforçam a atualidade do debate. Exemplo extremo dessa realidade, Pedro Paulo conta que enfrenta dificuldades para falar sobre tortura no Comitê Nacional de Combate e Prevenção à Tortura, presidido pela ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. Apesar do nome, o comitê tem deixado de discutir temas que seriam básicos e essenciais como, por exemplo, as violações aos direitos humanos nas penitenciárias brasileiras durante a pandemia da Covid-19.

 

“A cada reunião ficam mais evidentes as diretrizes que compõem o projeto político do país nesse momento, que é fazer com que debates sobre a tortura não avancem. A posição de que nós somos contrários à tortura e que estamos ali para prevenir e combater a tortura, e não para legitimá-la, essa experiência não é compartilhada por todos os membros. Talvez essa seja uma experiência, absurda, jamais vivida anteriormente nesse período democrático”, explica.

 

A falta de empenho em combater a tortura acaba abrindo portas à prática pelas forças de segurança com herança militar e em boa parte dos espaços nos quais se encontram os que foram eleitos “inimigos da sociedade”: os presídios, centros de detenção juvenil, hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas, para citar alguns.

Tortura alinhada aos preconceitos

 

“O ‘comunista’ dos anos 60 e 70 hoje ele é o pobre, negro, morador de favela. O alvo do nosso sistema de segurança pública, composto por polícias militares, que são regidas por paradigmas militares, em uma lógica de guerra. O paradigma da defesa não pode ser o mesmo que o da segurança, que deveria ser pública, para os cidadãos. É uma retórica que transforma em inimigo o usuário de drogas, o negro. Vem à tona os nossos racismos, machismos e preconceitos de classe que fundamentam a maneira como lidamos com esses ‘inimigos’ e legitima a tortura”, conta Pedro Paulo.

 

Não é à toa que a tortura é aplicada na tentativa de aniquilar a alteridade, a diversidade. São vítimas dela: a população LGBTIQ+ em clínicas que oferecem uma suposta “reorientação” de suas identidades e sexualidade; pacientes nos hospitais psiquiátricos que encarceram pessoas em sofrimento mental; usuários de drogas nas comunidades terapêuticas; e, muito flagrantemente, nos espaços de privação da liberdade como os presídios e centros de socioeducação. “Não é à toa que a população desses locais tem um rosto, tem uma cor, tem um CEP. Isso não ocorre porque as pessoas com essas histórias são mais propensas ao crime. Elas estão lá vítimas de uma seletividade penal e de um país que as elegeram como inimigas e os torturados da vez”, completa. 

Impactos que vão além de uma geração

 

Ao ser direcionado ao sujeito, suas ideias e sua própria existência, os efeitos da tortura sobre a psique humana não têm comparação ao que seria, por exemplo, o estresse pós-traumático decorrente de um evento de acidente ou catástrofe natural, como explica Ana Lúcia Canetti.  “Os efeitos da tortura são respostas possíveis ao que ela propositalmente provocou nas pessoas ou em uma comunidade. Não são enfermidades ou patologias do sujeito torturado. Mas, isso não quer dizer que os impactos psicológicos e físicos não sejam graves, de longo prazo, permanentes, podendo ter um agravamento após a velhice, por exemplo.”

 

A Psicóloga cita que os impactos psicológicos abrangem, por exemplo, problemas identitários, processos dissociativos graves, comportamentos regressivos e lutos não elaborados, ansiedade, angústia crônica, depressão e insônia persistente e transtornos neuróticos ou psicóticos, entre outros. Alguns índices nos ajudam a compreender a gravidade e profundidade do impacto da tortura na psiquê humana: índice de psicose é cinco vezes maior do que o encontrado na população que não passou por essa experiência e a taxa de suicídios se eleva entre 16 a 23%.

 

Entre outros aspectos, conta Ana Lúcia, a capacidade laboral por ficar diminuída ou impossibilitada e a inserção social dificultada, com rupturas familiares frequentes. Além disto, pessoas que passaram por situações de tortura tendem a apresentar doenças físicas com maior frequência e gravidade. Os impactos não se resumem à vítima direta apenas. Eles são transgeracionais, repercutindo também em filhas(os) e netas(os) dessas pessoas.

Efeito coletivo do medo

 

Não são apenas as vítimas e suas famílias que são impactadas pela história de abusos e de tortura. Ela tem fortes impactos às formas como reagimos, como sociedade, à retirada de direitos e às leituras que realizamos das manifestações sociais, como os movimentos de trabalhadoras(es) e em relação a aspectos como o racismo e o machismo.

 

A pesquisadora María Celia Robaina afirma no artigo “Efeitos tardios da tortura – reparação e aportes a partir da Psicologia” que a tortura significa, no imaginário social, uma representação potente que tem como fim infundir medo em toda a população. “O regime se propôs a eliminar toda a intenção de rebeldia e oposição para facilitar o objetivo de domesticar a sociedade. Desde esse lugar se entende que os efeitos não se concentram somente naqueles que foram suas vítimas diretas. Por isso, se faz necessário um real processamento do trauma social que deixe aprendizados coletivos, processo que permitirá aliviar as vítimas diretas ao mesmo tempo que possibilitará construir uma democracia saudável”, afirma no texto (tradução nossa do espanhol para o português).

 

Pedro Paulo Bicalho faz a mesma leitura. “Esse não é um processo de tortura que se constrói com os instrumentos que poderíamos pensar da idade média, mas é uma tortura que se constrói como lógica, a partir de um modo de funcionamento a partir das nossas próprias instituições, maquiadas por um verniz democrático. Por isso falar de tortura é extremamente importante e falar de tortura não é falar de um passado, é falar do que ocorreu e do que está acontecendo hoje”.

 

“O medo que nós sentimos é também resultado da constatação de que nós vivemos em um Estado que legitima a tortura, que enaltece a tortura e que faz dos torturadores verdadeiros heróis nacionais. Vivemos esse momento e é preciso que a gente pense qual o efeito disso na nossa vida e nas nossas possibilidades de manifestação social”, complementa.

Psicologia no centro do debate

 

A Psicologia tem papel fundamental para auxiliar a reconstruir essa história e isso passa por repensar seu papel no passado e presente. “Nós, como Psicologia, também temos uma história para repensar. O modo como atuamos na ditatura civil-militar brasileira, também precisa ser conhecido e considerado. Nós temos muitas histórias de resistência, mas também temos histórias, por exemplo, do uso de testes psicológicos para verificar quem era o ‘subversivo’. Nós estivemos entre os torturados e quem tratou as vítimas de tortura, mas também entre os que serviram aos torturadores. É preciso recontar e analisar essa história, para construir e repensar nosso papel, político e ético, perante o momento atual”, conta Pedro Bicalho.

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