O Dia Internacional da Superdotação é comemorado em 10 de agosto, como forma de chamar a atenção para as características e necessidades que fazem parte da vida desta população e apoiar iniciativas que tenham por objetivo proporcionar suporte para o adequado desenvolvimento de suas habilidades, ao mesmo tempo em que oferecem cuidado em saúde mental.
Confira o texto da psic. Giovanna Klüppel Strobel (CRP-08/24770), publicado originalmente na Revista Contato 147. Giovanna é especialista em Neuropsicologia e mestre em Medicina Interna com formação em Terapia do Esquema, atua com avaliação neuropsicológica, desenvolvimento de grupos com foco em superdotação, capacitação de profissionais e consultoria a escolas. Instagram @giovanna.cognos
O maior desafio no âmbito da superdotação não está na ciência de pacientes que, muitas vezes, precisam de serviços especializados para se compreenderem e buscarem saúde mental e física. Está no passo anterior: profissionais entenderem realmente sobre esta condição e como desenvolver um trabalho efetivo com esta população.
Uma pessoa superdotada não é só inteligente. Ela tem um sistema nervoso mais sensível e reativo às informações cognitivas e emocionais que a rodeiam. Pode ter sido um bebê “high need”, ou seja, com choro constante e intenso, menor necessidade de sono (pois alterações de sono – para mais ou para menos – são comuns nesta população) e alterações sensoriais que dificultavam atividades básicas desta faixa etária como se alimentar, tomar banho, receber colo e estimulação mental.
Pode ter sido uma criança sensível (a tudo!): que capta as emoções alheias, percebe situações sociais e problemas para além do desejado pelos adultos, que se incomoda com sons, texturas de alimentos, tecidos de roupas e a costurinha da meia. Pode ter sido a criança que não foi compreendida pelos pares (porque gostava de falar extensamente sobre os temas de seu interesse, inventava regras mais complexas para deixar a brincadeira mais interessante e achava infantis alguns comportamentos dos colegas) e, por isso, se isolou socialmente. Por outro lado, também pode ter sido a criança com alta energia, vontade de fazer mil e uma atividades extracurriculares (possivelmente com bom desempenho), com inteligência interpessoal bem desenvolvida e um perfil carismático e de liderança.
E, agora, cá está como paciente adulto com superdotação: é tão bom em tantas coisas que nunca terminou nenhuma de suas graduações, ou teve tanto afinco e percepção refinada do mundo ao redor, junto com uma determinação acima da média nas tarefas de que gosta, que levou a um perfil perfeccionista e “workaholic”. Possivelmente racionaliza todos os seus sentimentos e “resolve” todas as questões tranquilamente, ou tem tamanha intensidade emocional que já teve diagnósticos incorretos de Transtorno Bipolar ou de Transtorno de Personalidade Borderline, mas nada “fechou” e continua buscando respostas.
E você, profissional? Você sabia que esta característica não significa apenas ser muito inteligente? Sim, a superdotação envolve uma facilidade acima da média em alguma área de habilidade, podendo ser cognitiva, acadêmica, psicomotora, artística ou social. Assim, que caia por terra o estereótipo do minigênio do Caldeirão do Hulk. Se é isto que você busca, vai identificar apenas os tipos acadêmicos com bom desenvolvimento de raciocínio lógico-matemático.
Não esqueça as pessoas que têm uma habilidade excelente de resolução de problemas práticos, e que talvez tenham até falhado na escola por acharem tudo aquilo muito sem sentido e entediante. Não esqueça as que se destacam entre colegas nos esportes ou na habilidade corporal para dança e teatro. Não esqueça as que têm talento especial para artes plásticas, música e quaisquer outras formas de expressão artística que rotulamos de apenas talento (e não esqueça que talento é apenas a expressão desta habilidade acima da média que compõe a superdotação). E não esqueça, por favor, aquelas que encantam todo mundo com suas palavras e lideram grupos como quem rege uma orquestra – nem toda pessoa superdotada tem dificuldades sociais.
Prazer, este é o verdadeiro perfil de pacientes com superdotação: inteligentes sim, mas também sensíveis, observadores, intensos em seus interesses, complexos em seus pensamentos, determinados a resolver questões que lhe são relevantes. Por vezes recebem críticas por quererem fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Com uma curiosidade insaciável e sensibilidades sensoriais, não se conformam com a injustiça e o sofrimento humano. Podem perceber muitos lados para quase todas as questões e adoram um bom debate. Sentem motivação pela própria criatividade e por resolver problemas que realmente não lhe pertencem.
Em minha prática, trabalho com a avaliação de superdotação e transtornos do neurodesenvolvimento de crianças a adultos. Infelizmente, deparo-me com profissionais que, por desconhecimento destas características que citei, não conseguem auxiliar pacientes em suas demandas. E não falo apenas da neuropsicologia – muitas vezes pacientes se queixam de processos psicoterapêuticos estagnados por falta de compreensão.
Não venho aqui para criticar colegas, pois eu mesma só tive contato com a superdotação após terminar minha graduação. Mas venho com um apelo: pense, com carinho, em pacientes que estão sob seus cuidados. As estimativas mais conservadoras falam em 3 a 5% da população tendo altas habilidades em alguma área. Isso daria que número de pacientes para você? Pense ainda que, por terem uma sensibilidade e intensidade emocional (assim como uma busca pelo autodesenvolvimento), muitas pessoas superdotadas procuram serviços psicológicos e talvez esta porcentagem seja ainda maior em nossos consultórios.
Ficou na dúvida? O primeiro passo é encaminhar essa pessoa para uma boa avaliação neuropsicológica. Nesta avaliação, não focaremos apenas um QI – porque QI não é sinônimo de inteligência e testes psicométricos têm suas limitações. Mais do que isso, é comum que tais pacientes nos procurem diante de quadros de ansiedade e depressão, os quais afetam a cognição. Assim, uma boa avaliação engloba aspectos socioemocionais e um histórico compreensivo do caso.
Depois, recomendo a leitura de materiais de qualidade sobre o tema e a participação em grupos de psicoeducação. Em quantos pacientes tive o prazer de ver melhora pelo simples entendimento de quem são, aceitação de seus interesses e ritmo de aprendizado/trabalho, necessidade de desenvolver vínculos em grupos diferentes para suprir suas demandas sociais e desenvolvimento de uma dieta sensorial que favorecesse sua autorregulação. Mas, para quem precisa de um acompanhamento mais individualizado, sugiro que profissionais busquem conhecimentos (não apenas teóricos, mas práticos!) sobre o manejo destes casos. Cursos de formação e supervisões ajudarão. Tenho a certeza de que isto abrirá seus horizontes para um mundo que você ainda não conhecia. Boas-vindas ao universo da superdotação!