O número de óbitos decorrentes da pandemia da Covid-19 que não para de crescer é apenas uma das terríveis facetas desta crise. É a morte visível. São as vidas perdidas que o noticiário mostra e as estatísticas contam. Mas, em cada canto do Brasil, em cada município, em cada casa, em cada família, as perdas se avolumam. São mortes silenciosas, mortes simbólicas, lutos não elaborados, dores não escutadas, vidas não valorizadas. No meio disso tudo, de tantas e tão profundas mudanças vivenciadas por cada brasileira(o), chegamos ao emblemático Setembro Amarelo, o mês de prevenção do suicídio, sendo conclamadas(os) a pensar, enquanto categoria, sobre as outras mortes da pandemia.
Ainda não é possível dizer com certeza que as crises de ansiedade, os quadros de depressão e outros sofrimentos se tornaram ou se tornarão mais frequentes e profundos por conta da pandemia. Mas, algumas observações já foram feitas por pesquisadores tanto no Brasil como em outros países e a tendência verificada é justamente essa. O desemprego que aumentou, os pequenos negócios que balançaram (e outros fecharam definitivamente), o medo de ser contaminado ou de perder um ente próximo, a sobrecarga de trabalho, as crianças que passaram a demandar atenção em tempo integral da família, o próprio distanciamento social. Tudo isso e muito mais impactou e vai continuar impactando a vida das pessoas.
Um destes estudos está sendo liderado por pesquisadoras(es) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e vai monitorar cerca de 4 mil pessoas com idades entre 35 e 74 anos, tanto saudáveis como grupos que já apresentavam ansiedade e depressão, até dezembro de 2020, para entender a dimensão das consequências do isolamento social e de todas as incertezas deste período na nossa saúde mental. Ainda, uma pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) realizada entre março e abril em 23 Estados mostrou um aumento de 80% na ocorrência de ansiedade e estresse. As principais afetadas são as mulheres, uma questão de gênero que exacerba o ainda presente desequilíbrio na divisão de cuidados domésticos. Desde a limpeza e a organização da casa até cuidados com crianças e idosos, por exemplo, as demandas ficam ainda mais concentradas quando se perde a rede de apoio – avós, babás e escolas, por exemplo – e o trabalho de “fora” passa a acontecer em concomitância, no que já é chamado por especialistas de “jornada contínua”.
A Psicóloga Dafne Drumond Boni (CRP-08/19750), trabalhadora do SUS que desde o início da pandemia atua em um Serviço de Atenção Domiciliar (SAD) com pessoas recuperadas da Covid-19 e suas cuidadoras (a maioria mulheres), percebeu isso na prática: “Ser cuidadora já te coloca em uma condição de isolamento social porque a maioria das cuidadoras acabam tendo isso como atividade principal e solitária. A gente tenta contribuir para qualificar o cotidiano e resgatar a pessoa enquanto pessoa, não só enquanto cuidadora. Mas, com a pandemia, precisamos firmar a biossegurança e ela implica restrição do suporte de pessoas que passavam na casa e com quem ela desabafava… ou da vizinha que ficava um tempo ‘dando uma olhada’ enquanto ela ia à Unidade de Saúde, ao grupo X , à padaria Y”, relata.
Além do gênero, outros fatores presentes são etnia e classe social, já que a maioria das mulheres em situação de maior vulnerabilidade são negras e periféricas. “Além disso estou me deparando com muitas situações de violência. E que a pessoa não percebe diretamente ou sozinha. É durante a conversa sobre a sobrecarga do cuidado que ela vai desenrolando sua história, suas relações e começa a falar sobre a violência. E daí a partir daí consegue refletir sobre isso e sobre uma atitude possível”, conta a Psicóloga.
Alguns outros quesitos também podem afetar a tendência de maior sofrimento mental e possível aumento nos índices de suicídio, como a atividade profissional exercida, as condições de vida de cada pessoa antes e depois da pandemia e questões culturais (por exemplo, no Japão, onde a cobrança nos ambientes escolares e laborais é extrema, a quarentena fez cair em 20% o número de suicídios em abril comparado ao ano anterior, segundo reportagem publicada pelo jornal The Guardian). Assim, estudos como o “Preparing Michigan for the Behavioral Health Impact of COVID-19”, realizado pela Pine Rest Christian Mental Health Services indicando um possível aumento de 15 a 32% nos índices de suicídio no Estado Americano, podem ser bons referenciais, mas as pesquisas e dados precisam ter em conta características regionais.
O Psicólogo Paulo Vitor Palma Navasconi (CRP-08/25820) lembra que a literatura já aponta, há bastante tempo, uma tendência de aumento do suicídio em situações de crise que “levam a uma desestruturação e falta de coesão social que fragiliza a saúde mental”. Não é que crise traga, por si só, a ideia da morte como saída para o sofrimento. Na realidade, aquelas pessoas que já vinham enfrentando alguma condição potencialmente adoecedora – lembrando que o suicídio geralmente é multifatorial, ou seja, não é causado por uma única razão – podem encontrar neste momento uma dificuldade ainda mais evidenciada para lidar com o sofrimento.
“A Covid-19 é uma doença que atinge teoricamente a todos de forma igual, sem distinção de gênero ou condição social. Mas, na prática, nós percebemos que isso não é verdade, já que a pandemia intensifica vulnerabilidade e expõe as diferenças sociais”, destaca o profissional, autor do livro “Vida, adoecimento e suicídio”, com recorte sobre jovens negros(as) e LGBTTIs.
Suas palavras são ancoradas em dados. Quase 70% das pessoas que acessam exclusivamente o Sistema Único de Saúde no Brasil são negras, e a mortalidade por Covid-19 em UTIs, de acordo com estatísticas, é o dobro da registrada na rede privada. Além disso, mulheres (especialmente as negras) são as que recebem menores salários, vivem em regiões mais precarizadas – sem acesso a bens básicos como água encanada e saneamento básico – e precisam frequentemente sustentar suas residências sozinhas. São pessoas esquecidas pelo Estado e ainda mais fragilizadas pela pandemia.
A Psicóloga Dafne Boni lembra do período em que trabalhava em um CAPS, em 2016, e do impacto que a crise econômica daquela época teve no que chamou de “boom de ideação suicida”. “Muita gente que não tinha condição de retornar ao trabalho e estava sem nenhum amparo nos seus direitos acabava reagindo pela via da autoagressão. Então imagino que estamos no caminho disso acontecer”, diz. Ela ainda relata que, devido à Covid-19, muitas pessoas enfrentam dificuldade de retornar ao trabalho por sequelas, como alterações importantes na respiração, fadiga, dificuldade motora e mesmo alterações cognitivas; parte dessas(es) trabalhadoras(os), que já vinham de atividades precarizadas, ainda enfrentam barreiras para acessar auxílios no INSS.
Clique aqui para ouvir o
PodPsi “Morte, Luto e Suicídio”
E como podemos prevenir o suicídio?
Não existe um guia para impedir que alguém interrompa sua própria vida porque, como já vimos, as realidades são diferentes. Paulo Navasconi alerta que listas com dicas para enfrentar a quarentena ou para melhorar a saúde mental podem ser válidas, mas é preciso olhar com atenção já que uma dica impossível de ser colocada em prática pode até mesmo instigar a sensação de culpa por não se enquadrar. Então, o que fazer? “O primeiro passo é reconhecer o sofrimento e identificar com quem se pode contar, de que modo é possível buscar ajuda”, explica o Psicólogo.
Para quem está do outro lado, escutando e acolhendo, Navasconi fez um alerta durante a live “Morte, Luto e Suicídio”, promovida pelo CRP-PR. “A gente precisa pensar e repensar, por exemplo, quem são essas pessoas que estão gritando, almejando pelo olhar do outro, mas que muitas vezes não conseguem receber esse olhar do outro porque sequer é visto como um sujeito, sequer é visto como um indivíduo”, explicou ao concluir a fala sobre o apagamento das vivências negras e periféricas. Ele ainda destacou que, muitas vezes, Psicólogas(os) não sabem como agir diante desta população e seus sofrimentos porque a formação é pouco plural.
Independente do contexto em que acontece e se manifesta, um comportamento suicida não é um ato individual. Ele é, ao mesmo tempo, sintoma de uma sociedade com profundas chagas e denúncia de que a solução deve ser coletiva. Para Paulo, “o suicida denuncia para a nossa sociedade que nós não estamos bem, que o sofrimento é político”; Dafne propõe que a tentativa ou ideação suicida “é uma reação ou uma saída individual para saídas, reações e resistências que necessitam ser coletivas: a luta por melhores condições de vida”.
O suicídio na RAPS
Quando a Rede de Atenção Psicossocial foi pensada, no início dos anos 2000, ainda não se discutia a prevenção do suicídio como hoje, como explica o Psicólogo Altieres Edemar Frei (CRP-08/20211). De lá para cá, a sociedade mudou, e outras demandas emergiram. Ainda que o suicídio em si não seja um fenômeno novo, o manejo ainda pode ser um tabu em muitos equipamentos. “O tema ainda é permeado por capas e mitos, e ainda é presente nos discursos crenças como ‘quem quer faz’ ou ‘faz para chamar a atenção’”, conta o profissional, que durante cerca de um ano percorreu mais de 40 municípios do Paraná na pesquisa chamada “Cartografia da RAPS”.
A Psicóloga Dafne, com larga experiência na ponta da rede de atenção, relata que os protocolos vigentes não se adequavam à realidade. Os problemas eram muitos, incluindo dificuldade de acolher cada demanda em seu devido grau de complexidade, acolher e escutar o sofrimento de cada paciente, grande foco na medicalização e contenção dos sintomas, além da dificuldade de dar coesão e continuidade ao trabalho devido à sobrecarga da equipe. Além disso, divergências na equipe multiprofissional, falta de estímulo à capacitação contínua e adoecimento da equipe eram fatores que desafiavam a resposta dos equipamentos. “A gente perdeu várias situações para o internamento em hospital psiquiátrico, o tal circuito manicomial e a consequentemente cronificação, estigma e patologização”, relembra a Psicóloga.
A pandemia, como em outras instâncias, pode ser um agravante, já que comportamentos como o uso abusivo de álcool e outras drogas e transtornos de saúde mental ficam mais densos. Além disso, a resposta que as(os) brasileiras(os) como um todo estão tendo em relação ao luto pode ser um desafio. A negação e a aparente falta de empatia podem ser uma forma de lidar com o trauma excessivo, na opinião de Paulo. Já Altieres supõe que uma explicação possa estar na vulnerabilidade de grande parte da população. “Com o auxílio emergencial, o real impacto econômico ainda não foi sentido”, conjectura.
Já entre aquelas(es) que passaram pela experiência da internação em uma UTI, Dafne acredita que não há, atualmente, condições emocionais de assimilar: “Parece que para conseguir viver um luto precisam estar em um grau de consciência que a vida não tem permitido”.
Autocuidado
Toda(o) Psicóloga(o) sabe que cuidar da saúde mental de outras pessoas é, por si só, uma sobrecarga à própria. Além disso, para garantir aptidão à escuta, ao acolhimento, é preciso providenciar adequados processos terapêuticos e de supervisão técnica, quando necessário. Mas, e quando a(o) Psicóloga(o) adoece?
Por diversos fatores, como sobrecarga de trabalho e falta de condições adequadas para atuação, a categoria pode ser um grupo vulnerável aos transtornos de humor e ao próprio suicídio, ainda que estes sejam temas tabus. Em sua pesquisa de mestrado, a Psicóloga Fabiane da Fontoura Messias de Melo (CRP-20/2028) estudou as condições de saúde mental de um grupo de Psicólogas(os) lotadas em um hospital na região norte do Brasil. “Não esperava encontrar um sofrimento tão intenso”, relata. A falta de um lugar (físico e também simbólico) para o trabalho era um dos fatores observados, bem como a ausência de apoio e reconhecimento ao trabalho da(o) Psicóloga(o). “A longo prazo, o sofrimento pode levar ao adoecimento”, explica a hoje professora da Universidade Federal do Acre.
O impacto da Covid-19 veio a se somar aos problemas: medo de perder renda ou o emprego, incertezas no atendimento online ou medo de se contaminar com o vírus no atendimento presencial, além da já mencionada sobrecarga de trabalho, especialmente para as mulheres, quando em casa. As desigualdades do país também contribuem para que cada pessoa viva a experiência de uma forma diferente, e o atendimento psicológico pode não estar disponível para todos. “O Acre é um Estado pobre, e a maioria não tem condições de fazer o atendimento online, ou por não ter internet, ou por não ter condições físicas como um cômodo privado. Mesmo quando consegue, o setting está modificado, a rede cai, o sigilo fica comprometido. Vivemos uma situação nova e é preciso produzir novos conhecimentos”, conclui Fabiane.