A pandemia do coronavírus e o isolamento social nos fizeram rever a organização dos sistemas educacionais no nosso país e no mundo. É certo que ninguém sabia como conduzir as mudanças educacionais neste cenário – e ainda não temos nitidez –, mas é evidente que é preciso estabelecer prioridades que estão muito além da execução de um currículo.
Respaldadas(os) em pareceres científicos das áreas competentes, entendemos que a Educação Básica no formato presencial neste momento colocaria em risco as crianças e adolescentes (e comunidade educativa em geral), uma vez que, pelas próprias características dessa etapa da vida, elas teriam muita dificuldade em seguir as normas de segurança que ajudariam a prevenir uma contaminação em massa. Dessa forma, entendemos que não deverão ser retomadas as atividades presenciais enquanto não forem possíveis as condições adequadas de biossegurança.
Infelizmente, nos deparamos com alguns discursos – de entidades educacionais, profissionais da educação, políticas(os), dentre outras(os) – que tentam defender a volta às aulas presenciais, o que entendemos como uma atitude precipitada. Comenta-se acerca das fragilidades nas ofertas do ensino emergencial remoto, da falta de acessos aos recursos tecnológicos utilizados, e até dos casos de violência doméstica.
Contudo, nos encontramos diante de uma situação paradoxal, uma vez que as soluções para os problemas educacionais vivenciados diante dos desdobramentos da pandemia não são fáceis e nem simples. Isto porque se observa que algumas soluções propostas não garantem o engajamento da(o) estudante com o conteúdo ministrado. Esta situação exige da(o) profissional da educação habilidades que ela(e) não desenvolveu, pois não foi habilitada(o), o que lhe traz mais trabalho, mais cansaço, especialmente nos casos em que as tarefas do trabalho se associam às tarefas domésticas e o cuidado de filhas(os).
Sendo assim, convidamos à reflexão: diante de todo contexto da pandemia e do isolamento social, como podemos desenvolver nossas atividades enquanto Psicólogas(os) escolares?
Enquanto Psicólogas(os), precisamos evidenciar que uma Educação que tem compromisso com o desenvolvimento integral dos sujeitos deve eleger como prioridade a proteção à vida. A Psicologia tem um compromisso ético com a promoção e valorização da vida, que deve orientar nosso posicionamento como categoria.
Diante desse cenário, reiteramos o posicionamento em favor da suspensão das atividades curriculares no período da pandemia, apresentado na ocasião do Dia da Educação. Portanto, consideramos como melhor alternativa o não retorno às atividades presenciais e a flexibilização do processo avaliativo, bem como a implementação de atividades complementares. Dessa forma, propõe-se que se mantenha o vínculo institucional da Unidade Educacional com sua comunidade, assegurando-se a proteção e o cuidado com todas(os) as(os) envolvidas(os) no processo educativo, os vínculos e o papel crítico e reflexivo da educação.
Reflexões sobre possibilidades de atuação
Frente ao panorama da Covid-19 e as dificuldades impostas para a implementação das práticas educativas, e considerando que a suspensão das atividades curriculares não é a realidade em grande parte das instituições de ensino, reunimos algumas reflexões no intuito de contribuir com a atuação de Psicólogas(os) que trabalham no contexto educacional.
Em primeiro lugar, cabe ressaltar o caráter de excepcionalidade do período que vivemos, conforme Recomendações da ABEP e CFP para cursos graduação em Psicologia, a fim de que as estratégias de atuação utilizadas neste contexto não sirvam para a precarização do trabalho docente e das práticas educativas, durante e depois da pandemia.
A seguir, apresentamos algumas sugestões de práticas viáveis e pertinentes para a(o) profissional que atua na área da Psicologia Escolar e Educacional, enquanto vivemos o cenário da pandemia:
Atividades a serem realizadas com as equipes pedagógica e gestora da Rede de Ensino
>>> Proporcionar espaços de reflexão com as equipes pedagógica e gestora da Unidade Educacional sobre a quantidade e qualidade de conteúdos a serem trabalhados neste momento. Entendemos que tais conteúdos devem estar vinculados ao programa previsto para cada série, mas deve-se ter em mente que seu processo de apropriação será marcado por uma possível “defasagem”, o que é amplamente compreensível frente às privações impostas pela pandemia. Deste modo, a obrigatoriedade da aquisição dos conteúdos curriculares não deve ser prioridade. É perfeitamente possível, e muito mais indicado, criar um plano de recuperação paralelo para esses conteúdos no próximo ano. A preservação da vida está acima do currículo. Ano letivo se recupera, a vida não.
>>> No contexto da Educação Básica, é importante refletir junto às famílias, equipe pedagógica e estudantes quanto às possibilidades de se conciliar os estudos com atividades e rotinas domésticas/familiares, instrumentalizando as partes envolvidas. As(Os) Psicólogas(os) podem contribuir fazendo as devidas mediações, levando as(os) envolvidas(os) no processo a reconhecerem as possibilidades e os limites de cada um(a) – incluindo aí os cenários de precarização do trabalho que muitas famílias enfrentam. Neste momento ímpar, cabe auxiliar as equipes docente e pedagógica a se questionarem quanto à adequação das atividades propostas e se estas são passíveis de realização pelas crianças/adolescentes. E, junto às famílias, vale refletir sobre seu papel de orientação na realização das atividades propostas, incentivando as(os) filhas(os) à sua realização, contribuindo assim para sua autonomia e responsabilidade, tendo em vista suas faixas etárias.
>>> Esta reflexão passa também por pensar sobre os recursos tecnológicos, os acessos e o bom uso da tecnologia. Tais recursos devem ser pensados de tal forma que seu uso não seja excludente e nem seja o centro dos processos educativos. Nesse sentido, cabe auxiliar a equipe pedagógica a estabelecer outras formas de contato com (e entre) as(os) estudantes, que não necessariamente aquelas mediadas pelas tecnologias digitais de informação e comunicação. A equipe da Unidade Educativa pode, por exemplo, direcionar o que deve ser estudado a cada período, informando estudantes ou responsáveis, via contato telefônico, e solicitando que busquem atividades em meios físicos, desde que respeitadas as medidas de biossegurança.
>>> Há uma série de temas transversais, como direitos humanos em suas diversas manifestações, combate ao racismo, às violências, promoção de saúde, saúde mental, entre tantos outros, que são correlatos ao momento que vivenciamos e que podem compor o planejamento e desenvolvimento de atividades formativas em todos os níveis, segmentos e para todos os públicos da comunidade educativa. Planejar com a equipe pedagógica a implementação de tais atividades é uma importante contribuição das(os) Psicólogas(os) para a qualidade da formação das(os) envolvidas(os) no processo educacional.
>>> Colaborar para a especial atenção aos alunos público-alvo da Educação Especial (PAEE) e que apresentem Transtornos Funcionais Específicos, na perspectiva da educação inclusiva, a fim de auxiliar as famílias e a equipe pedagógica na proposição e acompanhamento de atividades que sejam adequadas às suas possibilidades e que contribuam para seu desenvolvimento.
>>> Quando da elaboração de planejamentos para o retorno das atividades presenciais, cabe às(aos) Psicólogas(os) contribuir para que tais planos contemplem atividades que permitam a recuperação gradual do currículo, estando atentas(os) aos aspectos emocionais decorrentes da vivência do contexto da pandemia. Atividades podem ser desenvolvidas junto à equipe de profissionais da Rede de Ensino, que visem à disponibilidade destes profissionais para atitudes de acolhimento, de diálogo e a reflexão sobre os processos vivenciados pela comunidade escolar.
Sugestões de atividades para a(o) Psicóloga(o) desenvolver diretamente com a comunidade educativa:
>>> Manter contato com estudantes e famílias: Produza conteúdo, mantenha contato frequente, seja por redes sociais, contatos telefônicos, mensagens por aplicativos ou pelas ferramentas que você está utilizando para encaminhar conteúdo ou promover encontros online. Demonstre sua preocupação e carinho por elas(es), expresse o quanto a rotina escolar com a presença delas(es) faz falta no seu dia a dia. Acima de tudo, contribua para que a comunidade educativa reflita sobre os aprendizados que se pode tirar desse período de isolamento, seja o contato com a família por mais tempo – para quem isso é possível, o domínio de novas ferramentas tecnológicas ou mesmo o aprender a lidar com as frustrações e cuidar da saúde. Mas, lembre-se: você precisa acreditar nisso também!
>>> Promover rodas de conversas virtuais: A promoção de rodas de conversas virtuais pode ser uma boa alternativa para oferecer acolhimento e partilha, que oportuniza um processo cooperativo de fortalecimento das redes e das relações. É uma possibilidade de promover a convivência e trazer novos caminhos, gerando novas respostas para novas perguntas, necessárias nesta situação inesperada para todas(os). A(O) Psicóloga(o), a partir de um levantamento prévio de interesses, pode programar esta atividade, envolvendo outras(os) profissionais da educação ou a comunidade.
>>> Fazer contato com quem não faz contato: Em conjunto com a equipe pedagógica e com o corpo docente, deve-se estar atenta(o) àquelas(es) estudantes que não fazem contato com a equipe educacional, não participam das aulas, não fazem as atividades indicadas, dentre outros. Diante dessas situações, seria interessante a realização de um processo de busca ativa, fazendo contato com tais estudantes e, se for o caso, com sua família. Tais buscas podem ocorrer por telefone, mensagens, recados com outras famílias (com o cuidado de não serem expositivos) contato com outras instituições da rede, ou mesmo visitas, se necessário – observando os cuidados de biossegurança. Elas(es) podem estar precisando de apoio nesse momento.
>>> Prestar suporte emocional: Especialmente quando do atendimento a crianças e adolescentes, faça contato com as famílias de estudantes, principalmente aquelas(es) que apresentarem vulnerabilidades, com dificuldade de aprendizagem, ou alunas(os) que já apresentavam maior fragilidade emocional. Elas(es) podem ser as(os) que mais estão sofrendo nesse momento e podem precisar de algum apoio diferenciado daquele que você tem oferecido.
>>> Atender e orientar famílias: Sabemos que muitas(os) estudantes podem apresentar dificuldades na realização de tarefas escolares, vivendo os desconfortos da situação de isolamento social. Nesse sentido, um canal de comunicação deve ser proposto para que as(os) responsáveis pelas(os) estudantes possam receber orientações quando as dificuldades emergirem. Nesses atendimentos, certamente serão temas relevantes: os desafios que a pandemia tem apresentado na organização das famílias frente às dinâmicas educacionais; a importância do papel da família na orientação das atividades; e a possibilidade de se contar com o diálogo com a equipe educacional nos casos de dúvidas e dificuldades.
Além disso, os atendimentos são momentos oportunos para se verificar se há sinais de violências e violações de direitos que possam estar acontecendo no contexto familiar, e as(os) Psicólogas(os) deverão estar atentas(os) para acionar a rede de proteção e os serviços competentes quando necessário, conforme previsto no Art. 70 do ECA, que prevê: “É dever de todas(os) prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e adolescente”.
Observações: Quando do atendimento online, atentar-se ao devido cadastro no E-psi. Ainda, reforça-se que não se tratam de atendimentos clínicos, levando-se em conta os artigos 2º, 6º e 8º do Código de Ética, inclusive para promover encaminhamentos quando necessários.
>>> Investir no vínculo: Em todo contato, invista no vínculo da Unidade Educacional com as famílias e no vínculo entre professor(a) e aluna(o). Seja afetiva(o) no contato, seja empática(o), pergunte como elas(es) estão de saúde e como tem sido esse período de afastamento. É importante manter esse vínculo para que a aprendizagem a distância faça sentido para as(os) estudantes.
>>> Realizar mapeamentos: Desenvolva regularmente um mapeamento com as famílias de temas sobre os quais gostariam de ter informações e se aprofundar, ou dicas que podem ser úteis. A Unidade Educativa pode realizar uma pesquisa e enviar orientações para as famílias sobre os temas mais recorrentes, ou convidar parceiros da rede para contribuir com lives ou vídeos.
>>> Ser flexível: Às(Aos) Psicólogas(os) que trabalham com consultoria e/ou atendimento/acompanhamento de estudantes, reflete-se a importância de se considerar que existem famílias com redução drástica da renda neste período. Nesse sentido, a flexibilidade nas condições de contrato, quando possível, pode colaborar com essas famílias neste momento, mas também contribuir para a manutenção e expansão dos vínculos profissionais em situações futuras.
Nesse sentido, vale lembrar também do Art. 4º do nosso Código de Ética Profissional, que aponta para a importância de se considerar a justa remuneração de acordo com as características dos serviços e as condições das(os) beneficiárias(os), assegurando a qualidade das ofertas.
>>> Respeitar suas possibilidades: Não se cobre por produtividade neste período, esta é uma crise na qual Psicólogas(os) também estão imersas(os). Não é possível resolver os problemas emocionais de todas(os) neste período – aliás, em tempo algum. Sendo assim, é importante que as(os) profissionais estejam cientes das suas possibilidades, mas também das suas limitações, como medida de preservação da própria saúde.
Saiba mais
sobre a atuação em Psicologia Escolar e Educacional nas Referências técnicas para a atuação de Psicólogas(os) na Educação Básica
Leia também
a Nota Técnica nº 01/2020 do CRP-PR, que orienta a prática profissional no contexto da pandemia: