Notícia

Psicologia e Economia Solidária

Fabiane Kravutschke Bogdanovicz (CRP-08/19219), técnica em Economia Solidária | A profissional escreveu a convite da revista Contato.

Texto originalmente publicado na Revista Contato Jul/Ago 2016

Nos últimos três séculos, o mundo do trabalho observou grandes mudanças. Do fim do feudalismo ao surgimento do capitalismo, passando por suas três fases (comercial, industrial e financeira), os modos de produção, comercialização e prestação de serviços se modificaram intensamente. O capitalismo pode ser resumido como o sistema socioeconômico que tem como foco o acúmulo de capital, com base na propriedade privada, especialmente dos meios de produção, e no trabalho assalariado daqueles que não detêm tais meios.

Inicialmente, a mudança para o sistema capitalista levou à intensificação da circulação de mercadorias e dinheiro após a abertura dos feudos, ao crescimento das cidades, à industrialização com o surgimento do motor a vapor, à abundância da oferta de mão de obra, e à exploração dos trabalhadores pelos donos dos meios de produção, com baixos salários e condições de trabalho degradantes, pois não havia nenhuma regulamentação legal. Tal exploração desenfreada elevou a morbidade e mortalidade dessa massa de trabalhadores (SINGER, 2002, p. 24).

Frente a isso, trabalhadores começaram a se organizar em uma alternativa econômica e política ao capitalismo, de forma horizontal, sem patrão, com propriedade coletiva dos instrumentos de trabalho e gestão democrática, e distribuição equitativa dos excedentes. A educação também foi considerada como um aspecto muito importante para o desenvolvimento das potencialidades. Assim surge, em 1844, o cooperativismo. Esses princípios são a base desse modelo organizativo até hoje (IESOL, 2015, no prelo).

Tal período assistiu também ao nascimento da Psicologia moderna, que, desde seu surgimento, demonstrou-se normativista e elitista, servindo mais aos que podiam pagar por esse conhecimento do que aos que dele necessitavam (CORTEGOSO, CIA e LUCAS, 2008, p. 36). Em sua interlocução com a área do Trabalho, a Psicologia iniciou sua ação (por volta de 1910, como “Psicologia Industrial”) de forma adaptacionista, buscando conseguir “o melhor homem possível, o melhor trabalho possível, o melhor resultado possível” (LEÃO, 2012, p. 294-295). Esse modelo de atuação propôs a separação do trabalho braçal e do trabalho cerebral, retirando dos trabalhadores qualquer poder de decisão, a fim de intensificar sua produção (idem, p. 295). Essa concepção da Psicologia do Trabalho atuou colocando “óleo na engrenagem” do sistema de produção capitalista, a fim de extrair a maior produtividade e o maior lucro do ser simbiótico humano-máquina, sendo a máquina considerada mais valiosa, pois o homem seria mais facilmente substituível (MELLO, 2008, p. 17).

Avançando no tempo para o fim deste século, o modo de acumulação capitalista, com suas intermitentes crises endêmicas, tem gerado uma situação de precarização social de um grande contingente de trabalhadoras e trabalhadores. Com a ampliação do controle exercido pelo capital sobre as relações de trabalho, foram se efetuando reorganizações produtivas, com extinção de empregos e colocação de um único trabalhador para realizar o trabalho de dois ou três (idem, p. 18). Assim, no fim dos anos 80 e início dos 90, o Brasil assistiu a um momento de crise econômica, com desindustrialização, flexibilização de direitos trabalhistas e desemprego em massa. Em resposta a isso, foram buscadas alternativas por movimentos sociais, entidades ligadas à igreja católica (Cáritas e Pastorais), sindicatos e universidades, a fim de gerar trabalho e renda de forma associativa à massa de trabalhadores rejeitados do mercado de trabalho formal. Retomando os princípios do cooperativismo do século XIX, surge então a Economia Solidária (SINGER, 2002, pp. 110; 122-124).

A Economia Solidária (EcoSol) é uma forma diferente de trabalhar e viver, “baseada na crença de que o ser humano e a natureza são mais importantes que o dinheiro, que a cooperação é superior à competição, que a solidariedade, e não o egoísmo, deve orientar as ações humanas, que a felicidade deve guiar nossa existência” (IESOL, 2015, no prelo). Tem como base o bem viver coletivo, com os seguintes valores:

  • Autogestão: trabalhadoras e trabalhadores organizados, não mais subordinados a um patrão, são igualmente donos de seu empreendimento e, protagonistas, tomam suas próprias decisões de forma coletiva e participativa;
  • Cooperação: em vez de competição, é a união dos esforços e capacidades, em prol dos objetivos decididos coletivamente;
  • Democracia: prática cotidiana que transforma as relações, inclusive as econômicas;
  • Solidariedade: não é assistencialismo; compreende a justa distribuição dos resultados, oportunidades de desenvolvimento, preocupação com o bem-estar das trabalhadoras e trabalhadores e também das consumidoras e consumidores;
  • Sustentabilidade e respeito ao meio-ambiente;
  • Valorização e promoção da dignidade do trabalho humano, com justiça social;
  • Valorização dos saberes locais e da aprendizagem constante;
  • Dimensão econômica: a finalidade maior da atividade econômica é satisfazer plenamente as necessidades de todas e todos.

Ainda nos anos 80, em um movimento crescente a partir das décadas anteriores, a Psicologia atravessou profundas mudanças, questionando a responsabilidade da profissão com a realidade sociopolítica do contexto latino-americano e seu compromisso com a modificação da situação social dos povos oprimidos. Essas reflexões profundas deram origem a várias abordagens comprometidas com a transformação social, contextualizadas, históricas, descolonizadas e sem a ilusão positivista da neutralidade científica, como, por exemplo, a Psicologia Social Crítica e a Psicologia Social Comunitária.

Com base nesse novo paradigma, pode-se retomar a relação da Psicologia com o campo do trabalho, não mais de forma adaptativa, mas compreendendo as formas de trabalhar como relacionadas “não apenas à produção e distribuição de produtos e serviços, mas à recriação da vida de cada sujeito e da vida em sociedade” (VERONESE, 2008, p. 56). O sujeito, ao mesmo tempo em que constitui o mundo, é constituído por ele, em suas relações, sendo o trabalho um espaço de vivências ricas de significados e para construção identitária, que também conta com conflitos e assimetria de poder.

Se a Psicologia Organizacional e do Trabalho (POT) olhar para o trabalho sob o modo de produção capitalista, atuará sob a lógica do capital, visando ao lucro, “em detrimento do ser humano e da valorização do trabalho”, privilegiando o individualismo, a competição, a hierarquia, e acentuando as diferenças sociais (BARATIERI e BEATRIZ, 2013). A Psicologia Social do Trabalho atenta então para o “caráter histórico, heterogêneo, contraditório e conflituoso” das relações de trabalho, não se alinhando aos interesses gerenciais, e sim à perspectiva das próprias trabalhadoras e trabalhadores, dentro de um entendimento do contexto sócio-histórico mais amplo, para além do indivíduo e individualismo (BERNARDO et al, 2015, pp. 23; 25; 27).

A atuação da POT na perspectiva da EcoSol possibilita pensar outras formas de trabalho, para além do trabalho formal assalariado, outros arranjos de produção, comercialização, prestação de serviços e consumo, com outras relações entre seus atores sociais. Tendo como perspectiva o empoderamento e a emancipação das trabalhadoras e trabalhadores, a EcoSol propicia vivências de relações de poder horizontais, democráticas, com pertencimento grupal, respeito à singularidade na experiência coletiva, entre outros elementos que são tão divergentes das vivências do mundo de trabalho capitalista experimentadas por essas mesmas trabalhadoras e trabalhadores. A Psicologia Social do Trabalho pode acompanhar esses processos, problematizando a naturalização da reprodução dos modelos aprendidos, auxiliando na conciliação dos interesses e projetos individuais e coletivos, manejo dos conflitos, potencialização da participação consciente da experiência autogestionária e autônoma, enfim, no compromisso com a transformação social.

No contexto atual de crise, olhar para modelos alternativos de arranjos socioeconômicos, entendendo o trabalho para muito além do emprego formal, é um importante elemento para superação das mazelas consequentes do capitalismo, como o desemprego, o empobrecimento e as próprias crises. Podem ser citados como alguns desses modelos alternativos a criação de cooperativas e associações de Economia Solidária e a criação de clubes de troca (em que produtos e serviços são trocados diretamente sem mediação monetária ou com uso de moedas sociais), que se apresentam como respostas criativas e potentes de organização das trabalhadoras e trabalhadores, comprovando cotidianamente que “uma outra economia é possível”.

Referências

BARATIERI, Iara Lais Raittz; BEATRIZ, Marilene Zazula. Campo de atuação do(a) psicólogo(a) no movimento da Economia Solidária no Brasil. Cad. Psicol. Soc. Trab., São Paulo, v. 16, n. 1, p. 71-86, jun. 2013

BERNARDO, Marcia Hespanhol; SOUSA, Caroline Cristiane de; PINZÓN, Johanna Garrido; SOUZA, Heloisa Aparecida de. A práxis da Psicologia Social do Trabalho: relexões sobre possibilidades de intervenção. In: COUTINHO, Maria Chalfin; FURTADO, Odair; RAITZ, Tânia Regina. Psicologia Social e trabalho: perspectivas críticas. V. 1. Florianópolis: ABRAPSO Editora: Edições do Bosque, 2015. Pp. 16-39

CORTEGOSO, Ana Lucia; CIA, Fabiana; LUCAS, Miguel Gambelli. Economia Solidária: O que é e como se relaciona com a Psicologia. In: CORTEGOSO, Ana Lucia; LUCAS, Miguel Gambelli (orgs.). Psicologia e Economia Solidária: interfaces e perspectivas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008. Pp. 25-37.

IESOL. Cartilha Economia Solidária: incubando outra sociedade. Ponta Grossa: UEPG, 2015. No prelo.

LEÃO, Luis Henrique da Costa. Psicologia do Trabalho: aspectos históricos, abordagens e desafios atuais. Revista ECOS. N. 2, v. 2, pp. 291-305. 2012

MELLO, Silvia Leser de. Por que Economia Solidária? Por que Psicologia? In: CORTEGOSO, Ana Lucia; LUCAS, Miguel Gambelli (orgs.). Psicologia e Economia Solidária: interfaces e perspectivas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008. Pp. 16-22.

SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Perseu Abramo, 2002.

VERONESE, Marília Veríssimo. A contribuição da Psicologia na potencialização do coletivo em Empreendimentos Econômicos Solidários. In: CORTEGOSO, Ana Lucia; LUCAS, Miguel Gambelli (Orgs.) Psicologia e Economia Solidária: interfaces e perspectivas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008. Pp. 53-67

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