No dia 8 de março comemora-se o Dia Internacional das Mulheres, data oficializada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1970 e incluída no calendário de diversos países, simbolizando a histórica luta das mulheres por equiparação social. Originalmente criada em memória à intensa luta por igualdade de direitos das mulheres europeias, tem como base de referência à greve das tecelãs russas, em 1917. É preciso atentarmos para essa história, a fim de lembrarmos que mulheres em situação de trabalho precário já existiam antes da Revolução Industrial, mas seus corpos não brancos, não europeus e, alguns, não cisgêneros não foram os que apareceram nas reivindicações das datas que fundamentaram o calendário.
Quando abordamos esta data, precisamos refletir não apenas no sentido da palavra-chave mulher – o outro do homem no binarismo – adentrando a questão ocidental e colonial de gênero, mas também esmiuçar os diversos contornos que são colocados sobre esse corpo, como raça, sexualidade, condição econômica, etnia, localização geográfica, etc., o que convoca um olhar interseccional. Ao lembrarmos da origem trabalhista da data, cabe refletirmos: onde estavam as mulheres não brancas enquanto as brancas se mobilizaram nas lutas por igualdade de direitos? Como estavam as mulheres não brancas latino-americanas nesse mesmo período? E como estavam as mulheres trans e travestis?
Essas reflexões nos levam a observar que, ainda nos dias atuais, as condições de precariedade e as relações de poder atravessam o ingresso e as experiências das mulheres no mundo do trabalho. A divisão sexual do trabalho aparece naturalizada nestes contextos com intensa jornada laboral, relação de superioridade dos homens, relações de poder e ganhos financeiros inferiores para as mulheres. Nessa lógica perversa, algumas mulheres se encontram em condições ainda mais vulneráveis devido à sobreposição de marcadores sociais de opressão.
As mulheres com deficiência enfrentam barreiras no acesso à renda e representam a minoria no mundo do emprego formal em comparação às mulheres sem deficiência e mesmo aos homens com deficiência. Os dados são do censo do IBGE (2010), que também mostra um percentual maior de deficiência em mulheres do que em homens, e percentual maior de mulheres negras com deficiência do que brancas. Ainda que o cenário brasileiro se configure de tal maneira, as políticas de acesso e permanência no mundo do trabalho – e demais políticas de inclusão – são desenhadas sem considerar tais interseções, prejudicando sua efetividade no atendimento da realidade heterogênea das mulheres com deficiência. É importante a avaliação do impacto do gênero nas políticas de inclusão, assim como a consideração dos atravessamentos da deficiência nas políticas voltadas aos direitos das mulheres.
A inclusão das mulheres com deficiência no mundo do trabalho é comprometida pela discriminação e pela falta de acessibilidade e suporte, especialmente para as trabalhadoras que necessitam de apoio para realização de cuidados primários, como higiene e alimentação. A lógica capacitista desresponsabiliza a sociedade da necessidade de mudança estrutural, e se esquiva no discurso da incapacidade individual e da falta de formação e preparo dessas mulheres, como justificativa para sua exclusão dos espaços de trabalho.
Desde a assinatura da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU (2008), o Brasil se compromete oficialmente com o reconhecimento de que mulheres e meninas com deficiência estão sujeitas à discriminação múltipla. E, pela mesma norma, se compromete a tomar as medidas apropriadas para assegurar o pleno desenvolvimento, avanço e empoderamento dessa população.
Conforme dados do Fundo de Populações das Nações Unidas (2016), as mulheres com deficiência possuem dez vezes mais chances de sofrer violência sexual, além de esterilização e aborto forçados. É um cenário de vulnerabilidade que se estende quando analisamos outras formas de violência, inclusive nas relações de trabalho. As expectativas sociais sobre as mulheres com deficiência as excluem do direito ao exercício da sexualidade, do trabalho de qualquer natureza e até mesmo de papéis tradicionais, como a maternidade e o casamento.
Para as mulheres trans, o mundo do trabalho também é marcado por cenários de preconceito, exclusão e violências, resultando em um número reduzido de oportunidades de emprego para essa população. De acordo com pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (2020), menos de 14% das mulheres trans e travestis estão inseridas em vagas formais de emprego: um percentual significativamente baixo, inclusive se comparado com o de homens trans (59,4%). As barreiras de acesso ao mercado formal influenciam a saúde física e mental das mulheres trans, e as direcionam a situações de maior vulnerabilidade e risco social.
Dados do Center for Talent Innovation (2016) mostram que 61% das profissionais brasileiras não falam abertamente sobre sua orientação sexual e identidade de gênero no ambiente de trabalho. A múltipla discriminação vivenciada por mulheres LGBTQIA+ implica a falta de representatividade no mundo do trabalho. O censo multissetorial da Gestão Kairós (2022) mostrou um cenário geral de empresas em que apenas 1,5% das trabalhadoras se declararam lésbicas e 1,1%, bissexuais, sem registros de mulheres pansexuais: percentuais dissonantes do apontado para mulheres que se declararam heterosexuais (97,4%). Em posições de liderança, o censo mostrou uma queda de dois pontos no percentual de autodeclaração.
Ainda que um crescente número de empresas esteja construindo políticas de diversidade para seleção de novos profissionais, os ambientes e relações de trabalho não estão livres de reproduzir os mecanismos sociais de exclusão. A lgbtfobia, o capacitismo e o racismo somam-se à lógica machista nas relações de poder que inferiorizam as mulheres trabalhadoras.
O fator étnico-racial constitui elemento importante na distribuição de oportunidades de emprego. Conforme informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continuada do IBGE (2022), apenas metade das mulheres negras com idade laboral está no mercado de trabalho, seja buscando emprego ou ocupada, com alto percentual de informalidade entre estas últimas. A taxa de desemprego entre mulheres negras é o dobro da registrada entre homens brancos (22,1% e 10%) e distante da taxa referente às mulheres brancas e homens negros (13,8%). O impacto do marcador racial é evidenciado quando debruçamos nossa análise sobre o trabalho doméstico. Segundo boletim recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, essa categoria de trabalho é composta majoritariamente por mulheres (92,3%), entre as quais 67,7% são negras, com ampla e crescente atuação na modalidade de diaristas.
A condição das trabalhadoras domésticas, atravessada por condições de exploração e precariedade, reflete a formação social de nosso país. Marcado pelo racismo estrutural, o Brasil mantém diferenças salariais baseadas em recortes de gênero e raça. Conforme boletim do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (2022), a remuneração de mulheres negras configura quase metade (54,9%) do valor recebido por homens brancos. Na ausência de igualdade de oportunidades, o mercado de trabalho tende a sancionar e reforçar as desigualdades sociais.
Apresentamos o cenário de trabalho das mulheres brasileiras para lembrar que o dia 8 de março se trata, além de uma data de luta pela igualdade social da mulher, de um marco na construção social de resistência contra a estratificação capitalista que surge como ferramenta do sistema patriarcal ocidental e colonial. Esse sistema se caracteriza pela ênfase no uso de dominação baseada numa suposta superioridade para subordinar outros sujeitos que são tidos como inferiores, que determina a acumulação e competição agressivas como forma de conduta e prioriza a individualização, o domínio da natureza e o distanciamento dos afetos, excluindo e exterminando o que é diferente. Ainda, para sua manutenção, depende intensamente da exploração das mulheres, nos seus mais diversos marcadores sociais, em toda sua diversidade.
A nós, da Psicologia, fica a responsabilidade de conhecer tais contextos discriminatórios e contribuir para sua transformação, de forma a promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades. De acordo com os princípios fundamentais do Código de Ética Profissional, é dever do nosso trabalho fazer a análise crítica e histórica da realidade política, econômica, social e cultural, e a consideração das relações de poder nos contextos que atuamos.
Neste 8 de março, somamos na defesa dos direitos humanos de todas as mulheres, sejam cis, trans, negras, indígenas, brancas, endossexo ou intersexo, com ou sem deficiência, e em toda a pluralidade de ser mulher, assim como no compromisso com a transformação social e a promoção da dignidade humana. Respeite a identidade de gênero das pessoas.