Texto escrito pelas psicólogas Julia Mezarobba Caetano Ferreira (CRP-08/25872) e Leila Ribeiro Rubini (CRP-08/13719), integrantes do Núcleo Pop Rua do CRP-PR
Você sabia que, desde 2005, o dia 19 de agosto é considerado, no Brasil, o Dia de Luta e Luto da População em Situação de Rua? A data surge a partir da necessidade de lembrar para não repetir; afinal, foi nesta data, em 2004, que o evento conhecido como Chacina da Sé começou em São Paulo, durando até o dia 22 daquele mesmo mês, culminando na morte de sete pessoas e no ferimento grave de outras seis.
Diante da morte e do sofrimento das vítimas da Chacina da Sé, no dia 19 de agosto relembramos o acontecido e atualizamos o nosso luto. Lembramos de tantas outras pessoas em situação de rua que tiveram suas vidas ceifadas ativamente – por crimes de ódio -, ou de maneira menos declarada, em decorrência da inércia e da ineficácia governamentais para dar uma resposta adequada àquelas pessoas que não conseguem exercer um direito tão fundamental quanto o da moradia adequada.
Mas também é no dia 19 de agosto que reafirmamos nossa luta por políticas públicas e conquistas coletivas pelo grupo de pessoas em situação de rua, celebrando o surgimento do Movimento Nacional de População de Rua (MNPR), único movimento social em todo o nosso território nacional composto pela classe de pessoas atingidas pela realidade que lutam para modificar. O MNPR é composto apenas por pessoas que estão ou já estiveram em situação de rua. Para nós, do CRP-PR, é uma honra imensa militar ao lado dessas pessoas que conseguiram, das adversidades, constituir a força e o combustível necessários para a luta.
Pela memória dessas companheiras e desses companheiros, lançaremos ao longo do próximo mês uma série com vídeos curtos nos quais pessoas com trajetória de rua do Paraná darão breves relatos de suas vivências. Iniciamos com o potente relato de Luis Maurício de Souza, que nos ensina tão bem, a partir de suas vivências, o que sentiu na pele e a importância do lema “nada sobre a rua, sem a rua”.
Quantas famílias estão precisando [do acesso à moradia]? Quantos e quantas pessoas do bem estão na rua sem condições de pagar um aluguel? Então essas situações causam muita tristeza em mim. Às vezes eu deito pra dormir e penso nos estão lá fora no frio, na chuva, não têm o que comer, não têm onde dormir, é muito doloroso. É doloroso demais.
São relatos como esse que nos confrontam com a realidade. Nós, pessoas domiciliadas que não possuímos trajetória de rua, nada sabemos sobre as vivências de quem já enfrentou a ausência de moradia e as consequências de todas as intempéries da constante privação de barreiras protetoras que a moradia representa e traz, efetivamente, à integridade física e à saúde mental.
Repetimos: nós não sabemos nada sobre essa realidade, por mais que tenhamos contato com uma ou algumas pessoas que já enfrentaram essa situação, por mais que trabalhemos/militemos ao lado desse grupo populacional; por mais que já tenhamos estudado, lido artigos ou assistido a documentários que narram essas vivências, nós não sabemos nada sobre a vida nas ruas.
Essa percepção é imprescindível para que não incorramos em práticas que deslegitimem as vivências de quem está ou já esteve em situação de rua; afinal, tal postura é extremamente violenta e dificulta muito o processo de construção de saúde mental de pessoas que se encontram ou já se encontraram em estado de vulnerabilidade social. Nós, enquanto categoria psi, precisamos dar o protagonismo que é de direito às pessoas em situação de rua. São elas que detêm a verdade sobre suas vidas e não podem, de forma alguma, ser desconsideradas nos processos que visam ao resgate da autoestima, do senso de segurança e de pertencimento, e da promoção da cidadania.
Retomemos, pois, a fala de Luis Maurício de Souza:
Foram quase dezoito anos na rua até eu conseguir estar num lugar seguro pra mim, porque se eu sair do portão pra fora com certeza vai me dar vontade e eu não quero, quero mudança de vida porque ninguém merece morar na rua. O governo não faz nada, só promete, só promessas, promessas vazias.
Esse relato nos leva a pensar que 19 anos se passaram desde a Chacina da Sé e 18 desde a criação do MNPR. De fato, o que mudou de lá para cá? Quais são os pontos que representam avanços na luta pelos direitos das pessoas em situação de rua? Quais outros precisam avançar? E qual o papel da nossa categoria nesse contexto?
É verdade que o Sistema Conselhos de Psicologia é, historicamente, um importante parceiro e apoiador do MNPR, tanto nos cenários regionais quanto no nacional. A profissão da Psicologia desempenha um papel fundamental na promoção dos direitos humanos, no resgate e cuidado à saúde mental, bem como no desenvolvimento de habilidades que são necessárias para a retomada de uma vida domiciliada.
Estudamos sobre o fenômeno da cronificação da situação de rua e seus efeitos nas constituições subjetivas das pessoas que vivenciam tal processo. Nós nos especializamos em redução de danos, promoção de cidadania, resgate da autoestima e promoção de autocuidado. Pensamos na qualidade do sono, nas habilidades caras à (re)inserção no mundo do trabalho, na importância da promoção de segurança alimentar e nutricional. Cabe à Psicologia promover a perspectiva transdisciplinar visando ao desenvolvimento do bem-estar e do bem viver.
Na outra mão, também precisamos estar alertas para que a categoria profissional da Psicologia não viole, ainda que indiretamente, os direitos da população em situação de rua, seja negando atendimento, seja perpetuando práticas estigmatizantes e segregadoras, atuando em locais que violam os direitos humanos e criminalizando as vivências das vidas nas ruas. Pensando nisso, o CRP-PR está, por intermédio da Comissão de Orientação e Fiscalização (COF) e em parceria com o Núcleo Pop Rua, produzindo, de maneira pioneira, uma série de normativas que orientarão a nossa categoria no atendimento à pessoa em situação de rua. As diretrizes servirão como respaldo ao plenário nos eventuais procedimentos ético-disciplinares que visam averiguar possíveis infrações no atendimento a esse público.
Nossa categoria está cada vez mais inserida nos equipamentos públicos, seja na esfera da saúde, seja da assistência social, além de atuar diretamente nos diversos espaços de controle e participação social que subsidiam a formulação de políticas públicas para população em situação de rua. Em razão disso, deixamos aqui o nosso apelo para que essas questões sejam abordadas na formação em Psicologia pelas diversas instituições formadoras, as Instituições de Ensino Superior (IES). Pensando nisso, temos atuado e incidido diretamente, no âmbito do Sistema Conselhos, nas normativas que orientam as IES sobre as diretrizes curriculares de Psicologia.
Precisamos de uma categoria cada vez mais alinhada às demandas sociais e sensível aos grupos que têm seus direitos violados pela lógica racista, neoliberal, colonial, baseada em valores capitalistas que marginalizam grupos não hegemônicos que enfrentam muita dificuldade em alcançar os espaços deliberativos de poder político. Endossamos a luta do MNPR: nada sobre a rua, sem a rua. E, sempre que nos for possível, apoiaremos as pessoas com trajetória de rua para que alcem voo e cada vez mais ocupem os espaços de poder.