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Notícia

Lei de Migração e acesso a direitos

Texto do Núcleo de Psicologia e Migrações (NUPSIM) do CRP-PR

Atualmente, a política migratória brasileira, estabelecida pela Lei de Migração (Lei nº 13.445, de 24 de Maio de 2017), é regida por princípios como o repúdio e o combate à discriminação, seja em razão de raça e/ou etnia, origem, religião ou das formas pelas quais a pessoa foi admitida em território nacional. Para tal, promove a entrada regular e a regularização documental, visando à inclusão social, laboral e produtiva de pessoas migrantes por meio de políticas públicas, o acesso igualitário e livre a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social. Por prever a garantia destes direitos, a nova Lei da Migração representa avanços significativos em relação ao ordenamento jurídico que a precedeu, o Estatuto do Estrangeiro, promulgado no período da Ditadura Militar e pautado no paradigma da segurança nacional.

 

Mas, em matéria de direitos, isto não é novidade, já que as Leis Orgânicas da Saúde e da Assistência Social (Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990 e Lei nº 8.742, de 7 de Dezembro de 1993, respectivamente), estipulam o acesso universal e a igualdade de tratamento em seus serviços. O mesmo é verdadeiro para a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, de 20 de Dezembro de 1996), que promulga a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola.

A falta da regularização migratória inviabiliza o acesso das pessoas deslocadas às políticas emergenciais em tempos de crise sanitária, intensificando processos de vulnerabilização de suas vidas.

Pandemia do Covid-19 e seus impactos

Entretanto, no atual contexto se torna evidente a defasagem destas leis em relação a sua aplicabilidade. Neste período de pandemia da Covid-19, podemos situar a emergência de entraves legais às(aos) migrantes sem documentos no que concerne ao seu acesso aos direitos e benefícios sociais. Tendo em vista a impossibilidade de liberação de documentos como o Registro Nacional Migratório (RNM) e o Protocolo de Solicitação de Refúgio, dada a redução das atividades da Polícia Federal e a suspensão de serviços de regularização, muitas pessoas migrantes ou solicitantes de refúgio se encontram impedidas de ter acesso às políticas, como o Auxílio Emergencial. A falta da regularização migratória inviabiliza o acesso das pessoas deslocadas às políticas emergenciais em tempos de crise sanitária, intensificando processos de vulnerabilização de suas vidas. Estes entraves ferem gravemente os princípios presentes na Lei de Migração, promovendo a exclusão sistemática de pessoas migrantes indocumentadas a estes benefícios e produzindo barreiras em seu acesso a direitos sociais.

 

A urgência em instituir um programa de regularização emergencial para pessoas migrantes e suas famílias é uma responsabilidade coletiva e intersetorial e deve ser uma resposta coordenada aos efeitos segregatórios de uma política que negligencia a condição sociopolítica destas populações e produz graves efeitos em sua saúde mental e bem-estar psicossocial. Reações como a angústia e o medo de não conseguir sustentar a si mesmo ou a sua família são extensamente relatadas durante este período. Portanto, a negligência institucional é um agravante destas condições, invisibilizando as demandas e o sofrimento destas comunidades.

 

Além disso, não são raros os casos de pessoas migrantes indocumentadas que acreditam não terem acesso aos serviços públicos, muitas vezes desconhecendo sua gratuidade. A cartilha publicada pela Fundação Oswaldo Cruz e seu Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde (FIOCRUZ/CEPEDES), denominada Saúde mental e atenção psicossocial na pandemia COVID-19: pessoas migrantes, refugiadas, solicitantes de refúgio e apátridas, reflete sobre algumas das dificuldades mais comuns que concernem a migrantes não regularizadas(os) e seu acesso aos serviços e políticas públicas:

A pessoa migrante pode possuir a crença de que a falta de documentos seria um fator impeditivo para seu acesso aos serviços de saúde, ou que acessar esse serviço sem dispor de documentos ou de status migratório regular geraria uma suposta denúncia às instâncias jurídicas brasileiras e o impedimento de retirar futuros documentos.

Pessoas migrantes participam de forma importante nas esferas econômica e cultural brasileiras: são trabalhadoras e trabalhadores, integrantes ativas(os) de suas comunidades e mobilizadoras(es) de transformação social. A defesa pela regularização emergencial de sua situação migratória deve ser um esforço coletivo, visando a possibilitar que alcancem condições plenas de cidadania e considerando suas experiências frente à crise político-sanitária em que estamos inseridas(os). Além disto, deve reconhecer o valor de sua participação social, garantindo direitos que, como vimos anteriormente, prezam por seu livre e igualitário acesso. Desta forma, a defesa de uma política que seja verdadeiramente inclusiva se revela, desde a Psicologia, uma ferramenta de cuidado. A ação política é também um instrumento de transformação dessas realidades, impactando diretamente as comunidades que constituímos e prestamos assistência.

A situação de fragilidade econômica imposta pela pandemia levou diversas famílias à dificuldade de geração de renda, à possibilidade de desemprego e despejo de suas casas.

Regularização migratória e acesso à moradia

Ao colocar em discussão os impactos da regularização migratória, faz-se importante mencionar a campanha popularizada pela hashtag #RegularizaçãoJá, que apresentou destaque no início da pandemia. Esta campanha surge de um movimento anterior à pandemia da Covid-19, relacionado às demandas de anistia migratória. A anistia, segundo o Glossário sobre Migrações, é definida por um ato pelo qual o Estado concede às(aos) migrantes não documentadas(os), residentes em seu território, um aceite ou perdão, fazendo possível a regularização migratória e permanência no país. A Lei de Migração, sancionada em 2017, assegura e protege os direitos da(o) migrante; no entanto, teve sua aprovação com um veto ao pedido de anistia de migrantes que entraram no Brasil até 6 de julho de 2016. Este pedido tinha como objetivo garantir a permanência e regularização de migrantes que chegaram ao Brasil até a data mencionada. Ao ser vetado, revelou uma grande perda no avanço dos processos de solicitação migratória em análise.

 

A campanha #RegularizaçãoJá toma força mundialmente em apoio a migrantes que estão fora de seus países de origem e não possuem documentos, dado que a situação de indocumentação é agravada pela condição de vulnerabilidade psicossocial provocada pela pandemia do novo coronavírus. Esta campanha adquire especificidades nos diferentes países, mas tem como fundamento a mesma proposta de reconhecimento de direitos e da dignidade humana dessa população. Iniciativas internacionais inspiraram a campanha brasileira, como, por exemplo, o processo de regularização migratória dos pedidos de residência pendentes em Portugal ou na Espanha. A campanha no Brasil teve apoio de diversos coletivos, entidades e instituições da sociedade civil e fomentou a elaboração do Projeto de Lei nº 2699/20, proposta que concede residência permanente a imigrantes que entraram no país até o dia 21 de novembro de 2017 – data da vigência da nova Lei de Migração. Assim, o contexto pandêmico demanda a urgente mobilização da população e dos gestores públicos frente às desigualdades agudizadas, considerando ainda as condições de trabalho precárias, desproteção e exploração dos indivíduos em condição migratória.

 

Ademais, a situação de fragilidade econômica imposta pela pandemia levou diversas famílias à dificuldade de geração de renda, à possibilidade de desemprego e despejo de suas casas. Neste cenário, é possível notar o aumento de pessoas em situação de rua e vivendo em ocupações urbanas. No Estado do Paraná, um exemplo é a Ocupação Nova Esperança, organizada em um terreno que não cumpria sua função social na cidade de Campo Magro em março de 2020, no início da pandemia. Atualmente, habitam cerca de 1200 famílias, aproximadamente cinco mil pessoas, dentre as quais 1600 são crianças e mais de 1700 migrantes são haitianas(os). Na ocupação também vivem imigrantes venezuelanas(os) e cubanas(os) que compõem esta comunidade, muito embora as famílias da ocupação estejam correndo o risco de serem despejadas devido ao processo de reintegração que está em curso.

 

Isso nos remete à violenta situação que ocorreu recentemente na França, na qual centenas de migrantes indocumentadas(os) que passavam por uma situação de extrema fragilidade foram despejadas(os) brutalmente de seu acampamento nos arredores de Paris. Medidas como estas ferem os Direitos Humanos, os quais preveem que todo ser humano tem direito à segurança social, seja manifesta por esforço nacional ou pela cooperação internacional de acordo com os recursos do Estado, garantindo os direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade, não sendo feita distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença.

Saúde Mental e Direitos Humanos

A condição migratória expõe a necessidade de proteção internacional desses sujeitos e a responsabilização do governo por essa população, ao considerar que a não regularização implica diversas formas de exclusão e marginalização da população migrante. A situação migratória é determinante para uma participação ativa na sociedade, dado que é condição para o acesso aos trabalhos formais, à moradia, à seguridade social, à reunião familiar, ao casamento e aos sistemas de saúde e educação. O não reconhecimento enquanto um sujeito de direito contribui para uma ideia de não lugar na sociedade e, portanto, implicações na saúde mental são consequências diretas da impossibilidade de organização concreta.

 

Reconhecendo a responsabilidade social da Psicologia como ciência e profissão e a condição de desigualdade e negligência instituída à comunidade de pessoas migrantes não regularizadas, o Núcleo de Psicologia e Migrações (NUPSIM) entende como necessário promover o diálogo acerca desta realidade e reivindicar uma posição que contemple os princípios e valores defendidos pelo Código de Ética profissional. O NUPSIM, criado em 2015, visa a integrar os diversos serviços e instituições que atuam com a temática migratória na área da Psicologia, bem como proporcionar um espaço de diálogo e reflexão sobre o tema. Além desse processo de sensibilização e diálogo com a comunidade, o núcleo também atua na construção de políticas públicas representando o CRP-PR no Conselho Estadual dos Direitos de Refugiados, Migrantes e Apátridas do Paraná (CERMA), instituição que atua na garantia de direitos das populações migrantes, de forma a combater quaisquer formas de negligência, discriminação ou exploração.

 

O movimento pela regularização migratória suscita a reflexão quanto aos princípios éticos da Psicologia fundamentados na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Deste modo, a Psicologia tem o compromisso social de defender a promoção igualitária de acesso à saúde, à assistência social, moradia, residência e qualidade de vida a todos os seres humanos, além do combate às violências e às opressões. Em nossa prática, precisamos nos atentar para os fatores de vulneração e às barreiras impostas pela migração, compreendendo como a saúde mental está relacionada à organização dos sujeitos em sua dinâmica concreta.

 

No 10 de dezembro comemora-se o Dia Internacional dos Direitos Humanos. Portanto, pensar na articulação deste tema com a temática migratória e a promoção de saúde mental é fundamental para a construção de uma Psicologia comprometida com a garantia de Direitos Humanos. Por isso, o NUPSIM convida a categoria para uma reflexão quanto às necessidades e possibilidades no campo da saúde mental e das políticas públicas, ao considerarmos as especificidades da migração.

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