Medidas de desarmamento favorecem combate à violência e precisam ser retomadas com urgência
A maioria da população brasileira é contrária à facilitação do acesso a armas de fogo. Segundo dados do Panorama Político, pesquisa realizada pelo Senado Federal, divulgada no início deste ano, 60% das pessoas discordaram de iniciativas nesse sentido. Apesar de o percentual ser mais baixo que o percebido em pesquisas anteriores, demonstra a consciência da população acerca dos riscos da posse e porte de armas de forma indevida.
Desconsiderando a preocupação da maior parte do povo brasileiro, os últimos anos foram marcados pela facilitação ao acesso a armas, com consequências graves, sobretudo para as populações vulnerabilizadas. Atualmente, o número de armas na mão da população já ultrapassa em muito aquelas sob tutela do poder público, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022).
No Sistema Nacional de Armas (Sinarm), sistema integrados de registro de armas do Exército Brasileiro e da Polícia Federal, por exemplo, em 2021, das cerca de 1,5 milhão de armas de fogo com registro ativo, apenas 384.685 estavam ligadas a órgãos públicos como as polícias civis, federal, rodoviária federal e guardas municipais, além de instituições como Tribunais de Justiça e Ministério Púbico. Mais grave ainda: o número de armas existentes no país é muito maior, mas há um descontrole e dificuldade no rastreio delas, que, embora adquiridas legalmente, são muitas vezes direcionadas para grupos criminosos.
Diferentemente do que alegam as informações falsas e sensacionalistas que chegam à população pelas redes sociais, as armas trazem riscos e ampliam a violência ao invés de mitigá-la, como mostram as pesquisas do setor.
Violência nas escolas
A necessidade de maior fiscalização e investimento no desarmamento é evidente no resultado de estudos como o “Raio-x de 20 anos de ataques a escolas no Brasil”, realizado pelo Instituto Sou da Paz. O caso recente de Cambé, na região norte do Paraná, que deixou duas pessoas mortas, é uma tragédia que nos lembra da urgência de lutar contra a violência e construir uma cultura de paz.
Nos últimos 20 anos, foram 25 casos de ataques a escolas no Brasil, causando 139 vítimas: 46 pessoas mortas e 96 feridas. As armas de fogo foram utilizadas em 76% dos casos de morte, segundo esse levantamento.
De acordo com o Instituto, o ano de 2023 já é o que registra mais episódios, com 7 ataques. Em 2022 haviam sido 6 e em 2019, três casos. Todos os 16 casos – a maior parte, portanto – ocorreram após 2019, ano em que se iniciou a flexibilização do acesso às armas.
Feminicídios
As armas também são utilizadas para vitimar a maioria das mulheres. O Instituto Sou da Paz também divulgou, em 2021, um levantamento que mostra que mais de 50% dos casos de feminicídio foram realizados com esse tipo de instrumento.
O perfil das mulheres mortas por emprego de arma de fogo apresentado pelo estudo aponta para uma maioria de mulheres negras (70,5%) e jovens (51,8% tinham até 29 anos de idade).
O Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostra que o maior crescimento do número de mortes de mulheres tem sido dentro dos lares. A análise dos indicadores entre 2009 e 2019, por exemplo, indica um crescimento de 10% nessas taxas, sinalizando a tendência de violência doméstica.
População negra
As chances de uma pessoa negra ser morta por arma de fogo é 2,5 maior do que as de uma pessoa não negra. Se considerarmos assassinatos por armas de fogo, homens negros são 3,5 vezes mais propensos a serem assassinados que os não negros.
E esses números só crescem. De acordo com dados divulgados pela Organização das Nações Unidas (ONU), entre 2006 e 2016, os homicídios entre negros subiu 23,1%, enquanto entre os não negros houve queda de 6,8%. No Brasil, de 2012 a 2020, mais de 254 mil homens negros foram assassinados vítimas de arma de fogo, o que corresponde a 75% do total de 338 mil mortes, segundo levantou o Instituto Sou da Paz.
Suicídios
Os números também mostram que há maiores índices de suicídios quanto maior a disponibilidade para a população em geral de armas de fogo. No início de 2019, um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Boston e publicado na revista American Journal of Preventive Medicine apurou que, para cada 10% de aumento na prevalência na posse de armas de fogo, existia um aumento associado de 26,9% na taxa de suicídios de jovens. O estudo avaliou dados dos Estados Unidos coletados entre 2005 e 2015.
Esses estudos são complexos, uma vez que envolvem uma série de fatores. No entanto, os números corroboram diversas outras pesquisas que apontam, igualmente, para uma correlação entre essa disponibilidade e o número de mortes por suicídio, que vai além da simples disponibilidade do método. Os dados mostram que o acesso a armas conduz a tentativas com maior índice de letalidade e menos oportunidades de intervenção e socorro antes da ocorrência.
A falácia da defesa pessoal
Se a maior parte da população deseja o desarmamento, o principal argumento utilizado por quem defende a facilitação do acesso a armas é que essa é uma boa medida para ampliar a possibilidade de defesa pessoal e prevenção de crimes.
Esse é um argumento plausível em uma sociedade marcada pela violência e pelo medo, mas que não encontra base nas pesquisas e estudos científicos. David Hemenway, diretor de um dos centros de pesquisas mais relevantes na temática, o Harvard Injury Control Research Center, em entrevista ao programa Milênio, da Globo News, comenta esses dados.
Para o pesquisador, que analisa números de violência causada por arma de fogo há décadas, as pesquisas mostram que, para as pessoas em geral, tem-se muito menos segurança com uma arma:
“Ter uma arma em casa aumenta os riscos de disparos acidentais. (…) As indicações de que ter arma aumenta os riscos de suicídio é impressionante. Porque, se a arma estiver lá e for usada, a taxa de morte é de mais de 90%. Quando se usam métodos comuns, como medicamentos, essa taxa é de 2% ou 3%. E, também, temos muitas provas de que ter armas aumenta os riscos de morte para as mulheres em casa em qualquer tipo de situação que leve à violência doméstica. Ter armas é tão perigoso porque, em quase 99,99% das vezes, as pessoas não sabem usar a arma direito. Você pode atirar, mas, em termos de segurança, você não sabe usar a arma de forma apropriada. Pode ser que haja uma única chance de você usar a arma direito na vida, mas há provas de que nem sempre você se sairá melhor com elas”.