“A terra, para nós indígenas, é algo subjetivo, o lugar onde construímos nossa identidade. É também onde está a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), a escola indígena. Então, não é só o território que você perde, são todas essas políticas públicas que te amparam para você viver de forma digna,” explica a estudante indígena Kaingang de Psicologia Danieli Finhgre Felix ao comentar sobre a importância do julgamento do Marco Temporal, que segue em pauta no Supremo Tribunal Federal. Se toda a comunidade é afetada, as crianças sofrem ainda mais duramente, ela acrescenta, dado que perdem os direitos à educação, saúde e moradia. “Esse julgamento é muito além do que você perder a terra sem ser indenizado por isso.”
Assim, a pauta do Marco Temporal é provavelmente o mais importante para os povos indígenas brasileiros desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, que estabeleceu direitos inalienáveis para as populações originárias. A matéria encontra-se suspensa desde que o Ministro André Mendonça pediu vistas do processo, em junho, mas deve ser retomada até outubro deste ano, segundo a Agência Brasil, para que a Ministra Rosa Weber possa votar antes da aposentadoria. Atualmente há dois votos contra e um a favor do Marco Temporal, que limitaria a demarcação de terras indígenas àquelas que estivessem ocupadas antes de 5 de outubro de 1988.
O membro do XV Plenário do Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR), psicólogo Paulo Cesar de Oliveira/Paulo Karaí (CRP-08/17066), representou a instituição no evento “Marco temporal não: nunca mais um Brasil e uma Psicologia sem nós”, realizado pelo Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul em julho. O conselheiro destaca que a tese do Marco Temporal parte do pressuposto que a terra é dos povos não indígenas, o que é um equívoco tendo em consideração que o Brasil tem muito mais que 523 anos de história.
“A Psicologia em que a gente acredita tem muito a ver com o Marco Temporal porque grande parte do sofrimento psíquico das aldeias, das mulheres, adolescentes e pessoas anciãs indígenas [é devido] à iminente retirada de seus territórios,” afirmou em seu relato à plenária do CRP-PR, no dia 22 de julho, sobre a participação no evento. Paulo Karaí compara esta incerteza a uma ameaça constante de que perderemos nossas casas, nossos lares – que é exatamente o significado da terra para os povos indígenas. “A terra, na concepção do bem viver, não é um bem no sentido neoliberal. A terra é um elemento de troca, de construção de subjetividade, de vida.”
A iminente possibilidade de perder seus territórios – que podem não ser fixos, como Paulo explica, uma vez que muitos povos são nômades -, somada às já cotidianas violações de direitos e violências, agrava sobremaneira o sofrimento psíquico nas aldeias. Neste sentido, criar uma Psicologia acolhedora e que promova o atendimento adequado das necessidades destas populações é uma necessidade urgente, segundo explica Danieli.
Qualquer profissional pode fazer isso, ao buscar conhecimentos adequados (em documentos como as Referências Técnicas para atuação com povos indígenas do Crepop). Ainda assim, é preciso avançar para que disciplinas que concernem aos povos indígenas sejam acrescentadas às bases curriculares e façam cada vez mais parte da formação e da pesquisa em Psicologia. “A partir do momento em que a pessoa tem conhecimento, ela vai se sentir instigada a pesquisar mais, a fazer mais materiais para que profissionais usem como ferramentas”, acrescenta a estudante.
Saúde mental é agora
O conselheiro do CRP-PR Paulo Karaí afirma que a sociedade está se manifestando muito pouco acerca do Marco Temporal, e que esse é o único momento em que é possível agir. “Depois que as coisas acontecerem, não vai adiantar fazer uma nota de repúdio, não adianta querer fazer algo pela saúde mental das pessoas indígenas. Saúde mental é agora,” disse, ao se referir a uma guerra declarada entre indígenas e não indígenas. “Não há um dia em que eu não perca um parente, quase todos por disputas de terra. Direitos são violados todos os dias”, lamentou, emocionado.
A estudante Danieli complementa que, para lutar em prol dos povos indígenas e seus direitos, é preciso, antes de tudo, conhecer sobre o tema. E saber que preservar suas culturas e territórios é preservar, também, o meio ambiente, o clima e, em última instância, a nós como espécie. “Pesquisas comprovam que as aldeias indígenas protegem os biomas, [porque é onde] está a maior concentração de reservas ambientais. Então, não é só uma luta indígena, mas uma luta coletiva.”
Combater as fake news, como a que afirma que o marco temporal é algo que, em não sendo aprovado, vai supostamente liberar a tomada de terras por indígenas – uma notícia falsa que Danieli já encontrou sendo compartilhada – é também crucial para conscientizar a população. E é algo com que toda a sociedade precisa se comprometer.
Por fim, ela lembra que esta luta é uma tarefa diária, muito além do Dia Internacional dos Povos Indígenas que se comemora neste 9 de agosto. “É preciso criar uma Psicologia na qual indígenas consigam se reconhecer, criar espaços de escuta para indígenas e se propor a conhecer para atuar.”
Assim, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR) inicia hoje uma campanha permanente contra o Marco Temporal. Venha conosco e diga: Marco Temporal não! Saúde mental indígena se faz com território demarcado!
Sobre o Dia Internacional dos Povos Indígenas
O Dia Internacional dos Povos Indígenas, celebrado em 9 de agosto, marca a luta destes povos e suas lideranças pelo respeito às suas culturas e etnias, suas identidades e pela garantia de seus direitos. A efeméride foi instituída em 23 de dezembro de 1994 durante a Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) e faz referência à primeira reunião do Grupo de Trabalho da ONU sobre Populações Indígenas, realizada em 1982.
A data ressalta a importância da valorização dos povos indígenas no que diz respeito aos seus saberes e às suas cosmologias, à sua história e aos seus modos de vida, na luta contra os apagamentos e violências das suas memórias e existências provocados pelos processos de colonização e pela lógica extrativista do capitalismo, que continuam em curso até hoje.
Mesmo com seus direitos formais reconhecidos, como pela Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, a população indígena que, atualmente, soma cerca de 370 a 500 milhões de pessoas (5% da população mundial, segundo dados da ONU) ainda enfrenta uma realidade de violação de uma série de direitos, como o direito à terra e os efeitos da degradação ambiental e das mudanças climáticas sobre as suas vidas e comunidades.
No Brasil, observam-se as consequências da grilagem, do garimpo, caça e pescas ilegais, bem como das invasões de terras, para a sua saúde e sobrevivência, além dos obstáculos enfrentados no acesso à educação, à saúde e outros direitos básicos. Apesar dos recentes avanços políticos, com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, liderado por Sônia Guajajara, e da composição da bancada do cocar com a eleição de representantes indígenas numa mesma legislatura da Câmara, ainda muito a ser feito no que se refere à defesa e proteção dos povos indígenas e de seus territórios.
Confira, abaixo, o depoimento completo da estudante indígena Kaingang de Psicologia Danieli Finhgre Felix:
Meu nome é Danieli Finhgre Felix, mulher indígena pertencente ao povo Kaingang, estudante de Psicologia. No meu primeiro contato com a Psicologia, eu não me senti pertencente. A realidade descrita pelos métodos científicos não é aquela que conhecia. A própria universidade não está preparada para acolher estudantes indígenas, ainda mais garantir a permanência deles. A diferença linguística fazia com que os textos fossem impossíveis de serem compreendidos, a falta de pesquisas científicas na área da Psicologia sobre os povos indígenas faz com que ainda exista um distanciamento da Psicologia e os povos indígenas. Durante a minha graduação, algo que me atravessava era a discussão sobre o ‘lugar de fala’; parecia que tudo relacionado às questões indígenas só cabia a uma pessoa indígena discutir, tirando a responsabilidade de todos os outros de ter o mínimo de conhecimento sobre o assunto. Como usuária da saúde indígena, eu também posso perceber que na equipe básica não existe profissional de Psicologia, como se o sofrimento psíquico dos povos indígenas fosse restrito a casos isolados. Poderia citar inúmeras violências vivenciadas cotidianamente pelos povos originários. Faço um apelo: as aldeias indígenas precisam de imediato suporte psicológico especializado! Não podemos esperar a formação de profissionais de Psicologia indígenas, pois cada vez mais as demandas e as violências estão crescendo. Porque, para que haja continuidade dos povos indígenas, é preciso garantir a seguridade de sua saúde mental. Os povos indígenas vêm sofrendo inúmeras violências, tanto em seus territórios quanto fora deles, como se não fossem pertencentes desse lugar. Ser indígena neste país é provar a todo tempo que esse chão é seu e seus ancestrais estão nele. O Marco Temporal é a maior prova que nós indígenas não somos reconhecidos como donos dos nossos territórios. As mulheres, crianças, PcDs e LGBTQIAPN+ indígenas estão sujeitos a sofrer dupla vulnerabilidade, pois essas pessoas sofrem mais com a violações dos direitos humanos, e, sem um lugar para se constituir enquanto povos de uma cultura milenar, correm o risco de perder sua sabedoria, língua e tradições. Lembrar desses povos só em dias específicos como 19 de abril ou 9 de agosto faz com o sofrimento deles seja ignorado o resto do ano, pois eles sofrem diariamente. No Dia Internacional dos Povos Indígenas é importante reforçar a defesa dos direitos dos povos indígenas e a defesa de seus territórios, porque são eles que defendem a biodiversidade. Por isso é preciso lutar contra o Marco Temporal.
Danieli Finhgre Felix, mulher indígena pertencente ao povo Kaingang, estudante de Psicologia.