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O luto em tempos de Covid-19

A humanidade já presenciou muitas tragédias. Entre elas figuram epidemias, pandemias e crises sanitárias — como a Peste bubônica, na Idade Média, e a Gripe Espanhola de 1918. Mesmo que na História estejam presentes tais crises de saúde, a pandemia de Covid-19 é diferente, porque esta é a primeira grande pandemia e desafio sanitário do século XXI— que conta com tecnologias indisponíveis nas crises passadas.

O que todas as tragédias têm em comum é a morte — a própria origem da palavra “tragédia” faz referência às peças gregas que continham a morte de uma(um) personagem ou de seus entes queridos na narrativa . Até o momento, a Covid-19 já matou mais de 571 mil pessoas no mundo, sendo 72 mil só no Brasil. É esperado que neste contexto o luto esteja no centro de nossa experiência pandêmica, não se resumindo apenas à perda de vidas humanas para a doença, mas também por um aspecto muito particular da Covid-19 — a mudança de comportamento que a doença gerou.

Mudanças comportamentais e o luto

A Psicóloga Solange do Carmo Bowoniuk Wiegand (CRP-08/03266) afirma que há dois tipos de perdas acontecendo neste momento: as reais e as simbólicas. A primeira categoria se refere às vidas humanas e a segunda àquilo que faz parte do dia a -dia — perda do emprego, de um estilo de vida, de nossas formas de lazer. Solange explica que “uma perda muito significativa agora é a gerada pela quarentena, porque mesmo que as pessoas não tenham a perda de um familiar, elas têm a perdas emocionais, econômicas e só o fato de não poder sair de casa, para algumas pessoas, é muito angustiante”. A Psicóloga ressalta também que, neste momento, a sociedade vivencia um luto coletivo, mas também um luto antecipatório, pois existe a sensação de estarmos na iminência de uma perda.

Além disso, o potencial infeccioso do vírus da Covid-19 gerou a restrição de visitas e acompanhamento de pacientes internados (com ou sem a doença) em hospitais — locais com grande carga viral. Neste sentido, Solange destaca que “a maior perda nessa história é não ter acesso à família, pois a partir do momento que a pessoa é internada, cessa totalmente o contato com a pessoa”.

Dentre as mudanças de comportamento que a sociedade teve que adotar há uma que afeta, principalmente, familiares de vítimas da Covid-19: a impossibilidade de se realizar um velório tradicional. O ritual funerário, tipicamente coletivo, é um elemento essencial do processo de despedida de quem perde alguém. De acordo com a Psicóloga Rosa Maria Marini Mariotto (CRP-08/03220), o impedimento de realizar um ritual de despedida pode prejudicar a elaboração do luto: “essa situação tem como risco produzir a entrada, cada vez mais forte, nos psicotrópicos. Fazendo um paralelo: a tarja preta que antigamente se usava no braço para sinalizar o luto agora é a tarja da caixa do remédio”.

O luto e os profissionais de saúde

Desde março, é comum ouvir que as(os) profissionais de saúde estão na linha de frente do combate ao novo coronavírus, logo também vivenciam repetidas perdas — tanto de pacientes quanto de colegas. Segundo dados do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) publicados no Observatório da Enfermagem, 249 Enfermeiras(os) morreram em decorrência da Covid-19 (até o momento da publicação desta matéria). O Brasil lidera o ranking de mortes nesta categoria profissional por conta da pandemia e, além disso, mais de cem médicos já perderam a vida pelo mesmo motivo.

Sem a presença de familiares e amigos nestes locais, a Psicóloga Rosa destaca que, neste contexto, as funções das equipes de saúde são redobradas, já que “elas oferecem os cuidados necessários para a recuperação do organismo, mas cabe a elas também oferecer o acolhimento psíquico que a família não pode dar”. Tal situação sobrecarrega as(os) profissionais que, por sua vez, se encontram com a sensação de impotência entre prestar assistência de qualidade ao paciente e ao mesmo tempo cuidar de sua subjetividade.

Novas formas de superar do luto

A professora do Centro Ásia e da PUCPR Idiomas, Lina Saheki, não pôde visitar, nem velar seu irmão Maurício Naoto Saheki, que faleceu em decorrência da Covid-19, aos 41 anos. Maurício era médico infectologista, atuava na Fiocruz do Rio de Janeiro e no Instituto Estadual de Infectologia — ambos hospitais especializados em doenças infecciosas — e, nos últimos meses, chegou a tratar pacientes com a Covid-19.

Para tornar a elaboração do luto menos dolorosa, tendo em vista o distanciamento social, Lina Saheki, familiares e amigas(os) de Maurício tiveram que encontrar outras maneiras de passar por esse momento e amenizar a dor da perda — uma das formas foi por meio de um grupo de WhatsApp chamado “Despedida Maurício”. “Foi aí que percebemos, e acredito que esta seja a função do tradicional velório, que o luto era coletivo, que a dor e o amor por aquela pessoa que se foi, por mais que seja vivida individualmente, também era um processo de elaboração e vivência coletiva”, conta a irmã.

A partir de sua experiência de perda, Lina decidiu desenvolver, junto com a Psicóloga Michele Maba (CRP-08/09987) e a designer Marcellen Neppel (que também perdeu um familiar por conta do vírus), uma cartilha destinada a ajudar pessoas experienciando o luto neste momento — em especial aquelas pessoas que perderam um familiar ou amiga(o) em decorrência da Covid-19. Entre as sugestões que a cartilha traz está a criação de um espaço de presença dedicado à pessoa falecida (Lina e a família escolheram uma foto de Maurício para incorporá-lo ao espaço). “Se as redes sociais ajudam no processo coletivo, no espaço pessoal queremos ter a última conversa, o último toque, o último adeus com o outro. É justamente esse momento que nos é roubado no luto da Covid-19. Não existe o espaço da presença física, da corporeidade do ente amado que se foi”, conta.

A cartilha também sugere à pessoa enlutada controlar o fluxo de informações que recebe, algo percebido por Lina como “uma questão de saúde emocional e, mesmo, física”. Por fim, a professora sugere que quem passa por esse momento, assim como ela passou, procurar contato com pessoas que passaram por perder semelhantes. “Pode ajudar muito nos primeiros dias. Mesmo que seja um desconhecido”, conta.

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