O Sistema Conselhos de Psicologia publicou nesta semana uma Nota de Repúdio contra o Projeto de Lei/MS 219/2015, que tramita na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul e obrigaria alunos da rede pública de ensino a prestar serviços na escola como punição por atos de vandalismo e indisciplina. O projeto, que estende ao Estado uma lei já válida no município de Campo Grande, prevê que as escolas apliquem medidas punitivas com caráter educativo, levando em consideração os danos causados pelo ato e a gravidade da infração cometida. Segundo a nota aprovada pela APAF (Assembleia das Políticas, da Administração e das Finanças), o texto do projeto confunde indisciplina com ato infracional, o que se evidencia pelo uso de termos como “penalidade”, “registro de ocorrência”, “reparação de danos”, “infração”, “revista do material”. Esta escolha mostra que o objetivo é punir, e não educar. Em contrapartida, a Psicologia aponta o caminho a ser seguido para efetivamente educar crianças e adolescentes: “A formação ética do sujeito, isto é, a internalização de regras sociais deve ocorrer em processos de diálogo, de conscientização, de responsabilização e de formação, permeada por vínculos afetivos e relações humanizadoras”.
Veja a nota na íntegra abaixo:
NOTA DE REPÚDIO CONTRA OS PROJETOS DE LEI QUE DISPÕEM SOBRE ATIVIDADES DE REPARAÇÃO DE DANOS, POR ALUNOS E SEUS PAIS, NO AMBIENTE ESCOLAR.
O SISTEMA CONSELHOS DE PSICOLOGIA, com base nos conhecimentos da Psicologia como ciência; na regulamentação do exercício da profissão, cujos princípios são pautados na Constituição Federal e na Declaração Universal dos Direitos Humanos; na defesa intransigente dos direitos de crianças e adolescentes e do desenvolvimento de políticas públicas consistentes e coerentes com os demais marcos legais e profissionais, apresenta argumentos que se opõem aos Projetos de Lei que tramitam no legislativo em todos os níveis, que dispõem sobre atividades de reparação de danos por alunos e seus pais no ambiente escolar, visando impedir retrocessos e contribuir para que as conquistas dos direitos de crianças e adolescentes sejam mantidas.
1. Esta Nota de repúdio surgiu em função do conhecimento da Lei municipal de Campo Grande/MS 5603/2015 e do Projeto de Lei Estadual – PL/MS 219/2015, denominado “Lei HARFOUCHE” que dispõem sobre este tema. Preocupa-nos, dentre outros aspectos, a visão de que a indisciplina recebe conotação de ato infracional. Da mesma forma, o preconceito fica explícito ao considerar apenas a escola pública como alvo da lei e do Projeto de Lei supracitados, demonstrando clara discriminação entre as populações estudantis de escolas públicas e privadas.
2. No que se refere à garantia dos direitos de crianças e adolescentes na nossa sociedade vem somar-se aos recorrentes retrocessos apresentados como alternativas, eminentemente judicializantes e sancionatórias, travestidas de ações educativas. Há uma tendência no uso de terminologias e aportes conceituais que evidenciam a judicialização e criminalização das relações escolares na utilização recorrente de termos como: “penalidade”, “registro de ocorrência”, “reparação de danos”, “infração”, “revista do material”, etc., a redação evidencia o caráter exclusivamente punitivo e não educativo como base da proposição.
3. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) oferece diretrizes para o processo educativo de crianças e adolescentes. Na ocorrência de atos infracionais, essa legislação prevê a responsabilização por meio das medidas socioeducativas, regulamentadas na Lei 12.594/2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE, ambos subsidiados pela Psicologia como ciência e profissão.
4. Destacamos a relevância do Plano Nacional de Educação 2014-2024 (Lei nº 13.005/2014) e do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, que aprofunda questões do Programa Nacional de Educação e incorpora aspectos dos principais documentos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, agregando demandas antigas e contemporâneas de nossa sociedade pela efetivação da democracia, do desenvolvimento, da justiça social e pela construção de uma cultura de paz.
5. Reconhecemos os desafios cotidianos enfrentados pela escola, especialmente no que se refere a considerar a diversidade constituinte do seu processo democrático. Construir ações coletivas, com a participação de toda a comunidade escolar, significa empoderá-la para o enfrentamento desses desafios. No entanto, os retrocessos que temos visto ferem o principio democrático. Num contexto marcado pela burocratização, hierarquização e engessamento as soluções totalitárias acabam se instalando como formas de solução.
6. Para além das questões que já estão postas pela legislação e que não têm se efetivado, destacamos que o julgamento da infração e a punição subsequente, ocorrendo dentro do ambiente escolar não são proposições que coadunam com as ações pedagógicas previstas para as escolas. Além do mais, a concepção de promoção da “responsabilidade” atrelada a práticas e mecanismos punitivos, muito comum em nossa sociedade, são desumanizantes e retiram a dignidade do sujeito (Guareschi, 2008). Especificamente em relação aos aspectos subjetivos de crianças e adolescentes a serem considerados nesses contextos, afirmamos que a punição como princípio não forma sujeitos saudáveis, especialmente aquelas sanções em que crianças e adolescentes se sentem humilhados, desvalorizados, ridicularizados. A formação ética do sujeito, isto é, a internalização de regras sociais deve ocorrer em processos de diálogo, de conscientização, de responsabilização e de formação, permeada por vínculos afetivos e relações humanizadoras.
7. Se a violência invade o espaço escolar, há que se considerar que ela é fruto da nossa sociedade contraditória que nega direitos ao longo do desenvolvimento de crianças e adolescentes e depois exige que eles se transformem em cidadãos exemplares. Nesse sentido, existem inúmeras experiências pelo país afora e em outros países, inclusive da América Latina, que comprovam que os sujeitos, para atingirem a cidadania, têm que ser protagonistas da sua história e não objeto de manipulação; tem que ter seus direitos respeitados e sua dignidade garantida; tem que ser responsabilizados com respeito e coerência.
8. A crença de que a escola, a partir da concepção punitiva, possa transformar a realidade social, não apresenta fundamentação pedagógica. A escola formadora não é a que promove castigos que retiram a dignidade dos seus alunos. A repressão e a punição, ao contrário da educação, produzem, em longo prazo, um efeito danoso em diversos aspectos, especialmente se o aluno não puder ressignificar seus atos.
9. A ameaça à família, no que se refere à perda dos benefícios sociais (entre outros), como argumento para a sua participação no processo educativo, assume uma natureza coercitiva e impositiva, o que vai na contra mão da construção de parceria entre a família e escola, por meio de estratégias pautadas na Psicologia e na Pedagogia.
10. É importante salientar que a Psicologia historicamente tem contribuído no campo da Educação e que tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 3688/2000 aprovado em comissões especiais, no Senado e na Câmara Federal, prevendo a inclusão de serviços de Psicologia e Serviço Social na Educação Básica, que pode contribuir com a demanda apresentada.
Assim, repudiamos a realidade vivenciada no Mato Grosso do Sul e afirmamos a necessidade de conter a reprodução em outras unidades da Federação de legislações similares que afrontem os direitos de crianças e adolescentes.
A Psicologia brasileira coloca-se em defesa permanente pela transformação da realidade, não no sentido de perverter as funções sociais das políticas de educação, sobretudo no sentido de executar integralmente o Estatuto da Criança e do Adolescente, uma Lei que já tem 25 anos.
“Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que a sua ‘generosidade’ continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça.” (Paulo Freire)
Brasilia/DF, 12 de dezembro de 2015.
SISTEMA CONSELHOS DE PSICOLOGIA