Notícia

Julho das pretas: por um Brasil que encare e elabore seus sintomas racistas-coloniais de forma ética

Psic. João Henrique Santos Souza (CRP-08/28624), Psicólogo residente em Saúde da Família e membro da Comissão Étnico-Racial do CRP-PR

Grada Kilomba, na Carta da Autora à edição brasileira de seu importante livro Memórias da Plantação, descreve parte de sua experiência como intelectual no contexto de Lisboa e, posteriormente, de Berlim. Explica que, enquanto em Lisboa há uma negação, ou até mesmo um elogio à história colonial, em Berlim ocorre um processo de “consciencialização coletiva” que passa pela “negação – culpa – vergonha – reconhecimento – reparação” da história colonial e ditatorial-fascista alemã. De acordo com Grada, esse processo gera a responsabilidade pela criação de “novas configurações de poder e de conhecimento”. Para a intelectual, essa diferença possibilitou encontrar na segunda cidade uma importante tradição de intelectuais negras que operaram potentes transformações no pensamento e vocabulário contemporâneo global.

Trazemos esse breve exemplo para sugerir algumas questões à nossa categoria profissional e, mais ainda, para todo o povo brasileiro: de que forma enfrentamos as opressões que estruturam às relações de gênero, raça e classe no nosso país? Somos um povo que consegue falar de forma autêntica sobre a própria história? Temos a capacidade de sentir vergonha por toda a exploração contra povos negros e indígenas que foram a base para a criação do nosso país?

O Brasil foi construído a partir dessa violência e negação da alteridade. A maior parte da nossa história é marcada pela brutalidade colonial e escravista que se atualizará a cada momento – enquanto formos incapazes de elaborar esses traumas seculares que produzem não apenas modos de socialização desiguais, como também intenso sofrimento psíquico para todas(os) aquelas(es) que convivem nesse abismo de desigualdade. Ou seja… isso também é pauta para Psicólogas e Psicólogos.

O Código de Ética da nossa profissão prevê que a atuação profissional tem como direcionamento a promoção de saúde das pessoas e coletividades, contribuindo para o fim de toda forma de opressão. Temos feito o esforço ético de nos colocar em questão e agir para que isso se efetive?

O Julho das Pretas faz parte de um conjunto de esforços que vai nesse sentido: um movimento que parte de mulheres negras para o enfrentamento de violências decorrentes das estruturas patriarcais e racistas sob as quais nossa sociedade ainda é sustentada. Julho é um mês especialmente importante da luta antirracista e feminista na América Latina por também marcar o dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha (25 de Julho), instituído em 1992 com o objetivo de fortalecer a luta das mulheres negras e homenagear a líder quilombola Tereza de Benguela.

Mais do que fazer alusão, o objetivo destas datas é lembrar e falar em alto e bom tom que nos quilombos houve resistência à exploração colonial e escravista, e há, ainda hoje, nos movimentos negros e feministas espalhados pelo Brasil. Se as Pretas são aquelas que sofrem de forma mais intensa a violência de um sistema patriarcal, racista e classista, carregam também a capacidade de reinvenção dos espaços de luta e resistência, em busca de um mundo menos opressivo e desigual. Neste sentido, o Julho da Pretas é também um processo de aquilombamento, se nos lembramos daquilo que Beatriz Nascimento e Conceição Evaristo nos ensinaram sobre o que é Quilombo: fruto de uma necessidade de organização – que não aquela imposta de forma arbitrária pelo colonizador.

Lélia Gonzalez nos ensina a importância de aprofundar nossas reflexões, e perceber como as violências de raça, classe e gênero são danosas, produzem sofrimento e são, no contexto brasileiro, veladas por um mito de democracia racial que não sobrevive a uma análise séria da realidade nacional. Os dados mostram que a população negra é a que mais sofre a interferência repressiva do Estado, e a que menos acessa as políticas públicas de saúde e educação.

Lélia ainda nos mostra como novas categorias racistas são criadas para atualizar denominações presentes desde o período escravista brasileiro, e que se perpetuam justamente por não elaborarmos, ou melhor… nem sequer encararmos de frente a parte da nossa história que é suja de sangue, que é como

[...] uma ferida que nunca foi tratada. Uma ferida que dói sempre, por vezes infecta, e outras vezes sangra.

Que nesse Julho das Pretas possamos relembrar Dandara dos Palmares, Tereza de Benguela, Carolina de Jesus, Deolinda Rodrigues Francisco de Almeida, Lélia Gonzalez, Angela Davis, Grada Kilomba, Érica Malunguinho, Mariele Franco e tantas outras mulheres pretas que abriram caminhos e nos possibilitaram pensar um mundo menos violento e desigual. Que busquemos estudar suas histórias e aquilo que propuseram enquanto teoria, pois essa é uma das formas como todas(os) nós podemos ouvir o sofrimento de forma mais sensível e agir de forma ética.

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