Idealizada para trazer o tema da saúde mental e suas implicações sociais ao centro do debate da Psicologia, a Jornada de Direitos Humanos e Segurança Pública, promovida pelo Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR) nos dias 15 e 16 de março de 2024 em Foz do Iguaçu, contou com a participação de múltiplas vozes potentes tanto do Sistema Conselhos como de entidades da sociedade civil.
O tema desta jornada foi inspirado por um relato durante uma reunião plenária realizada em Londrina em 2023, durante a discussão sobre um grupo de mães que perderam seus filhos para a violência policial. “Esse relato nos sensibilizou e nos levou a entender a importância de debater os Direitos Humanos e a Segurança Pública”, conta a conselheira Ana Lígia Bragueto (CRP-08/08334), membro da Comissão Organizadora do evento.
Para uma plateia de mais de 230 ouvintes, entre profissionais da Psicologia e do Direito, além de estudantes e outras pessoas interessadas, a Jornada teve início da noite de sexta-feira (15) com a participação da presidenta do CRP-PR, psicóloga Griziele Martins Feitosa (CRP-08/09153), além de representantes da Unioeste, psicóloga Fabiana Nunes do Amarante Griggio (CRP-08/19643), do procurador-geral do Ministério Público do Estado do Paraná, Carlos Roberto Moreno, e do coronel da Polícia Militar, Saulo de Tarso Sanson Silva, representando a secretaria de de Estado de Segurança Pública.
Em sua introdução, a presidenta do CRP-PR lembrou que a violência no Brasil tem raízes ainda nos tempos coloniais e de várias formas, atingindo inclusive mulheres – indígenas, negras e brancas, de idades variadas -, para muito além do trabalho forçado. Segundo a psicóloga, reflexões acerca dessas origens ajudam na compreensão do cenário dos dias atuais e na elaboração de medidas que reforcem a efetiva prática de direitos humanos em nosso país.
A conferência inaugural da jornada foi ministrada pelo presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Pedro Paulo Gastalho Bicalho (CRP-05/26077). O psicólogo fez a fala de abertura destacando os impactos sobre a saúde mental e vida das pessoas que sofrem racismo no âmbito da segurança pública e da justiça. “A seletividade penal é parte do processo de construção dessa civilização. As relações de poder não são abstratas, mas concretas. É concreta a abordagem policial mais para uns que para outros, é concreto que a justiça e a execução penal aprisione mais uns que outros”, afirmou.
O presidente do CFP explanou ainda que o tema da segurança pública está intimamente ligado aos direitos humanos e, consequentemente, à Psicologia, uma vez que a discriminação racial está presente, de formas mais ou menos explícitas, em todos os meios sociais, inclusive nos quais a categoria atua, como a clínica, as empresas, etc. “Não há como falar em segurança pública sem falar do medo como política, do processo de subjetivação. É uma conjuntura. A assimetria de poder existe para dizer quem vai ser subjugado. É urgente falar de segurança pública, mas também é urgente falar que segurança pública não é exclusividade da polícia. Dói na gente, mas é porque dói que a gente tem que falar.”
A solução, Bicalho lembrou, passa pela formação da polícia, e por uma mudança do paradigma punitivista vigente. “A maioria das pessoas acredita no punitivismo. Para mudar isso precisamos resgatar o conceito de polis. A polícia serve para estar na cidade, não para punir. Não era para a gente ter medo da polícia.”
O direito penal e a guerra às drogas
Já a manhã de sábado (16) foi marcada por uma contundente fala do juiz Luís Carlos Valois. O mestre e doutor em direito penal pela USP, autor da obra “O direito penal da guerra às drogas”, revelou às pessoas presentes um pouco de sua própria trajetória na magistratura, sob a perspectiva de quem aprendeu ao longo dos anos sobre o tema e ressignificou a própria função do Direito.
Valois destacou que a lei de drogas, da maneira como está posta hoje, permite abusos policiais como revistas em que a pessoa deve tirar suas vestimentas e o uso da palavra policial como única prova em um julgamento. O destino das pessoas envolvidas com drogas ilegais muitas vezes é a prisão, locais que ele denomina “insalubres”. “A própria proibição impede que a gente discuta com sinceridade. É absurdo e incompreensível misturar pessoas que vendem substâncias com outras que mataram outra pessoa, com mais uma que queria comprar. O Direito é hipócrita quando fala em ressocialização na penitenciária, porque aquilo é só vingança, sofrimento e dor”, afirmou.
A proibição, segundo sua fala, não é bem-sucedida em impedir que jovens tenham contato com as drogas ilícitas, algo que seria alcançado apenas com políticas públicas de qualidade. “A regulamentação limitaria o acesso, já que hoje qualquer jovem pode ter acesso, aumentando o poder das facções, encarceramento e todos os problemas sociais a que temos assistido. Proibição só aumenta o preconceito que se mantém em situações que retratam a droga como a vilã e não a sociedade.”
A prática da Psicologia na interface com a segurança pública
Na sequência, a primeira mesa-redonda do dia, “A prática da Psicologia na interface com a segurança pública”, contou com a participação da coordenadora regional nordeste da ANPSINEP (Articulação Nacional de Psicólogas(os) e Pesquisadoras(es) Negras(os)), psicóloga Veridiana Machado (CRP-03/4931), da representante do Movimento dos Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a pedagoga e mestre em educação pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Jeizi Loici Back, além dos psicólogos Pedro Paulo Gastalho de Bicalho (CRP-05/26077), presidente do CFP, e Rafael Ribeiro (CRP-17/6594), membro da Comissão de Direitos Humanos da mesma instituição. A mediação foi da psicóloga Annamaria Coelho de Castilho (CRP-08/15313), membro da Comissão de Mulheres CRP-PR.
As falas iniciais foram contundentes em trazer dados sobre a violência e o racismo crescentes que atingem principalmente jovens – com um enfoque nos municípios baianos, locais que muitas pessoas escolhem como destino de férias, Veridiana Machado lembrou, mas que são marcados pela violência e onde jovens de pele negra seguem perdendo suas vidas diariamente – além de reflexões sobre um contexto no qual as abordagens policiais são diferenciadas de acordo com a cor ou etnia das pessoas e a polícia segue perpetuando a violência. “A violência urbana é um processo multifacetado, então as prevenções devem ser implementadas em diversas frentes sociais, [incluindo] a ampliação do fazer profissional da Psicologia em atendimento à saúde mental”, destacou Rafael Ribeiro.
A representante do MST detalhou ainda a violência no campo, com forte relação com a história do genocídio indígena e escravização de pessoas negras, sendo que massacres e prisões se perpetuam até os dias atuais e marcam a existência destes grupos étnicos e do próprio MST. A Psicologia, ela afirma, deve ser comunitária e ajudar a transformar a realidade, não a conformar-se a ela, lembrando que a transformação passa por distribuição de renda, acesso a direitos básicos como saúde e educação, lazer e um “um campo que seja um lugar agradável, bom de viver.”
A transversalização como recurso de enfrentamento da violência de Estado
Com mediação do psicólogo Marcos de Jesus Oliveira (CRP-08/35382), da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), a segunda mesa-redonda do dia, intitulada “A transversalização como recurso de enfrentamento da violência de Estado”, trouxe falas das psicólogas Nita Tuxá (CRP-03/25213), representando o Conselho Federal de Psicologia (CFP), e Marina de Pol Poniwas (CRP-08/13821), presidenta do CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), além do membro da Comissão de Orientação em Psicologia e Migração do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG), José Miguel Silva Ocanto.
Marina Poniwas abordou a questão dos efeitos prolongados da pandemia da Covid-19 – que ela intitula sindemia, termo cunhado pelo antropólogo médico americano Merrill Singer na década de 1990 para explicar uma situação em que “duas ou mais doenças interagem de tal forma que causam danos maiores do que a mera soma dessas duas doenças” -, que se perpetuam em forma de violência de Estado, afetando especialmente crianças e adolescentes que passaram a vivenciar uma situação de orfandade, além de diversos outros efeitos como o empobrecimento da população, o retorno da insegurança alimentar e os maiores índices de violência em casa, nas escolas e nos ambientes digitais. Aprofundados pelos cortes orçamentários que já vinham ocorrendo no setor das políticas públicas, os efeitos da sindemia, ela diz, serão de longo prazo para estas faixas etárias, e cabe à Psicologia se unir em torno de debates e propostas para lidar com esta problemática.
Já Nita Tuxá (CRP-03/25213) trouxe ao público a perspectiva indígena, de povos que sofrem até hoje diversos processos violentos que não cessaram com os tempos da colonização europeia – está dada, entre outras formas, na negação do direito ao território, base da tese do Marco Temporal, em flagrante paradoxo com a Constituição de 1988 que preconiza os direitos inalienáveis dos povos originários. A profissional convida então as pessoas presentes e a ciência a perceberem as pessoas indígenas em seus desejos e direitos, em suas subjetividades, respeitando também em seu modo de interagir com a natureza, a mata, o vento e todas as formas de vida em suas culturas.
Formado em Psicologia e estudante de Ciências Sociais na UFMG, o venezuelano José Miguel Silva Ocanto, que vive no Brasil desde 2018 e atua em Defesa dos Direitos Humanos das pessoas migrantes e refugiadas, é membro da Comissão de Orientação em Psicologia e Migração do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG) e do PSIMIGRA (Coletivo de Profissionais da Psicologia que atuam com Migração), utilizou o espaço de fala para contar sua trajetória como defensor intransigente dos direitos humanos e para propor reflexões sobre o valor da dignidade da pessoa, a justiça, a liberdade, a democracia e o papel da Psicologia, que não deve reproduzir as mesmas lógicas violentas que colocam homens brancos cisheteronormativos no centro do poder.
As comunidades e a Psicologia na defesa dos Direitos Humanos
A última mesa-redonda da Jornada trouxe o debate sobre “As comunidades e a Psicologia na defesa dos Direitos Humanos”. Com mediação do conselheiro do CRP-PR, psicólogo Paulo Cesar de Oliveira (CRP-08/17066)/Paulo Karaí Xondaro, a mesa contou também com a vice-presidenta do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Ivani Francisco de Oliveira (CRP-06/121139), do representante de movimentos sociais da População em Situação de Rua e cooperativas sociais, Leonardo Pinho, além da ouvidora-geral da Defensoria Pública do Paraná, Karollyne Nascimento.
As pessoas convidadas da mesa revisitaram conceitos sobre as políticas públicas e o papel do Estado na promoção das desigualdades sociais que hoje observamos, sendo o encarceramento em massa, mesmo sem julgamentos adequados e ferramentas eficazes de ressocialização, uma das chagas sociais que mais afetam pessoas negras no Brasil, como lembrou Leonardo Pinho.
A fala de Ivani Oliveira clamou as comunidades de todas as naturezas como espaços que naturalmente contemplam a heterogeneidade humana, relações complexas e, por vezes, conflitos, os quais podem ser fontes de “discussões necessárias”, mas também são o único palco possível para o desenvolvimento da solidariedade e de vivência de diversas emoções humanos, inclusive alegria, sofrimento e revolta. Espaços, ela diz, de enfrentamento das violências estruturais tais como a violência policial, que traz danos à saúde mental das populações mais afetadas.
Lembrando o trabalho realizado pela Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, a conselheira do CFP citou ainda os avanços que o Ministério da Igualdade Racial vem promovendo na responsabilização do Estado e no atendimento psicológico às vítimas, e também o trabalho de articulação institucional promovido pelo próprio CFP e o Ministério.
Fechando a mesa multidisciplinar, a ouvidora-geral da Defensoria Pública, Karollyne Nascimento, destacou a triste posição ocupada pelo Brasil como país que mais mata pessoas da população LGBTQIAPN+, especialmente travestis e transexuais, lembrando que a Psicologia deve perceber o ser humanos que há em qualquer identidade de gênero ou orientação sexual, de modo a garantir e preservar seus direitos humanos inalienáveis. A profissional citou ainda a dificuldade encontrada pela Defensoria para atender uma grande demanda com pequenas equipes, mas destaca os avanços obtidos de um trabalho de longo prazo. Os temas tratados durante a Jornada, Karollyne aponta, são todos parte de seu dia a dia, mostrando que as falas se refletem na realidade da população, privada de direitos e vítima de violências diversas.
Segurança pública e direitos humanos: temas convergentes
Ao fim do evento, a conselheira Ana Ligia Bragueto fez um balanço das atividades:
Os debates desta Jornada foram pensados de forma transversal, para que todas as pessoas presentes se sentissem representadas. Cada detalhe da programação foi planejado com carinho e cuidado. Os direitos humanos e a segurança pública são temas interligados e fundamentais para nossa sociedade. No entanto, muitas vezes vemos uma falta de convergência entre esses dois temas em nossas práticas cotidianas. As graves violações de direitos e o alto índice de homicídios em nosso país são exemplos claros dessa desconexão, afetando principalmente as populações mais vulneráveis. A segurança pública deve garantir a aplicação justa e proporcional da lei, respeitando a dignidade de todas as pessoas envolvidas. os direitos humanos devem ser a base das políticas de segurança, garantindo que não haja abusos de poder ou discriminação.
As Jornada de Direitos Humanos e Segurança Pública foi transmitida e gravada. Os vídeos estão disponíveis no YouTube.
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