Orientação da COF
1 – A(O/E) Psicóloga(o/e) pode ofertar serviços de constelação familiar?
A Comissão de Orientação e Fiscalização (COF) posiciona-se de acordo com a publicação da Nota Técnica CFP 1/2023, a qual visa orientar profissionais de Psicologia sobre a prática da constelação familiar, também denominada constelações familiares sistêmicas.
A referida nota foi elaborada por um grupo de trabalho composto por Psicólogas(os/es) representantes dos Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs) de todas as regiões do país e pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP). O intuito do documento é responder às demandas levantadas pelos CRPs, os quais apontam a hipótese de que a prática da constelação familiar não se configura como método ou técnica psicológica, apresentando incompatibilidades éticas com o exercício profissional da Psicologia.
Para melhor orientar a categoria, a redação da nota traz uma breve contextualização sobre as constelações familiares e como a técnica vem sendo cada vez mais difundida na sociedade, seja pela mídia ou pelas redes sociais, como método terapêutico com poder de cura de traumas e problemas de diversas ordens que atingem indivíduos, famílias e empresas, dentre outros públicos. Essa concepção se baseia em conceitos que, muitas vezes, são associados a teorias e técnicas utilizadas no campo da ciência psicológica. Além disso, profissionais de Psicologia vêm continuamente se apropriando de teorias e técnicas da constelação familiar e produzindo conteúdo digital em redes sociais, associando-os a serviços psicológicos, o que se torna objeto de preocupação do Sistema Conselhos de Psicologia.
Ainda conforme a Nota Técnica CFP 1/2023, a teoria da constelação familiar parece adotar uma concepção de casal e família de bases patriarcais, calcada na heterossexualidade compulsória, que tende a naturalizar a desigualdade de gênero nas relações familiares e conjugais, em desacordo com o Código de Ética Profissional do Psicólogo, em especial o artigo 2º, alínea a:
Art. 2º – Ao psicólogo é vedado:
a) Praticar ou ser conivente com quaisquer atos que caracterizem negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão;
Essas concepções mostram-se em dissonância com as formas contemporâneas de entendimento sobre famílias. Trata-se de concepção fixa, natural e imutável, contrariando os conteúdos mais recentes de diversos campos de conhecimento, o que diverge da característica dinâmica e não cristalizada das pessoas e das famílias.
Conforme a Nota Técnica CFP 1/2023:
A compreensão de família na Constelação Familiar parece estar assentada em pressupostos que naturalizam o vínculo biológico sem considerar aspectos históricos, sociais e políticos que engendram as famílias na contemporaneidade, compreensão esta que pode impor leituras moralizantes em relação a processos de ruptura de vínculos familiares, bem como servir de base para a exclusão das múltiplas configurações familiares que têm no afeto e no sentimento de pertencimento a sua vinculação familiar. Ao conceber o vínculo familiar como um imperativo emanado da condição biológica, corre-se o risco de negar a possibilidade de emergência de novos modelos de família e reafirmar o modelo monogâmico e nuclear.
Numa concepção oposta ao proposto pela constelação familiar, o Sistema Conselhos compreende que, em sua atuação, profissionais da Psicologia não devem excluir nenhuma expressão ou configuração familiar tomando como base somente os pressupostos imperativos biológicos que a prática considera. Portanto, o rompimento e o enfrentamento desse modelo são imprescindíveis para que se possam incluir todas as famílias constituídas por vinculações biológicas e afetivas.
Além disso, no que diz respeito às questões de gênero, há dissonâncias entre os pressupostos da constelação familiar e o que consta entre os Princípios Fundamentais que orientam a atuação de profissionais da Psicologia, como a promoção da saúde e da qualidade de vida dos indivíduos e das coletividades. Conforme explicita a Nota Técnica CFP 1/2023:
Há, na obra de Hellinger, passagens que atribuem às mulheres e aos homens papéis naturalizados e desiguais, que sugerem a reprodução da desigualdade estrutural de gênero que fundamenta a ordem social patriarcal. Contudo, é importante salientar que há distintas expressões de masculinidades, feminilidades e pessoas que flutuam ou negam essas prerrogativas binárias de gênero (Zanello, 2018). Assim, ao desconsiderar a autodeterminação dos indivíduos com relação a sua própria identidade e sexualidade, não reconhecendo as relações familiares fundadas nessa diversidade, tem-se como efeito direto a produção de adoecimento dos sujeitos. Tal perspectiva vai na contramão da prerrogativa fundamental da Psicologia, que é a de promover a saúde de indivíduos e coletividades.
Outro apontamento importante da nota diz respeito à naturalização das relações de poder entre homens e mulheres: a atribuição desigual de poder do marido/pai quanto a demais membros da família pode engessar as relações familiares. Além disso, há a naturalização da heterossexualidade como regra nas relações conjugais. Tais pressuposições teóricas são vistas como perigosas, por sugerirem a associação da orientação sexual não normativa a um emaranhamento na família de origem e à expressão de um problema familiar, o que confronta o acúmulo de discussão no campo da Psicologia quanto à despatologização da diversidade sexual e de gênero.
No âmbito das políticas públicas, a referida nota chama a atenção, ainda, para o fato de a constelação familiar figurar entre as Práticas Integrativas e Complementares (PICs), conforme a Portaria GM/MS nº 702/2018, que inclui novas práticas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC). Segundo a portaria citada, a constelação familiar é indicada “para todas as idades, classes sociais, e sem qualquer vínculo ou abordagem religiosa, podendo ser indicada para qualquer pessoa doente, em qualquer nível e qualquer idade, como por exemplo, bebês doentes são constelados através dos pais”.
Vale ressaltar que, apesar de ser extremamente difundida e amplamente utilizada – tanto no Sistema Único de Saúde (SUS) como no Sistema de Justiça -, a constelação familiar ainda não possui os requisitos necessários para que seja considerada como uma ciência, e seus fundamentos epistemológicos se mostram frágeis. Além disso, atenta-se à promessa de solução generalizada para problemas de muitas ordens, direcionada a um público indiscriminado.
Desse modo, reforça-se a não recomendação dessa técnica pois, além dos motivos dispostos anteriormente, a exposição de mulheres em situação de violência a tais procedimentos e técnicas pode sujeitá-las a situações de risco, insegurança e de revitimização. Denota-se, nesses casos, que não há uma situação de igualdade entre vítima e agressor, com vistas a um diálogo e ao estabelecimento de um acordo. A técnica, nesse contexto, acaba por mobilizar a vítima para um acordo, em uma situação adversa e de fragilidade, que não seria realizado em outras condições. Além disso, esse procedimento desconsidera a violência como consequência da desigualdade estrutural de gênero em nosso país e a reduz a um conflito individual.
Vale o destaque para o parecer do CFP sobre o Projeto de Lei nº 4.887/2020, que propunha regulamentar o exercício da profissão de constelador(a/e) familiar sistêmica(a/e) ou terapeuta sistêmica(o/e). Segundo o parecer, a(o/e) Psicóloga(o/e), ao se utilizar de técnicas, meios e recursos de caráter machista, sexista e hierárquico da doutrina que fundamenta as constelações familiares, estará se posicionando contrariamente ao exercício ético profissional e, consequentemente, favorecendo diversas formas e reproduções de violências.
Nota-se, portanto, um descompasso entre os pressupostos teóricos da constelação familiar e as diversas resoluções e outras normativas do Sistema Conselhos de Psicologia, além de leis que possuem interface com o exercício profissional da categoria.
Identifica-se conflito entre os mencionados pressupostos teóricos da constelação familiar e as seguintes resoluções do CFP:
- Resolução CFP nº 1, de 29 de janeiro de 2018 – estabelece normas de atuação de profissionais de Psicologia em relação às pessoas transexuais e travestis.
- Resolução CFP nº 1, de 22 de março de 1999 – estabelece normas de atuação para profissionais de Psicologia em relação à questão da orientação sexual.
- Resolução CFP nº 8, de 7 de julho de 2020 – estabelece normas de exercício profissional da Psicologia em relação às violências de gênero.
- Resolução CFP nº 8, de 17 de maio de 2022 – estabelece normas de atuação para profissionais da Psicologia em relação às bissexualidades e demais orientações não monossexuais.
- Resolução CFP nº 10/2005 – Código de Ética Profissional do Psicólogo, sobretudo no que se refere aos Princípios Fundamentais, sigilo, além de deveres (alínea c) e vedações (alíneas a, b, c, e, f).
- Resolução CFP nº 6, de 29 de março de 2019 – institui regras para a elaboração de documentos escritos produzidos por Psicólogas(os/es) no exercício profissional.
- Resolução CFP nº 1, de 30 de março de 2009 – dispõe sobre a obrigatoriedade do registro documental decorrente da prestação de serviços psicológicos (pois há ausência de previsão para realização de registro documental das atividades relativas à constelação familiar).
Além das referidas resoluções, ao naturalizar a violência, admitindo explicações ou justificativas para o uso da violência como mecanismo para restabelecimento de uma hierarquia violada, os pressupostos teóricos da constelação familiar também violam a Lei Maria da Penha e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069/1990).
Assim, levando em conta a inconsistência científica e epistemológica da constelação familiar, bem como sua dissonância com o Código de Ética Profissional do Psicólogo e legislações profissionais, o CRP-PR conclui que a prática é, no momento, incompatível com o exercício da Psicologia.
Por fim, ressaltamos, ainda, o posicionamento do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR), que, por meio da Recomendação nº 01/CEVID/TJPR/2022, orienta para a não utilização de constelações familiares ou sistêmicas em violência doméstica e familiar contra a mulher. Segundo consta no documento publicado pelo TJPR, a recomendação visa contribuir para o enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres a partir de uma perspectiva de gênero e de uma visão integral desse fenômeno, garantindo um atendimento qualificado e humanizado às pessoas envolvidas, e assegurando que a atuação de magistradas(os/es) e de integrantes das equipes técnicas se dê de forma efetiva, técnica e científica, em observância à legislação e às normatizações pertinentes a suas respectivas categorias profissionais.
Leis e Resoluções relacionadas
- Nota CRP-PR 03/2022 – orienta e recomenda a não utilização das constelações familiares no exercício profissional da Psicologia (Nota Técnica revogada pela Portaria nº 085/2023, de 06 de março de 2023).
- Recomendação nº 01/CEVID/TJPR/2022– recomenda a não utilização das constelações familiares ou sistêmicas em violência doméstica e familiar contra a mulher.
- Resolução CFP nº 18/2022– cria o Sistema de Avaliação de Práticas Psicológicas Aluízio Lopes de Brito e estabelece diretrizes para o seu funcionamento.
- Resolução CFP nº 010/05– aprova o Código de Ética Profissional do Psicólogo.
- Resolução CFP nº 010/97 – estabelece critérios para divulgação, a publicidade e o exercício profissional de psicólogas(os/es), associados a práticas que não estejam de acordo como os critérios científicos estabelecidos no campo da Psicologia.
- Resolução CFP nº 011/97– dispõe sobre a realização de pesquisas com métodos e técnicas não reconhecidas pela Psicologia.
- Resolução CNS 466/2012– aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos.
- Resolução CNS 510/2016– normatiza a pesquisa em ciências humanas e sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com participantes, ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana.