Orientação da COF
1. O que caracteriza violência contra as mulheres?
Entende-se por violência contra as mulheres “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher”, conforme aponta o artigo 1º da Convenção de Belém do Pará, adotada em 9 de junho de 1994. Portanto, o conceito de violência contra as mulheres tem por base a questão de gênero, e sua definição é ampla, abarcando diferentes formas. Conforme a Lei 11.340/2006:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.”
Ainda, considera-se violação de direitos a violência ocorrida na comunidade, perpetrada por qualquer pessoa, compreendendo, dentre outras ações, violação, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou qualquer outro espaço, além da violência institucional, perpetrada ou tolerada pelo Estado e/ou pelas(os) suas(seus) agentes.
2. Quais são os parâmetros para atuação das(os) Psicólogas(os) no atendimento às mulheres em situação de violência?
A Nota Técnica CRP-PR n° 004/2020 salienta que a atuação profissional deve estar em consonância com os Princípios Fundamentais do Código de Ética da(o) Psicóloga(o) (Resolução CFP 010/2005), ou seja, deve ter estar amparada no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiada nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A(O) profissional deve, ainda, agir de forma a promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades, contribuindo para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, atuando com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural.
Nesse sentido, deve-se considerar que a violência contra a mulher remete a um fenômeno multifacetado, com raízes histórico-culturais, e é permeada por fatores étnico-raciais, de classe, território e geração. Isso também exige da(o) Psicóloga(o), nesse contexto, uma fundamentação do trabalho a partir da dimensão ético-política, cujas práticas devem considerar as relações entre o Estado, a sociedade e a criação de frentes de atuação pautadas nos desafios do contexto social.
Desta forma, entende-se como imprescindível uma atuação com perspectiva interseccional, ou seja, práticas não uniformizadas ou homogêneas, mas que levem em consideração as demandas singulares das mulheres no momento do atendimento, já que cada caso possui especificidades que exigem especial atenção. Pensando nisso, faz-se importante a adoção de medidas tais como:
- acolher – o acolhimento se expressa por meio da escuta técnica qualificada, isto é, livre de julgamentos e flexível às necessidades decorrentes das diversidades das mulheres ao longo do atendimento;
- informar – as(os) profissionais, tanto nos serviços públicos como na clínica, por vezes, serão as únicas fontes de informação das mulheres; logo, é primordial que a(o) Psicóloga(o) possa, a partir de uma relação de confiança, sigilo e informação segura, construir com elas as possibilidades de denúncia ou saída da relação violenta. Para tanto, é fundamental que a(o) Psicóloga(o) conheça a legislação e produções teóricas acerca da temática, a fim de auxiliar na construção de estratégias de enfrentamento da situação de violência;
- encaminhar – é fundamental que as(os) profissionais conheçam as políticas e serviços disponíveis em seu território. Os serviços das políticas sociais devem estar em constante articulação, com o objetivo de ampliar e melhorar a qualidade do atendimento às mulheres em situação de violência.
3. Quais as orientações nos casos em que se faz necessário o encaminhamento?
É relevante destacar, de início, que por vezes os trabalhos setorizados ou restritos a um(a) única(o) profissional são insuficientes para atender a complexidade da demanda, exigindo a articulação efetiva entre as políticas sociais e ações que promovam mecanismos eficientes de combate à violência como, por exemplo, programas de acolhida e orientação às mulheres, acesso à justiça e medidas de segurança pública, constituindo políticas de prevenção, conscientização e coibição das violências. Essas áreas podem ser compreendidas como “porta de entrada”, as quais, de forma articulada, atuarão na assistência integral, tentando evitar a revitimização das mulheres em situação de violência.
A possibilidade do encaminhamento está prevista na Resolução CFP 010/2005 (Código de Ética) em seu artigo 6º:
Art. 6º – O psicólogo, no relacionamento com profissionais não psicólogos:
a) Encaminhará a profissionais ou entidades habilitados e qualificados demandas que extrapolem seu campo de atuação;
b) Compartilhará somente informações relevantes para qualificar o serviço prestado, resguardando o caráter confidencial das comunicações, assinalando a responsabilidade, de quem as receber, de preservar o sigilo.
Entretanto, antes de fazer o encaminhamento é importante que as(os) profissionais reflitam, fazendo uma autoanálise sobre sua qualificação profissional ao atender a demanda, avaliando a necessidade de encaminhar o caso, conforme estabelece o art. 1º alíneas “b” e “c” do Código de Ética. Além disso, é essencial verificar quais políticas sociais estão disponíveis em seu território para realizar o devido encaminhamento, evitando incorrer no encaminhamento vazio que possa conduzir a mulher em situação de violência à revitimização.
O encaminhamento deve ser realizado de forma pari passu, ou seja, de forma articulada entre Psicóloga(o) e assistida/atendida pelo serviço, caso contrário, tanto as mulheres quanto o trabalho correm o risco de ser fragmentados. Nesse sentido, o encaminhamento se dá pelo diálogo com a assistida, para que, em conjunto, sejam buscadas melhores estratégias.
Diante da complexidade dos casos que necessitam de encaminhamento, reforça-se a importância da leitura integral da Nota Técnica 004/2020, que orienta as(os) Psicólogas(os) sobre o atendimento a mulheres em situação de violência.
4. Quais serviços poderão ser acionados no encaminhamento?
O atendimento às situações de violência contra as mulheres apresenta um caráter integral e multidimensional, passando por diversas áreas, tais como saúde, segurança, assistência social, jurídica, etc. Essa rede é compreendida como “porta de entrada”, que de forma articulada atuará na assistência integral, evitando a revitimização das mulheres, conforme apresentado na ilustração abaixo:
Fonte: Nota Técnica CRP-PR n° 004/2020, que orienta as(os) Psicólogas(os) sobre o atendimento a mulheres em situação de violência, p. 8
A(O) Psicóloga(o) poderá acionar os serviços disponíveis em seu território, tais como CRAS, CREAS, Casas Abrigo, Guarda Municipal (Patrulha Maria da Penha), Unidade Básica de Saúde, Juizados Especializados, Casa da Mulher Brasileira, NUMAPE, entre outros. Informações adicionais podem ser obtidas por meio da Central de Atendimento à Mulher, pelo DISQUE 180.
5. É obrigatório fazer denúncia dos casos de violência contra a mulher?
A Lei nº 13.931 de 10 de março de 2019 determina que os casos envolvendo violência contra mulheres devem ser comunicados à autoridade policial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, quando houver indícios ou confirmação de violência contra as mulheres atendidas em serviços de saúde públicos e privados, ou seja, nas unidades de saúde, pronto atendimentos, consultórios, entre outros.
Contudo, entende-se que a obrigatoriedade da comunicação externa (denúncia) impacta diretamente na relação da(o) Psicóloga(o) com a usuária do serviço, uma vez que a(o) profissional não pode, nesses casos, resguardar o sigilo profissional exigido pelo Código de Ética, aprovado pela Resolução CFP 010/2005:
Art. 9º – É dever do psicólogo respeitar o sigilo profissional a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade das pessoas, grupos ou organizações, a que tenha acesso no exercício profissional.
Art. 10 – Nas situações em que se configure conflito entre as exigências decorrentes do disposto no Art. 9º e as afirmações dos princípios fundamentais deste Código, excetuando-se os casos previstos em lei, o psicólogo poderá decidir pela quebra de sigilo, baseando sua decisão na busca do menor prejuízo.
Embora a manutenção do sigilo profissional não seja absoluta e a sua quebra seja prevista e legítima nos casos necessários, compete exclusivamente à(ao) Psicóloga(o) a decisão pela manutenção ou quebra do sigilo visando ao menor prejuízo.
A violência contra as mulheres é considerada uma violação de direitos humanos. Qualquer proposta, norma, diretriz ou determinação que atente contra esses princípios ou implique a obrigatoriedade da quebra do sigilo profissional pode ser considerada contrária a esse direito pétreo. Por isso, é fundamental que a(o) Psicóloga(o) conheça as legislações que fortaleçam sua decisão pela manutenção do sigilo e afastem a obrigatoriedade da notificação policial.
Orienta-se, portanto, que a comunicação externa (denúncia) deve ser feita em situações em que a vida da mulher, das(os) suas(seus) filhas(os) ou de pessoas próximas a ela corra sério risco. Nos demais casos, a(o) Psicóloga(o) deve realizar um trabalho de fortalecimento das atendidas, buscando oferecer, por meio de um trabalho conjunto, ferramentas que possibilitem seu protagonismo, a fim de que elas tomem as medidas para denunciar as violências.
Diferentemente da denúncia ao sistema policial, que se configura como quebra de sigilo, a(o) Psicóloga(o) deve notificar o sistema de saúde, tendo em vista que a violência doméstica é entendida como uma questão de saúde pública e, portanto, devem ser semanalmente comunicados às autoridades de saúde os casos de violências domésticas, para fins estatísticos. Tal notificação deve ser realizada ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), e será utilizada com a finalidade única de obter dados epidemiológicos, a fim de mapear os agravos para construção de políticas públicas mais eficazes.
Essa notificação pode ser realizada mediante preenchimento da ficha de notificação, disponível em todos os serviços de saúde pública e, no caso de atendimento particular, pode ser obtida por meio do site do Ministério da Saúde e ser encaminhada para a vigilância epidemiológica municipal. Todas as violências cometidas contra as mulheres devem ser notificadas: psicológica, física, sexual, moral e patrimonial.
Dessa forma, diante de casos de sério risco de feminicídio, uma Nota Técnica do CFP reassegura a prerrogativa da quebra de sigilo profissional – mesmo sem o consentimento da assistida – e a realização de comunicação externa (denúncia), tendo como propósito preservar e proteger sua vida, a de suas(seus) filhas(os) ou de pessoas próximas, bem como possibilitar o acesso da(o) profissional aos serviços disponíveis na rede a fim de oferecer suporte às mulheres. Nas demais situações de violência contra as mulheres, poderá ser mantido o sigilo profissional, realizando-se somente a notificação compulsória, de caráter interno ao sistema de saúde (SINAN), obrigatória em todo o país.
As orientações apresentadas estão fundamentadas na Nota Técnica n°004/2020 que orienta as(os) Psicólogas(os) sobre o atendimento a mulheres em situação de violência. Acesse o documento clicando aqui.
Leis e Resoluções Relacionadas
Resolução CFP n°08/2020 – estabelece normas de atuação do exercício profissional em relação à violência de gênero
Lei n°10.778/2003 – estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados
Lei n°13.931/2019 – altera a Lei nº 10.778/2003, para dispor sobre a notificação compulsória dos casos de suspeita de violência contra a mulher
Lei n°11.340/2006 – Lei Maria da Penha
Decreto n°1.973/1996 – promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994
Decreto n°4.377/2002 – promulga a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979
Portaria n°204/2016 do Ministério da Saúde – define a Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território nacional, nos termos do anexo, e dá outras providências
Portaria de Consolidação n°4/2017 – apresenta a consolidação das normas sobre os sistemas e os subsistemas do Sistema Único de Saúde
Referência, Notas Técnicas e outros documentos sobre o tema:
Conselho Federal de Psicologia – Referências técnicas para atuação de psicólogas (os) em Programas de Atenção à mulher em situação de violência. Brasília: CFP (2013)
Nota Técnica CFP 004/2022 – versa sobre os impactos da Lei 12.318/2010 na atuação de Psicólogas e Psicólogos
Nota Técnica CRP-PR n°004/2020 – orienta as(os) Psicólogas(os) sobre o atendimento a mulheres em situação de violência
Nota Técnica CRP-PR nº 005/2018 – orienta as(os) Psicólogas(os) sobre a autonomia profissional
Nota técnica de orientação profissional em casos de violência contra a mulher (2016): casos para a quebra do sigilo profissional
Site CRP-PR – Categoria: Violência contra a mulher
Diálogo Digital – Nenhuma a menos: Psicologia na garantia dos diretos das mulheres