*Texto de Gabrielle Kepka (CRP-08/16818), colaboradora do Núcleo de Infância e Juventude da Comissão de Direitos Humanos de Curitiba
No dia 13 de julho comemoramos uma data importante no que se refere à garantia de direitos humanos: a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – instituído pela lei nº 8.069/1990 – completa 28 anos. A lei é um marco porque trouxe uma mudança importantes: se hoje as crianças e os adolescentes são vistos como sujeitos de direito e em fase peculiar do desenvolvimento, antes eram considerados “adultos em miniatura”; não havia diferenciação das atividades e das responsabilidades de um adulto e eram tratados por termos pejorativos, sem respeito à sua singularidade e sua história.
História
Nesta data, é importante analisar as etapas que antecederam este marco histórico. A legislação brasileira sofreu mudanças bastante significativas durante o século XX até a promulgação do ECA, em 1990, o que aprimorou também a prática das(os) profissionais que atuam com este público.
Década de 1920
O decreto nº 5.083, de 1º de dezembro de 1926, organizou o Código de Menores* – termo usado à época se referindo à distinção de idade no âmbito jurídico, mas, principalmente, fazendo alusão a crianças ou adolescentes pobres, abandonados(as) e delinquentes, que apresentavam comportamentos desviantes e por isso eram desprestigiados, considerando “vadios” os “menores” encontrados em situação de risco e vulnerabilidade.
Em seguida o decreto nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, conhecido como Código Mello Mattos, deliberou a consolidação das leis de assistência e proteção aos sujeitos “abandonados ou delinquentes”, menores de 18 anos, de ambos os gêneros, que estavam em situação de orfandade ou em famílias “desestruturadas”*, tendo como prioridade a correção – o termo “desestruturadas” era subentendido no Código e Menores, que fazia menção ao fato de que “o problema da pobreza e da criminalidade do menor era de origem familiar, isto é, uma decorrência da pobreza e do mal cuidado para com os filhos”.
Década de 1970
Já no ano de 1979 foi promulgado o segundo Código de Menores, pela lei nº 6.697, tendo como base ideológica a “Doutrina da Situação Irregular”. Este código dispunha sobre assistência, proteção e vigilância de “menores” de até 18 anos que se encontrassem em situação irregular (artigo 1º, 1979), além de proporcionar ao Estado o poder de aplicar medidas de “caráter preventivo” a qualquer “menor de dezoito anos, independentemente de sua situação” (artigo 1º, parágrafo único, 1979).
Este Código considerava estar em situação irregular a criança ou adolescente “Privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente”, seja por falta ou omissão dos pais ou responsáveis, deliberada ou por incapacidade financeira, maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável, perigo moral “em ambiente contrário aos bons costumes”, entre outras razões expostas no artigo 2º do Código.
Códigos de Menores: exclusão e violação de direitos
Os dois Códigos de Menores se dirigiam a um recorte específico de crianças e famílias, pois eram constituídos e influenciados pelos discursos médico/higienistas e jurídico/moralizantes da época, os quais desconsideravam as condições indignas vividas pelas famílias e as culpabilizavam pelo caos social. A pobreza era associada à instauração de violência e à ociosidade como pré-disposição para a criminalidade, por exemplo. Assim sendo, essas normativas jurídicas reforçavam as desigualdades sociais advindas da época da colonização do Brasil, dirigindo-se às populações que ainda sofrem com sua dificuldade de inserção no mercado de trabalho e acesso aos direitos, após a abolição da escravidão.
Os tempos do Código de Menores é o das FEBENS, instituições de internação em massa de crianças e adolescentes em situação de pobreza. O afastamento da família era tido como uma oportunidade de “reset na personalidade” das crianças e adolescente, já que se julgava estar nela o problema. Dessa forma, há o afastamento do convívio familiar e comunitário e, a partir disso, inúmeras violações dos direitos dessas crianças, adolescentes e famílias.
Ainda há muito a fazer, aplicar, estudar e desenvolver. Mas, a evolução que foi conquistada é motivo de comemoração. Agora, o trabalho é no sentido de que suas premissas atinjam a concretude da prática profissional com crianças e adolescentes.
Doutrina da Proteção Integral
Durante a ditadura militar presente, as diversas revoluções sociais passam a se preocupar com pessoas que carecem de atenção diferenciada, como crianças e adolescentes, que sofrem mais com a violência do Estado nesse período. Com isso, há a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, a qual a adotou a Doutrina da Proteção Integral e trouxe uma mudança efetiva, uma vez que crianças e os adolescentes foram colocados na posição de sujeitos de direitos, deixando de lado a doutrina de situação irregular.
A base da Doutrina da Proteção Integral foi definida pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança ao fazer referência a um “conjunto de direitos de natureza individual, difusa, coletiva, econômica, social e cultural, reconhecendo que criança e o adolescente são sujeitos de direitos e, considerando sua vulnerabilidade, necessitam de cuidados e proteção especiais” (MULLER, 2011, on-line).
Então, substituindo completamente o Código de Menores, o Estatuto da Criança e do Adolescente foi promulgado visando à proteção integral e defesa dos direitos das crianças e adolescentes do Brasil, embasado por conjuntos de instrumentos nacionais e internacionais.
Desafios
Apesar das arbitrariedades que ainda ocorrem em relação às crianças e adolescentes, fica nítido o salto evolutivo dado pela letra da lei que faz referência a esse público brasileiro. Esses sujeitos em fase peculiar de desenvolvimento, antes tratados como meros objetos de intervenção do Estado, passaram a ser vistos como indivíduos singulares e a ter um ordenamento especial que vise, de fato, à garantia de direitos inerentes a eles.
Ainda há muito a fazer, aplicar, estudar e desenvolver. Mas, a evolução que foi conquistada é motivo de comemoração. Agora, o trabalho é no sentido de que suas premissas atinjam a concretude da prática profissional com crianças e adolescentes.
* Os termos “menor” e “desestruturadas” possuem carga estigmatizante e estão em desuso.