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Entrevista com pesquisadora Mônica Malta aborda desafios da luta contra a Aids

Nesta quinta-feira (01), comemora-se o Dia Mundial de Luta Contra a Aids. Para falar sobre a temática, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR) conversou com Mônica Malta, pesquisadora da ENSP/Fiocruz e professora da Universidade Johns Hopkins, que trabalha com HIV/Aids há 20 anos. Atualmente, o foco da atuação da pesquisadora são os grupos socialmente excluídos, como usuários de drogas, pessoas vivendo com HIV/Aids, mulheres trans e travestis.

 

CRP-PR: Algumas estatísticas indicam que o número de infectados pelo HIV ainda preocupa. Quais os grupos (jovens, mulheres, usuários de drogas, profissionais do sexo) e formas de infecção (relações sexuais, uso de seringas, etc.) que mais preocupam hoje?

Mônica Malta: O último Boletim Epidemiológico de HIV/Aids do Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais acaba de ser divulgado e está disponível online [acesse clicando aqui]. Uma análise cuidadosa dos dados recém divulgados aponta para importantes aspectos da epidemia de HIV/Aids brasileira.

Inicialmente é possível identificar que a epidemia de HIV/Aids no Brasil apresenta uma certa tendência à estabilização em patamares elevados:

· 41,1 mil casos de Aids notificados nos últimos cinco anos;

· 20,7 casos/100 mil habitantes nos últimos 10 anos;

· Coeficiente de mortalidade: 5,9 óbitos/100 mil habitantes (2006) versus 5,6 óbitos/100 mil habitantes (2015)

 

Outros dados apontam para uma possível reemergência da epidemia em grupos específicos: maior suscetibilidade das novas gerações – jovens entre 15 e 24 anos diagnosticados com Aids nascidos na década de 1990 apresentam uma incidência 3,2 vezes maior do que aqueles nascidos em 1970 (vide estudo realizado por Alexandre Grangeiro e publicado no livro “Mito vs Realidade: sobre a resposta brasileira à epidemia de HIV e Aids em 2016”, disponível aqui.

Ou seja, jovens que iniciaram suas práticas sexuais após o advento da epidemia de HIV/Aids, quando o impacto da terapia antirretroviral já era amplamente conhecido, tendem a adotar um comportamento menos seguro do que aqueles que iniciaram suas relações sexuais quando surge a epidemia no país.

A epidemia se mantém concentrada em grupos mais vulneráveis, com importante acréscimo entre a população de homossexuais masculinos (35,3% em 2006 para 45,4% em 2015). Jovens homossexuais masculinos nascidos em 1990 apresentam incidência seis vezes maior quando comparados com seus pares nascidos em 1970.

Outros grupos historicamente mais susceptíveis à violações de direitos humanos, sujeitos à violência sexual, estrutural e de gênero também apresentam prevalências muito elevadas para o HIV/Aids, como mulheres transexuais e travestis. Mas a infecção pelo HIV é apenas um marcador da extrema exclusão na qual vivem essas mulheres. O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, respondendo por 40% de todos os assassinatos ocorridos no mundo entre 2008-2015. As frequentes experiências de violência estrutural, inclusive vivenciada em serviços públicos de saúde, é um dos aspectos que mais afasta esse grupo da testagem precoce, identificação de agravos diversos em saúde e acesso ao tratamento adequado. Uma pesquisa nacional está em curso, com o objetivo de identificar as dificuldades enfrentadas por esta população para propor estratégias mais adequadas e tentar mudar esta triste realidade.

Diferenças regionais importantes precisam ser lembradas, salientando a epidemia da região sul, na qual observa-se aproximadamente 30 casos/100 mil habitantes nos últimos 10 anos (versus 20,7/100 mil habitantes na média nacional dos últimos 10 anos). Porto Alegre apresentou taxa de 74,0 casos/100 mil habitantes em 2015, valor correspondente ao dobro da taxa do Rio Grande do Sul e a quase quatro vezes a taxa do Brasil.

Diversos aspectos podem levar a uma reemergência e recrudescimento da epidemia no Brasil: (1) diagnóstico tardio; (2) grande contingente de pessoas que desconhecem seu status sorológicos; (3) taxas de prevalência do HIV acima dos 5% em regiões com alto grau de urbanização; (4) altas prevalências entre populações específicas; (5) perda de seguimento clínico de importante percentual dos pacientes em HAART e (6) uma mortalidade por AIDS elevada e persistente.

 

As formas de prevenção estão bastante disseminadas e mesmo testes e medicamentos são mais acessíveis. A que você atribui a resistência à prevenção e a persistência dos casos de infecção?

Em 2016 “comemoramos” 20 anos da lei nº 9.313, de 13 de outubro de 1996, que assegurou acesso universal e gratuito aos antirretrovirais (ARV). Na época o Brasil foi considerado um modelo internacional a ser seguido. No entanto, o país atualmente enfrenta uma enorme crise política, descrita por inúmeros analistas como a mais grave turbulência experimentada pelo país no período pós-democratização – que culminou com o impeachment da presidente eleita Dilma Roussef. Diversas decisões tomadas nos últimos anos pelo governo federal e posições defendidas pelo novo Ministro da Saúde demonstram uma postura bastante diversa da adotada pelo Brasil ao longo da elaboração da tão aclamada ‘resposta brasileira à epidemia de HIV/Aids’.

Nas últimas décadas observa-se uma transformação na sociedade e na política brasileiras que resultaram em uma expansão de visões conservadoras e moralistas em relação à sexualidade, gênero, educação, família. Estas tendências regressivas têm influenciado a adoção de políticas de gênero e sexualidade mais conservadoras, pari passu ao crescimento do poder político de forças conservadoras e religiosas dogmáticas. O Brasil possui historicamente uma epidemia de HIV/aids concentrada em populações-chave (profissional do sexo, homossexuais, transexuais…), cujos direitos humanos, acesso a políticas de prevenção, qualidade de assistência e existência (ou não) de ações afirmativas tentem a ser impactados de forma negativa por estes grupos mais conservadores. Este aspecto, ao meu ver, responde por uma parcela do problema que hoje observamos na epidemia de HIV/Aids. Estudos recentes identificam uma prevalência de 40% ou mais entre mulheres transexuais, prevalências altas tem também sido identificadas entre outros grupos mais vulneráveis, como profissionais do sexo e jovens homossexuais masculinos.

Essa dinâmica tem impactado negativamente as políticas públicas de vários campos “moralmente sensíveis”, como saúde e direitos reprodutivos, HIV e AIDS e educação em sexualidade. A partir de 2011, início do primeiro mandato presidencial de Dilma Rousseff (2011 até 2014; 2015 até 2018), temos claros sinais de recuo nas políticas públicas de gênero e sexualidade. Três acontecimentos são exemplares: em 2011, a suspensão da divulgação de material educativo para as escolas no âmbito do Programa Brasil Sem Homofobia (o chamado kit anti-homofobia ou kit gay pela imprensa); em 2012, foram as polêmicas quando do cancelamento da campanha de prevenção de carnaval voltada ao público de jovens gays; e em 2013, o veto à campanha dirigida a profissionais do sexo, que conjugava prevenção com autoestima na prostituição, e que redundou também na demissão sumária do coordenador do Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais. Em 2015, quando se inaugurou a legislatura mais conservadora do país desde 1964 (ano do golpe militar), um projeto de lei de criminalização da transmissão do HIV de 2001 foi desarquivado e começou a tramitar de maneira acelerada. Sua aprovação foi contida pela mobilização da sociedade civil brasileira e de atores institucionais nacionais e internacionais comprometidos com a pauta de HIV e direitos humanos. Com o impeachment da Presidente Dilma, este padrão conservador recrudesceu ainda mais, tendo o Ministro da Saúde atual defendido claramente a privatização da saúde e outras ações que impactam direta ou indiretamente na qualidade e eficácia de estratégias voltadas para a prevenção do HIV/Aids e/ou assistência a pessoas vivendo com HIV/Aids.

 

“Um país não pode manter-se na vanguarda da resposta ao HIV/Aids, ou de qualquer questão que envolva sexualidade e gênero, sem estar aberto ao diálogo e à construção de ações feitas por e para grupos mais vulneráveis”

 

Estes são exemplos pontuais que demonstram como a pressão de legisladores conservadores, pertencentes à base política no governo, tem influenciado negativamente a adoção de intervenções, campanhas e estratégias de vanguarda, mais adequadas às necessidades da epidemia atual. Um país não pode manter-se na vanguarda da resposta ao HIV/Aids, ou de qualquer questão que envolva sexualidade e gênero, sem estar aberto ao diálogo e à construção de ações feitas por e para grupos mais vulneráveis. Para além dessa abertura, o apoio político e institucional é fundamental para que elaboradas em conjunto sejam efetivamente implementadas e apoiadas pelo governo federal nos serviços públicos de saúde, escolas, na mídia etc.

 

Qual deveria ser o foco das campanhas de combate à Aids?

Não existe “uma” campanha que possa ser eficaz e adequada para todas as regiões brasileiras, que aborde de forma eficaz “todos” os grupos populacionais, culturais e sociais que compõem o mosaico da população brasileira. As estratégias de prevenção precisam ser diferenciadas, adequadas à realidade, ao grupo para o qual foram pensadas. E as intervenções precisam ser avaliadas, revisadas, elaboradas através de um amplo diálogo e participação com os grupos aos quais se direcionam.

Os métodos preventivos incluem um amplo leque de abordagens biomédicas, comportamentais e estruturais. Entre as abordagens biomédicas, podemos citar as profilaxias pré-exposição (PrEP), pós-exposição (PEP), a controvertida promoção da circuncisão masculina médica voluntária (CMMV) e o conceito de ‘tratamento como prevenção’ (supressão da carga viral pela terapia antirretroviral, o que diminui o risco de transmissão para parceiros(as) HIV-negativos(as)). Todas essas estratégias foram avaliadas cientificamente e foram consideradas eficazes. Mas essa ‘eficácia’ depende muito do contexto sociocultural, do grupo acessado, da infraestrutura em saúde disponível, da existência ou não de redes de apoio, etc. Preservativos masculinos e femininos continuam disponíveis como dispositivos de barreira física contra a transmissão do vírus. E existem diversas estratégias de prevenção combinada, que incluem métodos de prevenção comportamentais, estruturais, contextuais. Além disso, diversas formas de redução de danos como troca de agulhas e seringas, serosorting (escolha de parceiros sexuais tendo conhecimento prévio de seu estado sorológico), segurança negociada, parceiros exclusivos, etc., também servem como alternativas de prevenção do HIV.

 

“O grande problema que eu vejo é que muitas vezes falta a grupos historicamente marginalizados o acesso adequado a estratégias de prevenção, assistência e apoio. Muito frequentemente são relatadas experiências de estigma e preconceito em serviços de saúde”

 

O grande problema que eu vejo é que muitas vezes falta a grupos historicamente marginalizados o acesso adequado a estratégias de prevenção, assistência e apoio. Muito frequentemente são relatadas experiências de estigma e preconceito em serviços de saúde. Não raro, mulheres trans e travestis não têm sua identidade de gênero e nome social respeitados em serviços de testagem, não recebem o necessário acolhimento e/ou esperam muito mais pelo atendimento em saúde. Um serviço de saúde que não é acolhedor, no qual a pessoa trans se sente discriminada, tende a falhar na oferta de informações, tratamento, apoio médico, social e psicológico para essas pessoas.

Esses são exemplos pontuais, para responder à pergunta com uma provocação: haveria “uma” campanha eficaz para combater a Aids? Ou deveríamos mudar o foco para elaborar junto com a sociedade civil, os grupos afetados, diversas respostas locais, compartilhadas, feitas por e para pessoas vivendo com HIV/Aids, ou mulheres trans, ou jovens gays, ou alunos do ensino médio… Tais estratégias locais, elaboradas com base no diálogo e feitas tendo como norte o respeito à diversidade e aos direitos humanos seriam, ao meu ver, estratégias bem sucedidas em seu escopo local. Que deveriam ser posteriormente avaliadas, revisadas, implementadas e apoiadas pelos gestores, formuladores de políticas, profissionais de saúde, comunidade etc.

 

“Haveria “uma” campanha eficaz para combater a Aids? Ou deveríamos mudar o foco para elaborar junto com a sociedade civil, os grupos afetados, diversas respostas locais, compartilhadas, feitas por e para pessoas vivendo com HIV/Aids, ou mulheres trans, ou jovens gays, ou alunos do ensino médio…”

 

A epidemia de AIDS caracteriza-se por afetar grupos sociais extremamente vulneráreis, estigmatizados e excluídos como minorias étnicas e raciais, pobres, usuários de drogas, população LGBT*, profissionais do sexo, mulheres…A resposta à Aids, a prevenção adequada, o tratamento mais eficaz só será possível a partir da estruturação de intervenções compartilhadas, que incluam as vozes desses diferentes grupos e que abordem não apenas uma infecção, mas principalmente os aspectos culturais, sociais, estruturais que determinam a maior desigualdade desses grupos.

 

Qual a importância desta data (01 de dezembro) para o combate à doença?

Transformar o 1º de dezembro em Dia Mundial de Luta Contra a Aids foi uma decisão da Assembleia Mundial de Saúde, em outubro de 1987, com apoio da ONU. No Brasil a data passou a ser adotada em 1988, por uma portaria assinada pelo Ministério da Saúde. Todos nós que vivemos, convivemos, estudamos e trabalhamos com HIV/Aids utilizamos esse dia para somar esforços, divulgando informações sobre o que temos feito e o que ainda precisa ser feito na luta contra a Aids.

No Dia Mundial da Luta Contra a AIDS a mídia abre mais espaço para abordar a epidemia de HIV/Aids, a população em geral tem mais acesso a informações sobre o tema e tentamos desmitificar mitos, abordar preconceitos, etc. Mas, para nós, a luta contra a Aids acontece todos os dias.

 

Que mensagem você deixaria para a população sobre o tema?

Muito se tem falado sobre a ‘cura da Aids’. Se quisermos verdadeiramente erradicar a Aids, precisamos estar abertos ao diálogo. Precisamos de democracia, precisamos de um SUS forte, responsivo, com financiamento adequado, profissionais de saúde com estabilidade, qualificados e capazes de atender à demanda da população. Não precisamos de ‘planos mais acessíveis’ e de qualidade duvidosa, mas sim do respeito à Constituição de 88, a qual menciona em seu artigo 196 que: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

 

“Precisamos de democracia, precisamos de um SUS forte, responsivo, com financiamento adequado, profissionais de saúde com estabilidade, qualificados e capazes de atender à demanda da população”

 

A ‘cura da Aids’ não chegará enquanto não formos capazes de desmontar desigualdades, iniquidades históricas que afetam de forma diferenciada determinados grupos da sociedade brasileira. E apenas esses grupos mais excluídos são verdadeiramente capazes de contribuir para a elaboração de estratégias eficazes. Sem dar voz a essas pessoas historicamente silenciadas, a cura da Aids, da violência, da desigualdade de gênero e tantas outras mazelas continuarão em um horizonte distante.

Por fim, deixo aqui uma frase do jornalista e sociólogo Herbert Daniel, que morreu em 1992 em decorrência da Aids. “Há uma coisa dentro de mim, contagiosa e mortal, perigosíssima, chamada vida, lateja como desafio”.

 

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