
O Dia Internacional dos Direitos Humanos (10/12) é uma data importante em que reafirmamos a luta diária pela dignidade da vida em todos os aspectos. Originalmente, a data faz referência à Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada em 1948, mas a cada ano as temáticas se renovam de acordo com as questões mais prementes.
Em 2021, a Organização das Nações Unidas destaca a necessidade de restaurar a igualdade, uma vez que o mundo se desenvolveu deixando milhões de pessoas para trás – e a pandemia da Covid-19 catalisou este processo.
No Brasil, esta realidade está cada vez mais evidente. A fome voltou a assolar milhões de pessoas enquanto desemprego e inflação seguem em índices elevados. Os dados são alarmantes. De acordo com o relatório “Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil”, mais de 116 milhões de brasileiras(os) conviviam com algum grau de insegurança alimentar em dezembro de 2020 e 19 milhões estavam em situação de fome. Além disso, reportagem do G1 mostrou que somente 26% das crianças atendidas pelo SUS fazem três refeições por dia em 2021 – no ano anterior, este índice foi ainda menor, de apenas 21%.
E este problema não é apenas físico: a fome é também uma questão de saúde mental. É o que afirmam Julia Mezarobba Caetano Ferreira (CRP-08/25872) e João Victor Silva (CRP-08/25123), que coordenam o Núcleo de População em Situação de Rua do CRP-PR. E, se não olharmos para a situação de insegurança alimentar considerando seus impactos diversos sobre as pessoas e as famílias, “a prática psicológica pode acabar desconsiderando uma parte concreta e primária do sofrimento humano, ignorando em sua análise aspectos fundamentais para a construção da autoimagem, da autoestima e da subjetividade de uma pessoa”, afirmaram em entrevista exclusiva alusiva a esta data.
Confira abaixo a entrevista completa:
Quais os "efeitos", por assim dizer, a falta de acesso à alimentação pode ter sobre a saúde mental das pessoas? A Psicologia como ciência se debruça sobre estas questões, ou isso é invisibilizado?
É importante pensar que a fome denota a alienação de um direito humano básico à alimentação adequada. Conforme somos confrontados com notícias sobre o aumento da então erradicada fome no país, é relevante pensarmos o que leva a esta situação. Ou, melhor dizendo, o que deixou de ser feito para que a fome novamente ocupasse as manchetes dos jornais.
Nilson Lira Lopes, militante do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) no Rio Grande do Sul, na apresentação da obra intitulada Mas, se a gente é o que come, quem não come nada some! É por isso que ninguém enxerga essa gente que passa fome, descreve:
“A fome é a maior violência que se pode submeter um ser humano e nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão profundamente e em um sentido tão nocivo quanto a fome. Eu sou a própria fome! Sou a fome personificada, porque a fome não está apenas no meu corpo, mas ela está na minha alma, na minha genética, na minha ancestralidade, portanto ela está em todas as dimensões da minha existência."
A trajetória de vida de Nilson nos demonstra quais são os efeitos da fome e da convivência persistente com ela.
“Comecei a trabalhar aos 7 anos de idade para ajudar no sustento dos meus irmãos para que eles pudessem se alimentar, fui uma criança doentia, tive muitos problemas de saúde e de comportamento. Tive convulsões, agonia, ansiedade, depressão, e não conseguia acompanhar meus colegas na escola, sentia dor de cabeça, tonturas, e aos 18 me tornei dependente de álcool, aos 22 fiquei a primeira vez em situação de rua e logo comecei a usar outras drogas.”
No relato, percebe-se a associação que Nilson faz entre a fome e sofrimentos de ordem psi, como o baixo rendimento escolar, a agonia, a ansiedade, a depressão, e até mesmo o uso abusivo de substâncias psicoativas como resposta ao sofrimento que o sujeito experimenta ao ficar de barriga vazia.
É importante refletir sobre a passagem em que Nilson afirma ser a personificação da fome. De que forma a fome atravessa a construção da subjetividade de uma pessoa?! Sabemos apenas que, mesmo vivendo em segurança alimentar e nutricional, o fantasma de conhecer de perto a fome ainda paira sobre a vida das pessoas que em algum momento experimentaram o temor de dormir mais uma noite com a barriga vazia.
A escassez de discussões e produções científicas que abordem a fome a partir da perspectiva da Psicologia revela um pouco o tamanho da invisibilidade que paira sobre aqueles que vivem em insegurança alimentar e nutricional.
É fato que existem estudos com relação à forma que a fome repercute no ser humano, mas este conhecimento, em si teórico, não aparenta estar nos conhecimentos práticos de quem atua constantemente com quem sente fome. Com isso, a prática psicológica pode acabar desconsiderando uma parte concreta e primária do sofrimento humano, ignorando em sua análise aspectos fundamentais para a construção da autoimagem, da autoestima e da subjetividade de uma pessoa.
“Eu sou a pedagogia da fome, sou o conhecimento que não está nas universidades, e as abordagens feitas pelos alunos/acadêmicos são importantes, mas, sozinhas, não são suficientes para encontrar uma solução para a fome, essa grave doença social que traz consigo diversas outras doenças físicas e sociais.”
Acreditamos que essa fala de Nilson traz a importância de enquadrarmos a fome como questão coletiva e não individual. O problema da fome não é apenas de quem passa fome, mas de toda sociedade: enquanto houver no mundo alguém passando fome, teremos falhado enquanto coletivo.
O problema da fome não é apenas de quem passa fome, mas de toda sociedade: enquanto houver no mundo alguém passando fome, teremos falhado enquanto coletivo.
Julia Mezarobba Caetano Ferreira (CRP-08/25872) e João Victor Silva (CRP-08/25123) Tweet
Estes "efeitos" são diferentes de acordo com cada configuração familiar (famílias com crianças por exemplo) ou mesmo em cada pessoa, ou a fome causa os mesmos malefícios em todas as pessoas?
De forma individual é impossível prever quais podem ser as formas de sofrimento e as estratégias de enfrentamento que uma pessoa que passa fome pode desenvolver. No entanto, enquanto seres humanos percebemos a vulnerabilidade destes indivíduos sendo levadas a pontos muito delicados e intensos de sofrimento devido à fome. Afinal, “quem tem fome tem fome agora”, e o que resta quando se convive constantemente com algo que deveria ser saciado de imediato?
Acreditamos que a configuração familiar impacta simbolicamente na construção de sentido para a fome. Por exemplo, em famílias com crianças, a fome pode representar aos pais uma falha em prover as condições necessárias para um desenvolvimento saudável de seus filhos, podendo aflorar sentimentos como a culpa e a impotência. Já para o filho dessa família, ver os pais não conseguindo suprir uma necessidade tão básica quanto a alimentação pode desmantelar a visão idealizada dos pais que as crianças costumam nutrir. Não conseguimos avaliar os possíveis impactos psíquicos disso.
Além da construção das subjetividades e vínculos familiares frente a um contexto de pobreza alimentar e nutricional, há de se problematizar também o trabalho infantil que muitas vezes surge como resposta familiar à fome: qual o peso de imputar a uma criança tamanha responsabilidade? E como pensar na família que, desesperada, vê na criança a possibilidade de obtenção de renda, para que a comida consiga estar à mesa? Essas, sem sombra de dúvidas, são questões com que a Psicologia deveria se ocupar.
Como a Psicologia deve se posicionar ao propor cuidados a pessoas em situação de vulnerabilidade extrema e fome?
É necessário entender a fome como uma questão também de saúde mental. A fome em si é uma situação basilar que precede outras questões humanas. É preciso pensar sobre que indivíduo estamos falando: se suas necessidades básicas, como alimentação, higiene, segurança, moradia e sustento estão em alguma medida garantidas. A privação de qualquer um destes fatores já é um desencadeador de sofrimento mental. É importante pensar numa atuação da Psicologia que vise à garantia destes fatores como condição primeira para a possibilidade de debate sobre saúde mental.
Muito mais do que pensar qual a responsabilidade da Psicologia com relação à fome, precisamos pensar em como a Psicologia pode contribuir para um debate ampliado junto com a sociedade, pensando que a fome não é apenas a ausência de comida, mas de toda uma rede de direitos que deixam de ser garantidos.
Muito mais do que pensar qual a responsabilidade da Psicologia com relação à fome, precisamos pensar em como a Psicologia pode contribuir para um debate ampliado junto com a sociedade, pensando que a fome não é apenas a ausência de comida, mas de toda uma rede de direitos que deixam de ser garantidos.
Julia Mezarobba Caetano Ferreira (CRP-08/25872) e João Victor Silva (CRP-08/25123) Tweet
Que reflexões você proporia para Psicólogas(os) trabalhando em políticas públicas como CRAS e CREAS, ou Consultórios na Rua, ao se depararem com este público em vulnerabilidade extrema?
A insegurança alimentar e nutricional ressoa na construção subjetiva que uma pessoa faz de si mesma e pode acabar levando ao sofrimento psíquico. O profissional Psi que atua junto à populações em situação de vulnerabilidade e risco social precisa estar atento a essas questões, de modo a considerar que, assim como não se pode olhar uma pessoa domiciliada da mesma forma que uma pessoa em situação de rua, também não é prudente atuar com uma pessoa que enfrenta a fome da mesma forma que se atua junto a grupos populacionais em situação de segurança alimentar. Sabemos que a fome pode trazer consequências cognitivas e emocionais. Logo, esse fator não deve ser desconsiderado em atendimentos psicológicos.
É importante pensar que a vulnerabilidade social extrema faz com que as pessoas vivam uma experiência em sociedade completamente diferente das pessoas que não passam por esta situação, mudando sua percepção e significado para elementos comuns deste convívio. Em alguns casos essas pessoas podem, de alguma forma, abandonar esse convívio social ou até mesmo criar novas significações à realidade na tentativa de apreender e compreender o contexto em que se está inserido.
Partir do pressuposto de que pessoas em vulnerabilidade social extrema irão agir da mesma maneira que o restante da sociedade implica em não compreender, quiçá ignorar deliberadamente, a vulnerabilidade social e alimentar que assola a existência de tantos brasileiros.
O Estado falha em prover segurança alimentar para todas as pessoas. A sociedade deve suprir essa necessidade através de doações e caridade, por exemplo, ou isso apenas agrava a desumanização destas pessoas, por aprofundarem e prolongarem sua condição de vulnerabilidade social? Neste caso, deveríamos focar mais em demandas políticas públicas de erradicação da fome?
A fome é uma demanda urgente. Quem tem fome tem agora. Talvez agir amanhã já seja tarde demais. Nesse sentido, entendemos que iniciativas da sociedade civil são importantes, sobretudo frente à escassez de políticas públicas que enfrentamos para o grupo de pessoas em situação de vulnerabilidade alimentar. Seguimos a lógica de que “se não fizermos algo agora, podemos perder vidas para a fome”. E, sem dúvidas, a vida deve ser um valor soberano frente a situações de pobreza nutricional.
Ao mesmo tempo, entendemos que as iniciativas “caridosas” expõem uma complicada relação de poder entre quem doa e quem recebe, auxiliando na promoção e manutenção de uma posição hierárquica social e paternalista. A doação é importante, desde que ela em si propicie também estratégias e estruturas que permitam com que o próprio indivíduo que a recebe possa desenvolver sua autonomia e capacidade de lidar com a própria situação. Do contrário, estamos apenas reforçando uma estrutura que acaba criando uma dependência destas pessoas às doações, enquanto não lhes é dada a possibilidade de tomar decisões sobre si mesmos. Para quem tem fome é necessário dar o peixe, a vara e ensinar a pescar. Dar apenas um destes elementos é aprisioná-lo à “caridade” do outro.
Além disso, essa dinâmica exime o Estado de sua responsabilidade em formular políticas públicas de fato comprometidas com a erradicação da fome. “Oras, se a sociedade civil assume para si uma responsabilidade do Estado, por que este se ‘oneraria’ pensando e promovendo políticas públicas para uma questão que a própria sociedade já está buscando dar conta?!” Neste sentido, entendemos como importante as iniciativas assistencialistas da sociedade civil neste momento em que o Brasil retornou ao mapa da fome, visando à preservação dessas vidas. Mas, consideramos ainda mais importantes as iniciativas sociais que busquem imputar ao Estado sua responsabilidade em formular ações adequadas ao grupo de pessoas que sofrem com a fome diariamente em nosso país.
Terminamos com as palavras de Nilson Lopes “(…) a fome não é somente um gráfico, uma tabela ou um número nas estatísticas, mas uma realidade (…) a fome tem cor, tem corpo, tem nome, tem rosto e está em todos os lugares, basta olhar para o lado e querer ver, e não tratar como invisível.”