
O mundo terminou 2019 com mais um recorde no número de refugiados. Em dezembro havia 79,5 milhões de pessoas na condição de deslocamento forçado, sendo 40% desse contingente formado por crianças, muitas desacompanhadas. Em uma década, o total de pessoas que saíram de seus países em função de guerras, conflitos, perseguições ou graves violações de direitos humanos – condições que dão direito ao refúgio – quase dobrou, puxados especialmente pelos êxodos da Síria e recentemente da Venezuela. Com a pandemia do novo coronavírus, a situação destas pessoas tende a se agravar, especialmente levando em consideração que 85% delas se encontram em países em desenvolvimento.
Todos estes dados estão no último relatório da Acnur (Agência das Nações Unidas para Refugiados), e reforçam a necessidade de um olhar para as necessidades que vão desde as mais básicas, como abrigo, alimentação e saúde, até os cuidados com a saúde mental. Este objetivo foi o que motivou o Núcleo de Psicologia e Migrações do Conselho Regional de Psicologia do Paraná (NUPSIM) a elaborar um texto sobre “Atenção à população migrante no contexto da pandemia”.
O material faz um apanhado da situação de refugiados e da legislação brasileira sobre o tema, apontando possíveis riscos como o fechamento temporário das fronteiras, as violações de direitos já conquistados (como a deportação só poder ser realizada após audiência) e o acirramento do racismo e da xenofobia. Além disso, traz apontamentos sobre os principais impactos de toda essa situação sobre a saúde mental e como a Psicologia deve atuar: “No que diz respeito à população migrante, cabe às(aos) profissionais localizar as práticas que promovem a intensificação de vulnerabilidades em contexto de pandemia e suas consequências no bem-estar psicológico dos indivíduos e suas comunidades, sendo profissionais habilitadas(os) a produzir uma resposta adequada às demandas de cuidado, amparo e acolhimento”.
As Psicólogas Isabela Cim Fabricio de Melo (CRP-08/30839) e Luana Lubke de Oliveira (CRP-08/31102) coordenam o NUPSIM e participaram da redação do documento. Elas também colaboram no Projeto de Extensão Migração e Processos de Subjetivação da UFPR e apontam que uma das principais questões que afetam refugiados é a barreira linguística, que dificulta o acesso a informações, desde a compreensão do contexto atual até a busca pelo auxílio emergencial, por exemplo. Tudo isso, aliado à falta de instituições que ofereçam atendimento psicológico e à ausência de condições para o acolhimento online agravam a situação de vulnerabilidade desta população – por exemplo, o Centro de Informação para Migrantes, Refugiados e Apátridas do Paraná (CEIM), que é uma referência na área, não provê assistência psicológica.
Impactos da pandemia na subjetividade
Alguns desafios que perpassam a vida de refugiados durante a pandemia são comuns a diversas comunidades vulneráveis: dificuldade de encontrar recursos como água e sabão (ou álcool em gel) para higienização das mãos, falta de moradia ou abrigos superlotados – que dificultam ou inviabilizam o distanciamento social – e redução na renda familiar devido à desaceleração econômica. No caso de refugiados ou comunidades que vivem em zonas de conflito ou com grave violações dos direitos humanos, no entanto, a memória de eventos recentes pode afetar a resposta à pandemia.
É o que explica Mariana Duarte, Psicóloga que coordena equipes de saúde mental em uma organização humanitária internacional e foi uma das fundadoras do NUPSIM. Na Libéria, país onde esteve em sua última missão, ela conta que a recente epidemia do ebola fez com que muitas pessoas se cuidassem mais agora, mas outras não se atinham às recomendações por se preocuparem mais com o provimento de alimentos para os filhos, por exemplo. Além disso, a perda recente de familiares pode potencializar a sensação de ansiedade e insegurança.
Algo, no entanto, é certo: populações muito vulneráveis se tornam ainda mais invisibilizadas, e os fechamentos de fronteiras e transportes vêm afetando até mesmo o fornecimento de medicamentos. Ainda assim, para o futuro Mariana imagina que também possa haver uma consequência positiva. “Na crise o ser humano produz mais arte e ciência. Acredito também que as pessoas possam se abrir para o diferente, com mais solidariedade e respeito”, pondera.
A frase foi dita pela venezuelana Yilmary de Perdomo quase ao fim de seu depoimento durante a última conferência da Acnur, realizada no dia 18 de junho, na qual ela contou como chegou ao Brasil há quatro anos portando um diploma de terapeuta ocupacional, mas precisando recomeçar a vida do zero. Acabou encontrando a oportunidade de que precisava para se estabelecer financeiramente na venda de quitutes típicos de seu país, mas, com a crise trazida pela pandemia, precisou outra vez recomeçar, desta vez com entregas e aulas de culinária online. Ela destaca que imigrantes e refugiados trazem na bagagem sua cultura e conhecimentos, e que o único desejo é agregar ao país que os recebem. Seu sonho para o futuro é um “mundo onde se possa viver sem fugir”.