No Brasil assistimos, recentemente, a um fenômeno de “multiplicação” de datas alusivas às campanhas de saúde: são meses temáticos e coloridos, são outras efemérides quaisquer que buscam chamar a atenção sobre causas como a saúde do homem, a saúde da mulher, a prevenção do suicídio, a visibilidade trans, entre outras. O Dia Mundial da Saúde Mental, criação de 1992 da Federação Mundial de Saúde Mental, ligada à Organização Mundial de Saúde, e celebrado em 10 de outubro, abre mais uma janela de oportunidades para conversarmos sobre saúde mental. Que bom.
Mas, de qual saúde mental exatamente nós estamos falando? Ao levantarmos esta questão, fazemos alusão aos discursos sobre “tratamento da doença mental” que, paradoxalmente, defendem causas divergentes da concepção contemporânea e crítica que se pauta não só na “qualidade de vida”, mas também no olhar para o contexto social onde o sofrimento mental é tratado – ou produzido.
Ou seja, em nome do “cuidado em saúde mental”, muitas práticas retrógradas que culminam na construção de novos espaços de isolamento social são “naturalizadas”, atendendo a interesses diversos, tais como: a internação para “dependentes químicos” e a abstinência como regra para as(os) usuárias(os) abusivas(os) de álcool e outras drogas; a minimização das complexidades subjetivas e sociais, a medicalização em regime ambulatorial, ou, as práticas neo-manicomiais recauchutadas sob espaços intramuros (ainda que com pisos encerados e cheirando desinfetante, em vez de pisos de cimento frio cheirando urina).
Precisamos estar atentos à direção desses debates: trata-se de “consertar” a doença mental, com seu estigma de sujeito-sintoma quebrado, desprovido de mérito (ou seus equivalentes), ou trata-se de construir saúde mental, com um projeto cívico de acolhimento às diferenças e outras políticas de subjetivação?
Por isso, o Dia Mundial da Saúde Mental precisa ser ocupado como mais um Dia da Luta Antimanicomial. Todos os movimentos sociais, éticos, estéticos, científicos e políticos que abriram caminho para que a Reforma Psiquiátrica acontecesse em diferentes locais do mundo a partir da segunda metade do século XX, com seus avanços, enfrentamentos e singularidades, não cansam de afirmar: não há como trazer a pauta da saúde mental sem discutir o modelo de sociedade que desejamos — e a consequente crítica ao modelo de sociedade que temos. Não basta “tratar as pessoas”, é necessário “tratar o projeto de civilização” em curso.
Este é o mote principal de uma outra data ainda mais pungente no Brasil: o dia 18 de maio, Dia da Luta Antimanicomial. A proposição “por uma sociedade sem manicômios”, desde a histórica “Carta de Bauru” de 1987, é nítida. Não se trata “só” de fechar os hospícios, mas de depurar a lógica manicomial das práticas clínicas, das legislações, dos equipamentos e das relações entre trabalhadoras(es), usuárias(os) e familiares de portadoras e portadores de sofrimento mental.
Para dar corpo a esses argumentos, cabe resgatar as colocações de Paulo Amarante, um dos protagonistas do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental desde a década de 1970 e um dos médicos sanitaristas mais atuantes no campo da Luta Antimanicomial, quando se refere, em seu livro “Loucos pela Vida” (Editora Fiocruz, 1995), às dimensões do cuidado em saúde mental, especialmente naquilo que ele chama da “dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica”.
O estudo das dimensões do cuidado em saúde mental proposto por Amarante é amplo e refinado, não é nosso objetivo sintetizá-lo aqui, mas vale o anúncio de sua pertinência. E, para dar “imagem ao pensamento”, gosto de traçar um paralelo de seus conceitos sobre as quatro dimensões da Reforma Psiquiátrica com a imagem trivial de uma mesa que se apóia sobre quatro pernas. Vejamos:
A primeira dessas dimensões (ou pernas da mesa) diz respeito à consolidação dos chamados serviços substitutivos aos espaços asilares: precisamos, de fato, avançar na consolidação do cuidado em liberdade, com ênfase nos Centros de Atenção Psicossocial e, sobretudo, no fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial no Brasil, ponto extremamente sensível em um cenário de corte de gastos e sucateamento do Sistema Único de Saúde que atravessamos. Mas, também, precisamos avançar com a invenção de outros dispositivos de convivência e reabilitação psicossocial, com o fortalecimento das equipes de saúde mental na atenção primária em saúde, com a consolidação das Unidades de Acolhimento Transitória para as(os) usuárias(os) abusivas(os) de álcool e outras drogas, entre tantos outros pontos da atenção psicossocial.
A outra das pernas dessa mesa diz respeito aos dispositivos jurídicos: não só as legislações de base, como a chamada Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216-2001) e seus atravessamentos decorrentes da “Nova Política de Saúde Mental” do atual Governo Federal precisam ser debatidas, como, entre exemplos, a própria política de Guerra às Drogas precisa ser pautada com seriedade e veemência. Não há luta contra o fim da exclusão social no manicômio que possa ser sustentada, de forma ética, enquanto a exclusão social de pessoas vitimadas pela Guerra às Drogas em penitenciárias se passar por “naturalizada”.
Uma terceira dessas pernas seria a dimensão técnico-assistencial: de nada adianta serviços qualificados e dispositivos jurídicos, se as(os) trabalhadoras(es) estiverem operando suas clínicas e técnicas ainda regidas sob o modelo manicomial, com a delimitação de papéis e o recorte dos saberes dos “especialistas sobre loucura”, com suas respectivas expectativas de cura ou práticas que partem de vias protocolares, “de cima pra baixo”, ou seja, sem o protagonismo de suas usuárias e seus usuários. Sobre este ponto, a atuação de conselhos de regulamentação profissional, como o Conselho de Psicologia, é estratégica na sua função precípua de orientar, fiscalizar e disciplinar a atuação profissional. Mas, ações isoladas e compartimentadas não bastam: o próprio debate sobre a formação profissional, a produção de conhecimento e as estratégias de supervisão clínico-institucional precisam ser enfatizadas, entre tantos outros pontos.
E, por fim, de nada adianta tudo isso acontecer se a sociedade continuar bradando que “o louco é perigoso”, que “precisamos de mais vagas no hospício” ou que “todo usuário de drogas é um viciado e precisa ser internado”. Esta seria a quarta perna da mesa, a chamada dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e, na atual conjuntura de debates polarizados, esta é umas das áreas cada vez mais sensíveis.
Tal qual uma mesa de quatro pernas não se sustenta sem uma destas — pode até parar em pé, mas desmonta facilmente — não há defesa possível da Saúde Mental que se possa abster de uma dessas frentes. Mesa manca não tolera jarro de flores, por mais belas que sejam as flores.
Por isso o Conselho Regional de Psicologia do Paraná toma a palavra neste “Dia Mundial de Saúde Mental” para lembrar que este também é um dia de Luta Antimanicomial: não há como resumir esse debate às falácias simplistas, do tipo “a Organização Mundial de Saúde aponta que a depressão será a principal causa de afastamento do mercado de trabalho”, sem problematizar a própria questão do emprego na atualidade e, principalmente, sem problematizar a assunção de pensamentos reativos e neofascismos que segregam cada vez mais as diferenças, em vez de dilatar nossa capacidade de acolhimento a elas. Há muito para tratarmos e, principalmente, há muito por lutarmos (também) nesse Dia Mundial da Saúde Mental.
Por Altieres Edemar Frei, Psicólogo (CRP-08/20211) e assessor técnico de pesquisa do CRP-PR