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“Se a normalidade é branca, tudo o que não for branco é inferiorizado”, diz Alexandra Loras em entrevista exclusiva ao CRP-PR

No dia 25 de julho é comemorado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Neste ano, para trazer reflexões sobre a data, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR) entrevistou a jornalista, consultora e empresária Alexandra Loras. De origem francesa e radicada no Brasil, Alexandra já foi consulesa da França no país e discute questões relacionadas a gênero e racismo. Busca ajudar as empresas a criarem ambientes mais inclusivos e com respeito à diversidade, conscientizando-as de que o ambiente mais equilibrado oferece mais saúde, criatividade e gera melhores resultados.

Acompanhe a seguir a entrevista:

CRP-PR – A senhora fala muito sobre o empreendedorismo e as relações raciais. Há vários estudos que mostram como é difícil para as pessoas negras, sobretudo para a mulher negra, serem reconhecidas pelo mercado. Como você percebe e quais são essas diferenças no mundo empreendedor? Os padrões machistas e racistas comuns na sociedade brasileira se repetem quando o tema é investimento em novas ideias?Alexandra Loras – Com certeza, os números do empreendedorismo mostram que a maioria dos empreendedores no Brasil (56%) são negros. Só que as instituições financeiras têm uma grande dificuldade de enxergar a possibilidade de emprestar dinheiro para empreendedores negros. Então, tem uma economia informal que gera mais de R$ 1 trilhão no Brasil por ano e sem CNPJ.  Hoje, precisamos perceber o quanto essa oportunidade econômica não está sendo estudada pelos economistas por um preconceito profundamente enraizado na cultura brasileira.

Uma pesquisa da Makenzie, por exemplo, demonstra que as empresas que reequilibram a diversidade étnico-racial aumentam 35% o negócio dela em termos de rentabilidade. Porque, se você só deixa homens brancos da PUC, GV, Makenzie para desenvolver produtos e campanhas de marketing e publicidade para falar com o verdadeiro público brasileiro, que é composto de 114 milhões de negros, eles não conseguem dialogar com esse público, porque eles não conhecem esse público, eles não se relacionam com esse público, e eles estão cheios de estereótipos sobre esse público. Então, por trazer mais negros nas empresas, elas conseguem “performar”, co-criar, inovar melhor, se adaptar melhor com o verdadeiro público brasileiro.

As universidades brasileiras, com as cotas nestes últimos dez anos, tiveram um aumento de 350% de negros. Então, negros com mestrado, doutorado, que falam inglês, tem milhares. Mas o preconceito das empresas, dos RHs, faz com que eles não percebam estes talentos, que acabam sendo freelancers, empreendedores, porque não conseguem se recolocar no mercado brasileiro clássico. Eu ajudei na contratação de 458 negros em multinacionais o ano passado, em 2018, e vejo como as empresas estão falando de diversidade, mas tem pouquíssima expertise na inclusão. Então, eu sou consultora para ajudar as empresas nesse processo através dos meus treinamentos, workshops e palestras.

Negros com mestrado, doutorado, que falam inglês, tem milhares. Mas o preconceito das empresas, dos RHs, faz com que eles não percebam estes talentos, que acabam sendo freelancers, empreendedores, porque não conseguem se recolocar no mercado brasileiro clássico.

O empreendedorismo também é utilizado muitas vezes para nomear atividades realizadas para a sobrevivência, sem qualquer garantia de direitos trabalhistas ou mesmo de condições mínimas de vida. Desta forma, no discurso midiático a pessoa que acorda às 5h da manhã para fazer e vender bolo se torna uma empreendedora guerreira e com força de vontade. Como você analisa situações como essa? Qual a sua concepção de empreendedorismo e como ele se relaciona com populações em situação de vulnerabilidade social?Com certeza a economia informal, no Brasil, gera mais de R$ 1 trilhão, e infelizmente não tem CNPJ, não tem abertura de conta bancária, por preconceito das instituições financeiras. Tem uma criatividade na frequência da sobrevivência e da necessidade de “se virar”, e acho que realmente o Brasil não está olhando o preconceito que ele tem. Se olhamos o Carnaval, ele é feito por pessoas que chamamos de carentes, analfabetos funcionais, pobres. E, na verdade, a liderança organizacional do carnaval é umas melhores do mundo: sai tudo na hora, impecável, é parametrado, é o maior evento criativo do mundo. E é feito por essas pessoas que muitos enxergam como carentes, como incapazes.

Imagina se essas mesmas pessoas tivessem a oportunidade de colocar o talento que elas usam no Carnaval dentro da economia brasileira, dentro da sua empresa, dentro da sua história. Por isso, precisamos repensar nossa sociedade, com mais empatia e compaixão.

Se olhamos o Carnaval, ele é feito por pessoas que chamamos de carentes, analfabetos funcionais, pobres. E, na verdade, a liderança organizacional do carnaval é umas melhores do mundo: sai tudo na hora, impecável, é parametrado, é o maior evento criativo do mundo. Imagina se essas mesmas pessoas tivessem a oportunidade de colocar o talento que elas usam no Carnaval dentro da economia brasileira, dentro da sua empresa, dentro da sua história.

Há mudanças em termos de representatividade da mulher negra na mídia, em contextos que antes eram mais reservados a homens e, posteriormente, mulheres brancas, como o próprio jornalismo e as artes. O que se avançou e o que precisa avançar? Como essas mudanças impactam o futuro de meninas negras?

Personalidades como a jornalista Maju Coutinho, Joyce Ribeiro e Taís Araújo vêm inspirando as negras a se enxergarem capazes de se tornarem jornalistas, apresentadoras, atrizes em vários papéis dentro da novela, como protagonistas  – o que antes era sempre no papel da faxineira, da amante que destruía o casamento dos ricos brancos, sempre hiperssexualizada. Hoje, estamos começando a ter juízas negras, advogadas negras dentro das produções audiovisuais. Elas vão mudando o imaginário das pessoas.

Vivemos em um momento em que a sociedade se encontra dividida entre grupos de pessoas que defendem os direitos de mulheres e pessoas negras e outros que dizem que esta não é uma questão relevante, que é “mimimi” ou que minimizam o racismo. Para você, quais são as formas possíveis de superação dessa dicotomia?

Recentemente, tivemos o caso da atriz Halle Bailey, anunciada como a escolhida para representar a Pequena Sereia, que mostrou o racismo implícito na nossa sociedade. Na verdade, para nós, negros, o racismo implícito não precisa ser demonstrado por polêmicas como esta. Ela é muito óbvia para nós. Isso só ajuda as pessoas brancas a perceberem que existe um problema. Uma sereia que é uma personagem imaginária, ficcional, deu toda uma polêmica, como também gerou a escolha de uma mulher negra para interpretar o James Bond 007.

Acho necessário que existam essas polêmicas para justamente ajudar a enxergar o elefante na sala. E parar de pensar que é vitimismo, que é mimimi. Somos vítimas de um sistema extremamente patriarcal, machista e racista com um eurocentrismo que faz a branquitude não se enxergar como uma das raças, mas como a normalidade. Quando você se enxerga como “a normalidade”, você vai inferiorizando todos os que não estão considerados normais no seu olhar. Portanto, se a normalidade é branca, tudo o que não for branco é inferiorizado.

Então, hoje precisamos debater, polemizar, brigar, gritar, para justamente reequilibrarmos a sociedade. Mas, não podemos deixar só o homem branco falar que é mimimi, que não existe, que é vitimização. Hoje é tempo de escutar o outro lado. Esse lugar de fala, essa nova era na qual estamos, em uma comunicação mais diversa, deixa aparecer outros pontos de vista e é o que o Brasil me proporcionou.

Então, hoje precisamos debater, polemizar, brigar, gritar, para justamente reequilibrarmos a sociedade. Mas, não podemos deixar só o homem branco falar que é mimimi, que não existe, que é vitimização. Hoje é tempo de escutar o outro lado.

A senhora acredita que a forma como a mulher negra latina é vista pelo resto do mundo mudou nos últimos anos? Como?

Com certeza nesses últimos anos, em certos lugares do mundo, a questão da mulher negra, e não só latina, ela vem mudando de forma radical e muito forte na moda, no mundo dos desfiles, nas propagandas. Por exemplo, eu ajudei a aumentar em 600% a presença da mulher negra na revista Vogue nesses últimos anos com palestras, conscientização, e o resultado é fenomenal, só que ainda não é 54% da revista, como é a representatividade negra no Brasil, segundo o IGBE.

 

Agora, eu acho que tem uma mudança no imaginário e, obrigada a Netflix, que vai colocando a mulher negra e homens negros como protagonistas de seriados. É genial o que isso proporciona para nossa sociedade, mudando paradigmas, arquétipos. Acho muito necessário e a velocidade dessa representatividade está acelerando, o que me deixa muito feliz, por fazer parte dessa mudança que quero ver no mundo.

Agora, eu acho que tem uma mudança no imaginário e, obrigada a Netflix, que vai colocando a mulher negra e homens negros como protagonistas de seriados. É genial o que isso proporciona para nossa sociedade, mudando paradigmas, arquétipos.

No Congresso atual, deputadas federais negras têm relatado que são solicitadas a mostrar seus crachás em todas as áreas de acesso restrito, o que não ocorre com os homens e com as deputadas brancas. Ser uma mulher negra em um lugar de poder ou de liderança deve estar cercado por exemplos como esses. Como é possível modificar essa realidade?

Não só no Congresso atual, mas em todos os lugares somos tratadas com racismo. É uma frequência o racismo. Não é apenas alguém te chamar de macaca. É alguém te tratar com menos respeito que com brancos. Isso nos acontece todo dia, em cada esquina do Brasil. Para mim o racismo no Brasil nunca foi velado, mas, está tão enraizado na cultura que as pessoas se acostumaram a ele no dia a dia.

 

Na residência consular, por exemplo, na qual eu recebia 6 mil pessoas por ano, o protocolo coloca a questão de eu ficar na entrada da residência para acolher os convidados. Muitos achavam que eu era a empregada doméstica da residência consultar. Você entrar em uma loja de lingerie e perceber que as pessoas não vêm te atender porque não acham que você, como mulher negra, pode consumir naquela loja. Hoje, eu vejo que, por exemplo, entrar em uma loja de brinquedo no Brasil – seja em Salvador ou em Curitiba –, e não achar um super-herói negro no país onde a maioria das crianças são negras é ainda pior que pedir o crachá no Congresso. Isso é educar as crianças a se tornarem racistas desde a base.  Não ter negros protagonistas nos desenhos animados me incomoda ainda mais do que alguém me perguntar se eu sou a babá do meu filho para entrar em um clube. Mas, é importante perceber que nossa jornada é muito difícil.

Não achar um super-herói negro no país onde a maioria das crianças são negras é ainda pior que pedir o crachá no Congresso. Isso é educar as crianças a se tornarem racistas desde a base.

Muito se tem discutido sobre “lugar de fala”. Algumas pessoas consideram que pessoas brancas não podem discutir o racismo e que homens não deveriam falar sobre o machismo. Já outras defendem que homens e pessoas brancas sejam aliadas das mulheres e das pessoas negras e que é importante agregar essas pessoas na luta contra o racismo e machismo. Como você vê essa questão?

Eu discordo daquele conceito do “lugar de fala” que proíbe os homens e pessoas brancas de discutir machismo e racismo. Justamente, eu acho que os homens inventaram o machismo e são eles que têm que resolver. O negro já é inferiorizado, é isolado socialmente, tem menos recursos econômicos, está sempre em um momento de sobrevivência. É o branco que tem que resolver a questão do racismo e os homens que têm que resolver a questão do machismo, se colocando como aliados, escutando nosso ponto de vista e apoiando. É preciso que eles façam parte e se tornem ativistas na luta antirracista. Não é só dizer “eu sou contra o racismo”. E, o que você fez hoje contra o racismo?

Não é papel do negro resolver o que a opressão e a dominação extremamente sofisticadas que o eurocentrismo fez para milhões de pessoas. Precisamos resolver tudo isso juntas e juntos, entendendo que há também um momento para conseguir escutar o outro. Estamos entrando nessa fase e discordo de não deixar os homens e os brancos entrarem na pauta.

Temos que tirar das costas do branco a mochila do passado. O branco de hoje não é responsável pela escravidão de ontem, como o alemão de hoje não é responsável pelo holocausto do Hitler. Mas, somos todos responsáveis para reequilibrar nossa sociedade e é preciso reconhecer que a chave do jogo está ainda nas mãos do branco.

O branco de hoje não é responsável pela escravidão de ontem, como o alemão de hoje não é responsável pelo holocausto do Hitler. Mas, somos todos responsáveis para reequilibrar nossa sociedade e é preciso reconhecer que a chave do jogo está ainda nas mãos do branco.

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