Pesquisar
Close this search box.

Notícia

Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua

20 anos depois do Massacre da Sé, profissionais de Psicologia promovem saúde e dignidade em Consultórios na Rua

Texto produzido por: Juliana Cordeiro

Entre os dias 19 e 22 de agosto de 2004, a praça da Sé, em São Paulo, tornou-se palco da morte violenta de 7 pessoas em situações de rua, além do ferimento de outras 8 pessoas nessa situação. Segundo investigações, as mortes faziam parte de ações de extermínio realizadas por policiais e seguranças privados, a pedido de comerciantes da área, que estavam incomodados com a presença de pessoas em situação de rua na região central da cidade. 20 anos se passaram, e a justiça não penalizou os responsáveis pelos crimes. No entanto, a partir desse evento, conhecido internacionalmente como o “Massacre da Praça da Sé’, surgiram movimentos de mobilização  de pessoas em pró da defesa dos direitos humanos  de pessoas em situação de rua, culminando na criação do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), e seu lançamento oficial, em 2005, durante o  4º Festival Lixo e Cidadania. 

Para demarcar a luta pela vida e a promoção da cidadania de pessoas em situação, desde 2005 o Movimento Nacional pela População Situação inicia diálogos e faz incidência política para que o Massacre da Praça da Sé não fosse esquecido e tampouco se repetisse, demarcando assim, o dia 19 de agosto como Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua. A atuação política  do movimento, composto somente por pessoas que já estiveram ou estão em situação de rua,  levou à criação e aprovação da Política Nacional para População em Situação de Rua, em 2009 (Decreto nº 7.053, 2009).

Assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda, bem como, a criação de  meios de articulação entre o Sistema Único de Assistência Social  e o Sistema Único de Saúde para qualificar a oferta de serviço, são dois objetivos da Política Nacional da População em Situação de Rua que subsidiaram a inclusão das pessoas em situação de rua na Política Nacional de Atenção Básica. Criada em em 2011, essa política teve entre suas ações a criação de equipes de Atenção Básica para Populações Específicas, entre elas a Equipe do Consultório na Rua, responsável pelo atendimento às pessoas em situação de rua. É através do Consultório na Rua, que profissionais de Psicologia também tornam-se fundamentais para a promoção da saúde física e mental de pessoas em situação de rua.

A equipe faz injeção na rua, vacina na rua, curativo e anticoncepcional injetável trimestral nas mulheres em situação de rua. E a gente tem uma agenda, que todo dia a gente constrói essa agenda, com as demandas que chegam pra gente de outro serviço, como o serviço muito parceiro nosso, que é o Centro Pop Rua e a abordagem social, explica a psicóloga Sara Gladys (CRP-08/07092), que atua há 6 anos  Consultório da Rua de Londrina. 

Para entender e compreender mais sobre a dinâmica de acesso, atendimento e desafios encontrados por quem presta atendimento psicológico no Consultório da Rua, leia a entrevista  com a psicóloga Sara Gladys Toninato (CRP-08/07092). A profissional tem mais de 15 anos de atuação com políticas voltadas à população em situação de rua. Psicóloga Clínica e mestre em Psicologia, há 6 anos Sara atua em uma das equipes do Consultório na Rua de Londrina. De acordo com ela, a política do Consultório na Rua é o ponto máximo da atenção do SUS, sendo uma ponte entre a rua e o cuidado. 

CRP-PR: Como funciona a equipe do Consultório na Rua de Londrina (PR)?  

Sara Gladys Toninato (CRP-08/07092): Aqui em Londrina temos duas equipes. A equipe da manhã e a da tarde. A gente faz um turno de seis horas cada. A equipe da manhã, que é a equipe que eu participo, é da modalidade três do Consultório da Rua, composta por  6 profissionais.  Então, a gente tem 1 enfermeira, 1 médico, 1 assistente social, 1 psicóloga e 2 técnicas de enfermagem. Vamos juntos para a rua fazer o atendimento in loco. Na verdade, eu considero o consultório na rua como um equipamento em que o SUS se mostra mais. É o ponto máximo da atenção do SUS, porque a gente vai até a pessoa, no local onde ela estiver. Fazemos vários procedimentos da enfermagem, da psicologia também, ali no local onde a pessoa está.

Como de fato ocorre a atuação de profissionais de Psicologia no contexto da atuação dessas equipes multiprofissionais nos Consultórios da Rua? Me conte como é sua rotina e qual é seu  papel como Psicóloga nos atendimentos, por exemplo

Como profissionais de Psicologia nossa escuta é uma escuta qualificada, uma questão que eu prezo muito é a questão da leitura do território. A relação de forças que tem no território, as relações de poder que existem no território, isso tudo eu acredito que seja papel do Psicólogo que está fazendo essa leitura. Isso contribui muito para o atendimento eficaz dos outros profissionais, por quê? Porque a gente vai fazer um atendimento numa área de risco, por exemplo, o enfermeiro e o médico estão focados na questão do ferimento, do sofrimento do corpo daquela pessoa, das dores, das mazelas, vamos dizer assim, físicas. E nós, profissionais da psicologia, a gente se foca mais no outro aspecto, que são as relações, como elas se estabelecem, o autocuidado. É possível que essa pessoa, por exemplo, tenha uma prescrição médica em forma de comprimidos. Eu discuto muito isso com o médico, porque às vezes há troca de profissional, principalmente o profissional da enfermagem. Então, eles chegam com aqueles, entre aspas, vícios, de que eu vou atender essa pessoa e esta outra. Eu vou prescrever antibiótico de 8 em 8 horas por 7 dias. A pessoa em situação de rua não tem condição de seguir com esse tratamento porque ela não tem relógio, ela não tem casa, ela não tem lugar para guardar a medicação. Então, a gente contribui muito nisso também, na escuta dessa pessoa, na escuta qualificada, e isso vai determinar que o tratamento seja efetivo, porque a gente considera todas as condições que essa pessoa está vivendo naquele lugar. 

 

Uma outra questão que é muito séria é a questão da segurança também. Nós profissionais do consultório, a gente entra em locais que ninguém entra, só a nós é dada permissão de entrar em alguns mocós, por exemplo. A gente chama de mocó, que é um espaço onde as pessoas fazem uso de substâncias,e onde há comercialização também de substância. Então, a gente está em contato com o tráfico o tempo todo, e eu percebo que os outros profissionais não têm essa visão da leitura de território. Por exemplo, entra aquele bando de gente dentro do Mocó. Eu falo, não gente, precisa entrar uma pessoa, duas pessoas no máximo, e pedir licença. Não interessa se a pessoa está dormindo embaixo de uma árvore ou de um viaduto, ali é a casa dela. Ninguém entra na sua casa sem pedir permissão, e sem ter autorização para que isso seja feito. Então, essa parte mais emocional, vamos dizer assim, relacional, é nós (Profissionais de Psicologia) que estamos mais atentos a isso. Sem contar na questão de ouvir mesmo, ter aquela paciência de sentar embaixo de uma árvore, escutar a história de vida, entender.  A partir da história de vida, você vai entender porque esse sujeito foi parar ali naquele lugar. Isso contribui muito para que não haja pré-julgamentos, porque você vê aquela pessoa ali, daí o senso comum fala, a pessoa está na rua porque ela quer, ela está na rua porque ela quer usar droga, ela é isso, ela é aquilo, quer dizer, você não escuta a história dela antes, para entender como ela veio parar ali. Isso é papel profissional do Psicólogo, chamar a equipe, chamar a atenção da equipe para isso, para esse atendimento humanizado. 

Toda pessoa em situação de rua que chega até o Consultório na Rua  obrigatoriamente faz atendimento com pessoa Psicóloga? Existe algum tempo determinado para esse atendimento ocorrer ?

 

É bem dinâmico.Têm casos que a gente precisa se debruçar mais, enquanto profissional da Psicologia, por conta da singularidade daquela situação, que são pessoas que apresentam um sofrimento mental mais acentuado, e aí a gente é chamado a participar mais. Mas, como eu te disse, a gente é uma equipe muito pequena. Às vezes sai o médico e a enfermeira, por exemplo, para um lado, e sai eu, assistente social, e o técnico da enfermagem para outro lado. Então, nem sempre estou presente em todos os atendimentos, por conta da questão da precariedade do número de equipe, do número de pessoas. A equipe da tarde hoje, por exemplo, tem uma enfermeira e uma técnica de enfermagem. Não contrataram mais Psicólogo, não contrataram mais assistente social, são duas pessoas que ficam à tarde, a gente tem feito apoio. Toda segunda-feira eu fico à tarde para apoiar a equipe da tarde, e a assistente social fica um dia na semana também. Mas, enfim, é muito dinâmico. 

 

O Consultório na Rua é itinerante, ou seja, não fica sempre no mesmo local. E, de acordo com sua explicação, as ações precisam ser adaptadas de acordo com o território de atuação e a equipe.  Me conta como funciona a organização para o atendimento? 

A gente tem um carro que funciona como uma Unidade Básica de Saúde (UBS) ambulante. Nós temos tudo aquilo que uma UBS oferece. A gente leva três bolsas grandes no carro. Uma bolsa é do médico, que tem todas as medicações que existem na UBS, mas em quantidade pequena, é claro. Na rua a gente faz  injeção, vacina, curativo, anticoncepcional injetável trimestral nas mulheres em situação de rua. Temos uma agenda, que é construída diariamente com as demandas que chegam pra gente de outros serviços, como o serviço muito parceiro nosso, que é o Centro Pop Rua  e a abordagem social. Quando eles identificam alguma situação em que há necessidade do consultório estar, eles passam para a gente essa demanda, a gente coloca essa demanda na agenda e vai passando. O pré-natal, a gente tem uma bolsinha de pré-natal com balança, com equipamentos de cardiotocografia para escutar o coraçãozinho do neném, tudo na rua. Uma conquista recente nossa foi ganhar o projeto para colocar Implanon nas mulheres em situação de rua, mulheres de idade fértil, que é um anticoncepcional intradérmico, que dura três anos. Então, a gente coloca aqui no antebraço, a gente faz tudo na rua. Porque o consultório na rua é uma ponte, uma ponte entre a rua e o cuidado, entre o hospital, a maternidade, a UBS e o CAPs. Então, o ideal seria que a gente não existisse, não precisasse existir, porque a pessoa poderia acessar, mas eles não vão porque estão sujos, não tem lugar para tomar banho. Muitos são egressos do sistema prisional e aí a família não recebe mais, eles vão para a rua e tem medo de ir nos locais de atendimento à saúde, pois acham que vão ser presos. A gente explica que não, que não é assim, que a gente está ali para trabalhar somente a questão da saúde, que não interessa para a gente outras questões. Então, eu acho que o ponto máximo de humanização do SUS  é o consultório na rua.

 

Como você avalia o atual cenário do Consultório da Rua em Londrina? Quais são os desafios? 

O maior desafio hoje, eu acredito, é ter pernas para alcançar esse público. Até 2022 a gente só tinha uma equipe para atender as pessoas em situação, sendo Londrina uma cidade com mais de 500 mil habitantes. Meu sonho de consumo, enquanto profissional da Psicologia, seria que a gente pudesse ter acesso a essas pessoas que estão em situação de rua nos bairros. A gente tem muito nos bairros. Nos bairros afastados do centro da cidade. E a gente acaba ficando mais no entorno do centro ou em locais onde tem muita concentração de pessoas. Porque a gente não tem perna, a gente não consegue fazer essa cobertura que seria a cobertura ideal, por conta da falta de profissionais mesmo, falta de pessoal. 

 

Equipe do Consultório na Rua de Londrina realizando atendimento de pessoas em situação de rua. Na ocasião estavam presente Enfermeira, técnica de enfermagem e assistente social num atendimento a um casal em situação de rua. Foto: Arquivo Sara Gladys
Na foto, Psicóloga Sara Glady está em local de mata fechada, no qual reside muitas pessoas em situações de ruas que fazem uso de substâncias psicoativas. De acordo com Sara, o local é conhecido como a Cracolândia de Londrina.
plugins premium WordPress

Utilizamos cookies e tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência em nossos serviços. Ao continuar navegando, você concorda com estas condições. Para ter mais informações sobre como isso é feito, acesse Política de cookies.