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Memoriais e relicários: onde guardamos as recordações de quem amamos?

O texto estará disponível também na edição Novembro/Dezembro da Revista Contato, a ser disponibilizada em breve

Desastres, tragédias e pandemias vivenciados pela humanidade, além de causarem espanto pelas suas proporções e temores acerca do presente e do futuro, levam-na a lidar, dentre tantos outros, com um sentimento aterrador: o luto. Para lembrar o nome, história, bravura, sofrimento e feitos de quem foi vítima de episódios que abreviam vidas e impõem a morte não apenas a quem se vai, mas também para quem permanece e precisa lidar com ela, o ser humano encontrou nos memoriais uma espécie de redenção. Quando o sofrimento se consolida e a ausência assume sua irreversibilidade, edificações, monumentos e panteões são erguidos, sendo a lembrança um dos seus maiores pilares. Até a chegada do momento em que o luto se solidifica nesses espaços ou até noutras plataformas – inclusive as digitais –, percorre-se um trajeto marcado por muitas angústias.

Após o início da pandemia do novo coronavírus, o Brasil se despede de mais um ano difícil amparado em medidas tardias e, por isso, insuficientes para impedir o contágio da Covid-19 e sanar as múltiplas consequências socioeconômicas do seu alastramento, enquanto segue contando suas perdas. Segundo dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), a região Sudeste registrou, desde 2003, mais mortes do que nascimentos, com São Paulo e Rio de Janeiro concentrando a maioria dos óbitos; no Rio Grande do Sul, as mortes também superaram os nascimentos em 2021. Nesse cenário, é impossível ignorar os fatores intervenientes, a começar pelo governo necropolítico que, sustentado pela desinformação, ao invés de salvaguardar a vida, conduziu muitas(os) brasileiras(os) à morte, colocando um país inteiro sob o manto do luto.

A Psicóloga Ana Bela dos Santos (CRP-08/20822), psicanalista, educadora e mestra em Desenvolvimento Comunitário dedicada ao acolhimento clínico e ao manejo de grupos, comenta as consequências do elevado número de mortes registradas durante a pandemia e seus reflexos no processo de enlutamento. Citando Pichon-Rivière, um importante autor da Psicologia Social, ela lembra que o ser humano é grupal e o seu cérebro se comporta na busca pela aproximação com outros indivíduos. Para a profissional, a desinformação e a desproteção promovidas durante esse período tornam o luto ainda mais amargo, já que não se é possível vivenciar as grupalidades, dentre as quais os ritos fúnebres, interrompidos pela pandemia. Sobre esse fator, Ana afirma que “quando a morte ocorre, a fragilidade ganha dimensões ainda maiores diante da percepção de que outras pessoas não se comportaram conforme a situação, e o que já era extenuante se torna ainda mais aflitivo”.

Recodificando o amor pela memória

Com a morte da pessoa amada, vive-se um processo de (re)codificação. “Perder alguém para a morte é constatar que essa pessoa desapareceu em sua forma física; restam apenas a memória, a lembrança e o imaginário. Mas o ser humano precisa de representações psíquicas, dar nome às coisas. A morte, porém, não possui uma representação objetiva, por isso a elaboração do luto é tão difícil”, Ana explica. Submersas em seu próprio luto pessoal e familiar, as pessoas não deixaram de percebê-lo externamente, refletido na contagem diária dos óbitos, nas imagens das sepulturas abertas em ritmo apressado, e também nas homenagens frequentes, como os memoriais que foram surgindo ao longo da pandemia. Conforme observado pela Psicóloga, que também possui formação em geografia, o memorial é um território que demonstra uma relação de poder: é o local para onde levamos quem deve saber quão importante e amada é aquela pessoa que morreu. Ela esclarece que “é como se a pessoa falecida passasse, de certa forma, a estar naquele espaço projetado, pois esse lugar existe, independentemente de crença religiosa, e pode ser visto e marcado para a família e para as(os) outras(os). E assim surge a representação psíquica da morte, concebida de forma individual ou coletiva”.

Quando coletivo, o luto gera um sentimento de consternação generalizada, ainda que alguém não o tenha vivenciado de maneira mais pessoal e íntima nas mesmas circunstâncias; dessa forma, o redimensionamento da vida de pessoas enlutadas e, consequentemente, das que lhes são próximas, ocorre em torno das memórias remanescentes. O projeto Inumeráveis surgiu como uma tentativa de demonstrar que as vítimas da pandemia no Brasil não são numerais dispostos em gráficos ou tabelas. O memorial vai além de números e até mesmo dos nomes das vítimas da Covid-19 apresentando-as como eram conhecidas em seu círculo de convivência pessoal, descrevendo sorrisos e abraços acolhedores, colos que afagaram amores, filhas(os) e netas(os), referências de dedicação, lealdade e afeto, vozes que jamais se ouvirão na antiga roda de amigas(os). O Inumeráveis, porém, não é o único, e o fato de haver outros tantos memoriais elaborados durante a pandemia expõe o tamanho do luto que atravessa o país. Algumas categorias profissionais reuniram as memórias das(os) colegas perdidas(os) em função do coronavírus, expostas(os) aos riscos enquanto se dedicavam a outras vidas, como as(os) Assistentes Sociais cujos nomes constam no memorial projetado pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS). O objetivo é homenageá-las(os), reconhecer a importância do seu trabalho e prestar solidariedade a familiares e amigas(os).

Erguer um memorial não significa, entretanto, dispor de estruturas complexas, qualquer que seja o seu formato. Individuais e únicos, muitos memoriais são criados sem a percepção objetiva do seu intento, especialmente porque eles podem surgir espontaneamente num momento de fragilidade, provocado pela vontade genuína de manter quem se ama por perto. Pequenas caixas que guardam um bilhete escrito com caligrafia inconfundível, fotos ou livros de quem se foi são, também, um tipo de memorial; assim como aquele cantinho reservado em casa, na sala, no quarto ou no jardim, dedicado à memória de uma pessoa querida. O mesmo vale para os relicários que, mesmo tão minúsculos em sua forma, guardam o universo inteiro de vidas ausentes e findas: um convite para que permaneçam, ainda que simbolicamente.

Dimensões, sentimentos e implicações coletivas do luto

Além da resistência para romper com o que antes era físico, o luto pode trazer culpa, impulsionada por questionamentos como “e se eu tivesse ficado mais perto de quem eu amava? O que eu fiz por essa pessoa foi suficiente? Há algo que eu poderia ter feito ou dito? Quanto tempo perdi me dedicando a outros afazeres que me afastavam da sua presença?”. Ana esclarece que essas dúvidas são comuns durante o período do luto, mas observa que a pandemia fez despontar a culpa pela própria sobrevivência. “É um sentimento não colaborativo: não dá para explicar porque alguém sobreviveu, enquanto a(o) outra(o) não. Não existe resposta satisfatória, apesar dos fatores sociais e políticos percebidos, que são outros componentes contextuais da pandemia”, afirma a profissional. Para lidar com o sentimento de culpa, ela destaca a importância de conversar sobre a perda com a família, com amigas(os), na psicoterapia ou em grupos de apoio terapêuticos.

A Psicologia considera, ainda, outros sentimentos do luto em vários momentos: choque, desejo, desespero e reorganização, quando ocorre a aceitação da perda definitiva e percepção de que uma nova vida precisa ser iniciada. Sobre essas fases, Ana explica que não existe uma ordem específica para que ocorram, já que o luto é um processo heterogêneo e plástico, observando que se trata de um ciclo que nunca estará concluído ou fechado: o que acontece é a transformação gradual de um sofrimento extremo em outras sensações como a saudade, por exemplo. Assim, cada qual dá sentido ao seu próprio luto de maneira muito pessoal, fazendo surgirem memoriais tão diferentes em suas formas, tamanhos e subjetivações.

Ana também comenta como o luto da pandemia tem reverberado no trabalho de Psicólogas(os) e relata a sua própria experiência. Trabalhando com crianças que não conseguiam falar sobre o luto que atravessavam, a Psicóloga encontrou na escrita sublimação para o sofrimento compartilhado com ela. Uma das crianças disse ter encontrado em Ana “o lugar onde poderia chover”, então surgiu a Nuvenzinha, protagonista do livro escrito pela profissional: a personagem descobriu que a dor era parte importante da vida, desafiou o medo da solidão e conheceu o amor quando veio ao chão em forma de chuva. A profissional conta que, nesse período de consternação extrema, tem visto colegas extenuadas(os) atuando em seus limites, enquanto outras(os) já estão completamente exauridas(os). “Psicólogas(os) têm conhecimento teórico e científico sobre os aspectos que envolvem a vida e as emoções, mas, uma vez no centro delas, o controle cognitivo não dura muito tempo: em um certo momento, inevitavelmente, vemo-nos na condição de sujeitos humanos e sintomáticos que também somos”, pondera a Psicóloga, “afinal, quem cuida também precisa ser cuidada(o)”.

O luto, portanto, de um lado, interdita relações de afeto e no outro, coletivamente, altera cenários, tornando-os coercitivos, como Ana explica. “A sensação de segurança se perde porque o ambiente externo é intangível e foge do nosso controle. Socialmente, acredito que uma das grandes consequências do luto coletivo é o medo constante de, nesse cenário, sermos atingidas(os) pela morte. Vivenciamos a morte de quem morreu e também a daquelas(es) que estão a morrer”, conclui a Psicóloga. Durante toda a pandemia, o ser humano foi e tem sido levado a descobrir como contornar o sofrimento e dar um significado à sua dor, lidando com muitas das reminiscências de uma crise sanitária que deixa marcas emocionais pungentes. Ainda assim, é importante que as memórias de vida e suas histórias sejam guardadas em seu melhor lugar a fim de que sejam (re)visitadas de tempos em tempos, no resgate de amores que são intocáveis, mas, ao mesmo tempo, inequívocos e evidentes.

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