Texto de Ellen Nemitz e Rebeca Amaral originalmente publicado na Revista Contato
A Psicologia chega aos 60 anos de regulamentação no país consolidando sua posição ética em atendimento às demandas da população brasileira.
Para contribuir com o exercício íntegro da profissão, os Conselhos de Psicologia têm a função de regulamentar, fiscalizar e orientar as práticas na área. Neste sentido, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná – instituição criada em 1979 – realizou no último ano, por meio de sua Comissão de Orientação e Fiscalização (COF), mais de 2300 orientações a profissionais do Estado. São Psicólogas(os/ es) que, diante de uma dúvida em seu dia a dia laboral, recorreram ao órgão regulador para tornar sua atuação mais assertiva, técnica e ética, alinhada aos principais documentos e legislações vigentes.
Também em 2021, a COF realizou 264 fiscalizações e a Comissão de Ética julgou diversos processos – importantes para que eventuais faltas éticas sejam identificadas e as práticas inadequadas, que podem prejudicar pacientes e clientes, sejam interrompidas.
Nada disso, porém, seria possível sem a regulamentação da Psicologia como profissão, consolidada pela Lei nº 4.119 de 27 de agosto de 1962. Apesar da abrangência nacional da lei, a Psicologia tal como conhecemos hoje foi tecida, inicialmente, de acordo com o exercício da profissão em cada Estado. Celebrar os 60 anos de regulamentação da Psicologia no Brasil é rememorar os caminhos que passam pela história recente do país e reconhecer, de imediato, que essa trajetória teve seu início marcado, dentre tantos fatores, pelo período que conturbou e suprimiu a democracia por aqui: o período ditatorial que se iniciou em 1964 e se estendeu por mais de 20 anos até fins da década de 1980.
O texto da lei, relativamente sucinto, abriu caminho para outras balizas e marcos que hoje complementam e demarcam a atuação profissional em resposta às conjunturas políticas, econômicas, sociais e culturais do país em cada tempo. A profissão, naquela época, tinha caráter mais elitista e estava, como outras, no alvo da Reforma Universitária de 1968. Embora ampliasse a oferta de ensino superior e desenvolvesse políticas educacionais voltadas ao mercado de trabalho, a medida sufocava as críticas à ditatura militar, limando a autonomia administrativa e de pesquisa das universidades, em nítido detrimento social e coletivo.
De Nise da Silveira à Carta de Bauru
Foi no período ditatorial, que acumulou e intensificou problemas já existentes em diversos âmbitos – incluindo a saúde –, que um dos movimentos mais marcantes da Psicologia foi embrionado. No auge das graves violações de direitos humanos perpetradas contra pacientes em hospitais psiquiátricos ou manicômios, trabalhadoras(es) da saúde mental iniciaram uma importante movimentação política pelo fim dessas instituições.
A inspiração da Luta Antimanicomial, que tem como um dos principais marcos a divulgação da Carta de Bauru, de 1987, vem certamente de tempos mais remotos, a partir do inexorável legado da Psiquiatra Nise da Silveira. A presença de Psicólogas(os/es) no movimento que culminou com a Lei nº 10.216/2001 foi, contudo, marcante – assim como na luta travada hoje contra os sistemáticos desmontes legais da RAPS, aparato que sustenta o cuidado em liberdade e no território de pacientes com sofrimento mental ou uso abusivo de álcool e outras drogas.
Os ecos da Carta de Bauru ainda se fazem presentes no Brasil de 2022. O seu mote por uma sociedade sem manicômios e contra a mercantilização do sofrimento mental é um pilar permanente da Psicologia, que não deve ceder aos mecanismos de opressão, especialmente aqueles gerenciados, financiados ou até mesmo omitidos pelo Estado.
A revolução da saúde universal e gratuita
Cerca de três anos após o manifesto, em convergência com a retomada democrática, o caminho da Psicologia foi perpassado pela implantação do Sistema Único de Saúde (SUS). Previsto na Constituição de 1988, o sistema teve sua abrangência ampliada às populações vulnerabilizadas, até então excluídas dos serviços pelo fato de não possuírem nenhum tipo de vínculo trabalhista ou previdenciário. A compreensão de que a precarização das condições de vida tem impactos emocionais decorrentes de fatores subjetivos múltiplos aproximou a Psicologia dos serviços de saúde pública. A formação acadêmica não mudou da noite para o dia, mas vêm cada vez mais se adequando aos novos campos de atuação e incluindo tais estudos em seus currículos.
A universalização do acesso aos serviços de saúde pública também não aconteceu de uma só vez. Foi apenas ao longo dos anos e décadas seguintes que decretos e portarias foram implementando serviços importantes, como os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), Unidades Básicas de Saúde (UBS), Consultórios na Rua e os próprios Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Na esteira da implementação de uma robusta estrutura de saúde, o SUS deu à Psicologia mais espaço de atuação. A Psicologia deixava, aos poucos, de ser um privilégio de quem podia pagar por sessões particulares e passava a estar presente também em equipamentos acessíveis a qualquer cidadã e cidadão.
O vírus que abalou o mundo – e a Psicologia
Em 1918, quando veio a pandemia da Gripe Espanhola – que, aliás, ganhou esse nome porque aquele país europeu foi o único transparente na divulgação de casos e mortes – o mundo reagiu de forma muito semelhante ao que faria mais de 100 anos depois. Usamos máscaras, nos isolamos, tratamos os doentes e procuramos ansiosamente pelo fim do mal que dizimava vidas. Naquela época, porém, não tínhamos dois fatores que, quando a Covid-19 despontou em 2020, foram decisivos para um cenário completamente diferente: a internet, que permitiu contatos, trabalhos e até comemorações online, e a Psicologia.
A pandemia deste século foi um período duro para todo o mundo, mas é certo que as desigualdades do cenário brasileiro tornaram a convivência com o coronavírus extremamente adversa. Nesse momento, contar com uma Psicologia atuante nos espaços conquistados há décadas, quando a Covid-19 e todos os seus efeitos sequer eram imaginados, foi fundamental. “O cenário da pandemia trouxe grandes mudanças na forma de relacionamento das pessoas, bem como nos processos de saúde-doença. A atuação da(o/e) profissional da Psicologia diante desse novo contexto contribuiu muito na avaliação e redução dos agravos e riscos à saúde mental, muito presentes nesse período pandêmico,” conta a Psicóloga Ana Cláudia Petryszyn Assis (CRP-08/18787), que atua no Consultório na Rua de Londrina.
Para todas as pessoas
As adversidades recentes colocaram a Psicologia de frente com outro marco para a categoria: a Lei nº 8.742/1993, que deu cumprimento a direitos previstos pela Constituição por meio da Assistência Social. Com a organização da proteção social, ofertada nas modalidades básica e especial, a Psicologia atua pela redução de danos e na prevenção da incidência de riscos, dentre outras garantias.
Profissionais que atuam nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) relatam que, em períodos como o que temos atravessado, muitas pessoas que nunca utilizaram os serviços desses centros passaram a recorrer a eles. “Um aspecto importante foi a participação no desenvolvimento de metodologias diferenciadas, tão importantes num momento em que as equipes, assim como a população em geral, se encontravam ‘perdidas’ e angustiadas quanto a uma doença desconhecida. A acolhida desses sentimentos pela Psicologia foi fundamental”, complementa Sara Gladys Toninato (CRP-08/07092), que também atua no Consultório na Rua do mesmo município.
Onde a pluralidade tem vez
O processo de regulamentação da profissão e adequação do seu exercício às demandas sociais mostra-se urgente para a maior parte da população do Brasil, atingida cada vez mais pelas políticas em curso, as quais seguem na contramão de tratados internacionais. Não obstante o nosso país seja signatário de convenções e pactos que versam sobre direitos humanos, o seu descumprimento afeta pessoas idosas, mulheres, crianças e adolescentes, populações negras, LGBTQIA+ e outros grupos vulnerabilizados.
Dessa forma, o Código de Ética Profissional do Psicólogo foi revisto em 2005, realocando na introdução, de maneira explícita, o princípio fundamental de que o trabalho da(o/e) Psicóloga(o/e) será embasado na Declaração Universal dos Direitos Humanos. No bojo do combate a opressões, a Psicologia estabeleceu normas para a atuação profissional concernente a expressões de gênero e sexualidade, a fim de abrandar inquietações e combater o preconceito contra práticas sexuais diversas do padrão cis-heteronormativo. A Resolução CFP nº 001/1999 consolidou mais um compromisso da profissão com a ciência, alinhada aos direitos humanos, e formalizou a compreensão de que a sexualidade é subjetiva e, portanto, não pode e nem deve ser patologizada.
Além de orientar a atuação profissional, a Resolução resguarda Psicólogas(os/es) em seu exercício, quando recebem demandas em contextos voltados à sexualidade. Destaque-se que o documento, pela sua extensão social, tem caráter e efeitos protetivos, já que impede práticas terapêuticas que aniquilam subjetividades e direitos sob o pretexto da “reversão sexual”.
Complementando a regulamentação inicial, o Conselho Federal de Psicologia também publicou a Resolução nº 001/2018, que estabelece normas de atuação em relação a pessoas transexuais e travestis e, mais recentemente, a 008/2022, com orientações concernentes à bissexualidade e não monossexualidade. Todos esses documentos, além de aprimorarem o fazer da Psicologia, sintetizam uma importante vitória para pessoas LGBTQIA+, um dos grupos que mais sofre violência – física ou psicológica – no Brasil.
Já a Resolução CFP nº 018/2002 dedicou-se à orientação de profissionais comprometidas(os/es) com a eliminação do racismo e dos sofrimentos decorrentes dele – tema hoje de fundamental importância na construção de uma Psicologia cada vez mais antirracista. O teor da normativa é contundente e imperativo – como de fato deve ser nesses casos – e determina que Psicólogas(os/es) não serão coniventes e nem se omitirão perante o crime de racismo.
Construindo hoje os futuros que queremos
Ao longo dos anos, a Psicologia evoluiu, deixando de ser uma profissão essencialmente elitista e voltada a poucas áreas de atuação para abarcar a complexidade das relações humanas em diferentes contextos, tais como os sistemas de justiça, os hospitais, as escolas, o esporte, as organizações, entre outras. O viés social também aflorou, como se pôde perceber nesta modesta rememoração, sendo que a Psicologia hoje é protagonista na luta por direitos humanos e pioneira em avanços importantes no combate ao racismo, à violência contra vulneráveis, à exploração de pessoas e às discriminações de toda ordem.
Como em qualquer história, a nossa não é diferente: temos altos e baixos. Temos momentos em que avançamos e celebramos, e outros em que lutamos apenas para não retroceder. Neste caminho, contamos com instituições como o Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop) – que há mais de 15 anos vem produzindo e atualizando diversas Referências Técnicas para a atuação de Psicólogas(os/es) em numerosas áreas –, e outras parcerias que, de tão diversas, não seria possível nomear uma a uma.
Também contamos com pessoas. Aquelas que compuseram os 14 Plenários que tivemos até hoje no CRP-PR, aquelas que dispuseram de um pouco – ou às vezes um pouco mais que “um pouco” – do seu tempo para as Comissões Especiais e Temáticas, aquelas que trabalharam e trabalham para fazer da Psicologia o que ela é hoje. E com você. Não importa se você atua na Psicologia há apenas alguns meses ou há vários anos, ou mesmo se ainda está na graduação. Todo mundo faz um pouquinho parte destes 60 anos. E fará parte dos próximos 20, 40 ou 60. Qual história vamos contar, depende apenas dos sonhos que ousarmos sonhar.