Texto escrito por Fabiane Kravutschke Bogdanovicz (CRP 08/19219), psicólogue mestre em Desenvolvimento Comunitário, conselheire do CRP-PR
A descriminalização do aborto voltou à pauta no Brasil devido ao julgamento, iniciado neste mês, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), decorrente de ação apresentada em 2017 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 442).
A legislação vigente no país permite o aborto nos casos de gestação em razão de violência sexual, quando há risco para a vida da pessoa gestante ou em caso de anomalia fetal grave, que impossibilite a continuação da vida extrauterina (autorizado pelo STF em 2012).
Por toda a história humana, a regulação da fecundidade sempre foi praticada, independentemente das sanções, legislações e biopoder, principalmente com o uso de ervas medicinais. A criminalização do aborto surgiu a fim de defender a prole como bens patrimoniais, configurando, assim, crime contra os interesses do pai. Quanto à Igreja Católica, foi apenas em 1580 que ela passou a condenar todo e qualquer aborto provocado, pois, anteriormente, a prática era aceita antes do 80º dia da gestação. No século XVIII, houve uma mudança geral no posicionamento sobre o aborto, passando a privilegiar o feto, futuro trabalhador e soldado, que, antes disso, era considerado um apêndice do corpo da pessoa gestante. Durante a Segunda Guerra Mundial e ascensão do nazifascismo, o aborto foi considerado um crime contra a nação (Bogdanovicz, 2018).
No Brasil, segundo a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), de 2021, uma em cada sete mulheres cisgêneras, de até 40 anos, já realizou um aborto, sendo a maioria mulheres negras, com baixa escolaridade e jovens adultas, em situação de vulnerabilidade socioeconômica. A perspectiva de classe é fundamental, pois pessoas em melhores condições econômicas conseguem acessar serviços e medicamentos dentro e fora do país, fazendo com que a criminalização do aborto só atinja verdadeiramente as pessoas mais empobrecidas, que acabam por recorrer a métodos inseguros e precários (Diniz, Medeiros e Madeiro, 2023). É importante ressaltar que, ainda que a maioria das pesquisas sobre aborto envolvam mulheres cis, pessoas com outras identidades de gênero (como homens trans, transmasculinos e não bináries) e pessoas intersexo também podem engravidar.
Em pesquisa de 2009, o Ministério da Saúde analisou resultados de 20 anos de estudos sobre o aborto no país e concluiu que mais da metade das pessoas que abortaram fazia uso de métodos contraceptivos (indicando possível utilização irregular ou equivocada).
A curetagem foi a cirurgia mais realizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) entre 1995 e 2007, estimando-se que a maioria dos casos tenha sido decorrente de abortos provocados (Toledo, 2010). Um levantamento feito em banco de dados do SUS indicou que, entre 2013 e 2016, foram atendidas cerca de cem vezes mais mulheres cis para curetagem pós-aborto do que para outros procedimentos. O custo dessas curetagens e de mais dezenas de milhares de esvaziamentos do útero por Aspiração Manual Intrauterina (AMIU) nesse período foi de R$ 40,4 milhões (Bogdanovicz, 2018).
Em 2021, foram registrados 66.020 Boletins de Ocorrência de estupro (FBSP, 2022). Sabe-se que há subnotificação de tais casos, portanto os números reais são muito maiores. No mesmo ano, foram realizados 1.823 abortamentos legais pelo SUS e cerca de 151 mil curetagens (incluindo abortos espontâneos e induzidos) (Farias; Figueiredo, 2022; Suarez, 2022). A comparação entre esses números demonstra a dificuldade no acesso ao abortamento legal no país. Apenas 20% das vítimas de violência sexual procuram atendimento médico e, dessas, somente 10% a 30% seguem com o procedimento (Madeiro; Diniz, 2016).
A criminalização do aborto não vem sendo efetiva em reduzir seus números, mas tem provocado grande mortalidade e morbidade de pessoas gestantes. O tabu impede o diálogo e o acesso às políticas públicas, inclusive à prevenção e a métodos contraceptivos, gerando consequentes problemas de saúde mental. Importante frisar que os efeitos negativos à saúde mental são decorrentes do estigma e da criminalização da prática (Pedroso, 2012; Romio et al., 2015; Gomes, 2021), e que os serviços de aborto legal contam com equipe multidisciplinar com profissional da Psicologia, realizando o acompanhamento nos diversos momentos do processo.
Em audiência pública de 2018 sobre a ADPF 442, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) posicionou-se favoravelmente à descriminalização do aborto, apontando para a autonomia da pessoa que gesta diante dessa decisão. O CRP-PR, embasado nas deliberações da categoria nos últimos Congressos Regionais da Psicologia (COREPs) e Congressos Nacionais da Psicologia (CNPs), apoia a descriminalização do aborto
A atuação da Psicologia deve ser fundamentada nos preceitos científicos, técnicos e éticos no acompanhamento dos casos de interrupção da gestação, considerando, ainda, a resolução CFP 07/23, que dispõe sobre a laicidade no exercício profissional, não impondo suas crenças e convicções sobre as pessoas atendidas (Bogdanovicz, 2020). Aponta-se, ainda, que a Constituição Federal brasileira garante o direito à objeção de consciência a profissionais que sejam contra o aborto. Caso suas crenças e convicções pessoais interfiram no trabalho, o Código de Ética Profissional da Psicologia indica que seja realizado o encaminhamento da pessoa atendida.
Por fim, salientamos a publicação da Nota Técnica 05/2023, pelo CRP-PR. O documento orienta profissionais da Psicologia acerca do atendimento a pessoas em situação de interrupção voluntária da gravidez. Clique no botão a seguir para acessar o conteúdo na íntegra.
Referências
BOGDANOVICZ, Fabiane Kravutschke. A ascensão do conservadorismo e o direito ao aborto no Brasil contemporâneo. Trabalho de Conclusão de Curso da Especialização em Políticas Públicas para la igualdad en América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2018. Disponível em <www.academia.edu/37248299/Bogdanovicz_FK_A_ascens%C3%A3o_do_conservadorismo_e_o_direito_ao_aborto_no_Brasil_contempor%C3%A2neo>. Acesso em 20 set. 2023.
BOGDANOVICZ, Fabiane Kravutschke. Atendimento a mulheres em situação de interrupção voluntária da gravidez. Revista Contato, ano 22, n. 128, p. 28-30, mar.-abr., 2020. Disponível em <crppr.org.br/revista-contato/revista-contato-128/>. Acesso em 20 set. 2023.
DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. National Abortion Survey – Brazil, 2021. Ciência & Saúde Coletiva, v. 28, n. 6, p. 1601-1606, jun., 2023. Disponível em <doi.org/10.1590/1413-81232023286.01892023>. Acesso em 20 set. 2023.
FARIAS, Victor; FIGUEIREDO, Patrícia. 4 em cada 10 abortos legais no Brasil são feitos fora da cidade onde a mulher mora; pacientes percorreram mais de 1 mil km. G1. 09 de junho de 2022. Disponível em <g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/06/09/4-em-cada-10-abortos-legais-no-brasil-sao-feitos-fora-da-cidade-onde-a-mulher-mora-pacientes-percorreram-mais-de-1-mil-km.ghtml>. Acesso em 20 set. 2023.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. São Paulo: FBSP, 2022. Disponível em <forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/11-anuario-2022-uma-decada-e-mais-de-meio-milhao-de-vitimas-de-violencia-sexual.pdf>. Acesso em 20 set. 2023.
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TOLEDO, Karina. Curetagem após aborto é a cirurgia mais realizada no SUS, revela estudo. Estadão. 14 de julho de 2010. Disponível em <www.estadao.com.br/noticias/geral,curetagem-apos-aborto-e-a-cirurgia-mais-realizada-no-sus-revela-estudo-imp-,580854>. Acesso em 20 set. 2023.