Isilda Bato Ana e Claudio Ngongo Pestana nasceram em Angola, na África, e deixaram seu país por razões diferentes. Em comum, ambos imaginaram um Brasil acolhedor e alegre, mas encontraram resistência por parte de brasileiras e brasileiros, que raramente reconheciam neles alguém com quem se pudesse aprender algo. “Percebi que ser imigrante é desafiante, mas ser imigrante negro e africano era mais desafiante ainda. Existe um lugar para o imigrante negro africano, que é um lugar de inferioridade, desprezo e negação das vivências e experiência que traz consigo”, relata Isilda.
O choque cultural foi muito grande, especialmente porque chegaram esperando encontrar os estereótipos retratados por produções televisivas – as novelas brasileiras são exibidas em Angola – mas a realidade foi bem distinta: “O pessoal falava que Brasil e Angola eram iguais, eram países irmãos porque fala português e tal. Eu já convivia com alguns brasileiros lá [na África, em um grupo missionário religioso], então acreditei muito nisso. Mas, quando eu cheguei aqui, foi um choque muito grande. Tive um baque que mexeu com as minhas emoções”, conta Claudio, listando algumas diferenças culturais que o impactaram, como a forma de se vestir, os alimentos e até mesmo algumas palavras em português. “Eu vim de um outro contexto, de uma outra forma de vida, de relacionamento. E eu nunca tinha saído de Angola, nem de Luanda”, lembra.
Mesmo frequentando o ambiente acadêmico – Claudio é formado em Teologia e hoje estuda Psicologia, mesma graduação que Isilda cursa – houve muita resistência por parte de colegas, o que dificultou uma rica troca de vivências e experiências que encontros multiculturais proporcionam. Nos relatos, é comum a percepção de que, no Brasil, não se acredita que africanas(os) podem ensinar algo.
“Num primeiro momento na faculdade eu me deparei com pessoas que se surpreendiam quando eu mostrava ter conhecimento de um assunto importante, e acabavam sempre perguntando ‘mas lá no seu país também estudam sobre isso?’ Essas falas acabam revelando que o que se espera de um africano é nada mais e nada menos que um sorriso lindo, um corpo que dança, uma voz bonita e relatos do o quanto sofreu com fome e guerra. Na ciência não se percebe um espaço onde se usa texto de autores africanos como referencial teórico, e quando aparece é trazido por professores que são atravessados de alguma forma com a luta pela valorização da cultura afro.”
Isilda Bato Ana
Claudio está no Brasil há 7 anos e Isilda, há seis. Neste tempo, muita coisa mudou: construíram família, encontraram amigos e percorreram caminhos acadêmicos e profissionais. Hoje, sentem-se mais acolhidos e percebem mais facilidade em fazer esta troca mútua de conhecimentos.
“Hoje eu consegui me aproximar de outros migrantes e a faculdade de Psicologia me deu a oportunidade de conhecer pessoas abertas e voltadas em querer conhecer mais o outro. Fiz e continuo fazendo mais relacionamentos, o que tem trazido um senso de pertencer. Encontrar espaço de acolhimento que viabilizam minha aproximação com outros imigrantes e brasileiros com os quais tenho alguma identificação tem feito diferença positiva na minha estadia aqui no Brasil”, conclui Isilda.
A riqueza dos intercâmbios culturais
Cada cultura – e cada pessoa – tem características únicas e é a partir do intercâmbio de vivências, crenças e conhecimentos que podemos crescer enquanto país, profissionais e pessoas. Neste sentido, o preconceito e a xenofobia, que excluem aqueles que vêm de fora, estancam um encontro que pode ser proveitoso para todas e todos.
“Quando um rio é fechado, infelizmente perde sua fluidez, não entra água e nem sai. Isso faz com que o que poderia ser uma fonte geradora de vida se torne uma ameaça à vida. Assim é com todo conhecimento que adquirimos sobre alguma coisa, pessoa, cultura, povos etc. Se não nos abrimos para constante aprendizado e renovação de entendimento sobre o outro, nós acabamos matando a vivência, a experiência e a existência do outro. Está na hora de se desfazer dos rótulos criados sobre a África e os africanos, é necessário se abrir para conhecer o que é África e quem são seus filhos.”
Isilda Bato Ana
Diversidade cultural e presença africana no Paraná
*O texto a seguir foi elaborado por Gabriela Teixeira e Gustavo Pedroso, colaboradores do Núcleo de Psicologia e Migrações (Nupsim) do CRP-PR
“Se wo were fi na wosan kofa a yenki”, esse provérbio tradicional entre os povos de língua akan da África Ocidental, pode ser traduzido por “não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”. Na tradição africana, há um conceito que remete a este provérbio, ele é representado por um pássaro mítico que volta a cabeça à cauda: o sankofa. O símbolo, parte de um conjunto de ideogramas chamados adinkra, é traduzido por: “voltar e apanhar de novo o que ficou para trás” (1), ou seja: o retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro. Diz da articulação entre presente, passado e futuro, do movimento de revisitar o que tenha sido perdido, renunciado ou privado no passado, para que possa emergir e ser reconhecido. Ética expressa no esforço do povo negro em resgatar sua ancestralidade e apontar as consequências e marcas da diáspora — a dispersão forçada dos povos africanos pelo mundo.
Trazemos aqui a importância do estudo da história e culturas africanas e suas repercussões para a América Latina, desvelando, desde a experiência diaspórica, as relações que vêm se constituindo entre Brasil e África. Profundos vínculos estabeleceram- se desde o século XVI, especialmente com Cabo Verde, Guiné-Bissau, Senegal, Gana, Togo, Benim, Nigéria, Angola e Moçambique (2); o povo brasileiro guarda fortes laços com esses países e suas culturas. Propomos aqui um convite, inspirado em Sankofa, de promover o retorno simbólico às memórias da África que habitam nosso país e seu povo. A buscarmos por memórias perdidas, a reconstruir e reconhecer laços ancestrais invisibilizados, a resgatar locais de memória da presença africana, das influências das ricas culturas que marcaram e constituíram este país, em especial, um convite ao reconhecimento da presença histórica dos povos africanos e seus descendentes no estado do Paraná.
No Paraná, a narrativa historiográfica tradicional de constituição do Estado está pautada na valorização da imigração europeia, da exaltação dessa memória. Esse elemento tornou-se norteador da identidade da região, apesar de haverem marcas significativas das influências africanas em todo o Estado. A negação da memória negra e africana, parte do projeto cultural vigente no final do século XIX e tendo como base uma política de branqueamento, resultou na construção de uma identidade regional sustentada no esquecimento da presença da população africana e de seus descendentes.
A identidade de um grupo está intimamente relacionada com a memória coletiva de sua história, expressa em locais públicos e de reconhecimento de cenas históricas. No caso do Paraná, podemos observar que a gestão da memória de sua constituição se dá a partir dos fluxos migratórios europeus do século XIX, minimizando a presença negra africana na história oficial do Estado. Há, nos últimos anos, um movimento de revisitar essas narrativas históricas, questionando a não existência da população negra nessa história. Trata-se do movimento de estabelecer uma política da lembrança (3), resgatando a memória negra do Estado, questionando uma história construída sobre uma narrativa única e hegemonicamente branca.
Utilizando-nos da memória como fio condutor, que traça o caminho dessa negação identitária no estado, a partir de uma política de invisibilidade na história e nas tradições culturais do Paraná, compreendemos que esse apagamento irá marcar o universo de relações e significações desses sujeitos com o mundo. Evidencia-se, portanto, uma temática que se torna tão cara à Psicologia: a compreensão desse processo e o caminhar frente a uma política da lembrança. Lembrar, reconhecer e resgatar a memória do vivido, diz de estabelecer laços com o passado, valorizando as influências africanas constituintes ao desenvolvimento do Paraná, presença que se dá no Estado desde o século XVI e, ainda hoje, contribui com seus costumes e tradições no território paranaense.
Estabelecer uma política da lembrança, isto é, trazer para o conhecimento público memórias confinadas no silêncio da história, é evocar os pontos de resistência frente ao silenciamento da gestão oficial da memória. No Paraná, a memória negra não desapareceu, mas esteve mantida em espaços de memórias e tradições culturais não oficiais. Podemos considerar como locais de política de memória — de resistência da população afro-brasileira no estado —, comunidades quilombolas, locais que protegem o direito à memória (4). Tratam- se de territórios fundamentais para o reconhecimento da existência, das memórias, saberes e a historicidade da população descendente de povos africanos escravizados, estabelecendo, assim, a proteção do patrimônio cultural negro paranaense.
Toda a região Sul é marcada por um intenso apagamento da presença negra e africana em seu território. Trata-se de um processo histórico de construção de cidades a partir da homogeneização eurocentrada da história, expressa nas mais diversas construções de monumentos homenageando a presença da imigração europeia. Em Curitiba, parques e memoriais na história urbana da cidade apontam para a negação, o silenciamento e a obliteração da participação de outros grupos étnico-raciais na constituição dessa história. Abordar uma narrativa alternativa, a fim de evidenciarmos a presença africana e repensar a identidade cultural hegemônica — que ressalta de maneira unívoca o passado de migrações europeias da cidade, do Estado e da região — diz de um importante movimento de reconhecimento e valorização dos pontos de memória negra no espaço urbano. Em Curitiba, passear pelo centro histórico é passear pela herança negra da cidade, o espaço urbano foi construído pela força, e exploração, de trabalho negra e africana.
De acordo com o projeto AfroCuritiba (5), há diversos pontos que fazem menção ao passado e presente negro da capital do Estado, destacamos aqui alguns deles: a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e de São Benedito, fundada por duas irmandades negras em 1737, um espaço de devoção religiosa e de sociabilidade; o Pelourinho na Praça Borges de Macedo, símbolo da escravidão; a Praça Zacarias, importante ponto para a história política da cidade, um espaço de encontro entre pessoas negras, escravos libertos e trabalhadores migrantes de diversas nacionalidades; o Instituto de Educação do Paraná, antigo Palácio da Instrução, escola frequentada por escravizados libertos e onde estudou a primeira engenheira civil negra do Brasil, Enedina Alves Marques; a Praça Zumbi dos Palmares, em homenagem a figura de resistência à escravidão; o Alto São Francisco, região na qual os trabalhadores tiveram forte presença por meio das associações trabalhistas e agremiações negras, entre elas: a Sociedade Protetora dos Operários e a Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio, associação organizada em 1888, espaços fundamentais de construção de cidadania, associativismo e socialização.
Esses espaços evidenciam que a presença africana, no período escravocrata e de pós-abolição, se entrelaça com a história de Curitiba no seu cotidiano atual. São espaços alienados de suas memórias, mas que apontam indícios da história da presença africana na cidade. Relacionar o passado com o presente, a história de migração do povo africano para o Brasil, não se resume à séculos passados, estes pontos da cidade nos convidam, também, a pensar sobre a presença africana no contemporâneo da cidade de Curitiba. Estes lugares importantes de manifestações cívicas ocorridas na cidade, espaços de socialização e união por meio de eventos, associações ou sociedades – de trabalhadores, de migrantes, de pessoas negras – hoje são espaços de encontro de migrantes e refugiados, lugares novamente ressignificados, como o caso da Plas Ayiti (6) (Praça Haiti, em creole), ou Praça Tiradentes.
Destacamos, portanto, a presença contemporânea de migrantes internacionais originários de países do continente africano — como a República Democrática do Congo, a Guiné-Bissau, o Benin e a Angola — em território brasileiro e paranaense. Tratam-se de pessoas que objetivam, a partir do deslocamento, envolvimento em novas atividades laborais e/ou educacionais. No caso de migrantes forçados, como solicitantes de refúgio e refugiados, buscam no Brasil asilo, protegendo-se dos efeitos disruptivos de sistemáticas violações aos direitos humanos, guerras, perseguições e desastres ambientais.
Segundo o Observatório das Migrações Internacionais (OBMIGRA) (7), foram concedidas pelo governo brasileiro, até o ano de 2019, mais de 24 mil carteiras de trabalho e previdência social para migrantes originários do continente africano. Não obstante, até o mesmo ano, senegaleses, angolanos e guineenses figuravam entre as principais nacionalidades nas mais de 21 mil solicitações de reconhecimento da condição de refúgio apresentadas ao governo brasileiro. A diáspora africana atravessa transversalmente a história do Brasil, adquirindo novas configurações a partir da reorganização política e econômica internacional.
Mantendo em perspectiva os contornos demográficos da sociedade brasileira e paranaense contemporânea, faz-se igualmente necessário analisar crítica e historicamente as causas e efeitos da entrada das populações diaspóricas em território brasileiro, a saber: os novos (e antigos) desafios e resistências que se colocam frente às suas demandas de proteção, reconhecimento e cuidado ao campo da Psicologia — e de outros saberes em diálogo —; e a potencialidade de sua presença e permanência na configuração e diversificação do patrimônio cultural e científico do Brasil. Como visto, este movimento não é possível alienado à considerações sobre as relações de poder, historicamente constituídas, em nossos contextos de atuação profissional e produção de saber.
O Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento, celebrado em 21 de maio e proclamado pela Organização das Nações Unidas (ONU), objetiva fomentar o diálogo intercultural e colocar em destaque a importância da compreensão e respeito ao outro na preservação da diversidade cultural, como patrimônio comunitário. Ademais, urge por fazer reconhecer a importância da produção cultural como possibilidade de subsistência para diferentes grupos humanos, prezando pela valorização, manutenção e sobrevivência de seus conjuntos de valores e referências sócio-históricas.
A Psicologia, como ciência e profissão, possui responsabilidade social para com a preservação da diversidade cultural. Objetivamos, portanto, ao trazer a memória esse dia, conciliar o desenvolvimento científico e tecnológico da Psicologia à observância de outros princípios fundamentais; como o combate à quaisquer tipos de opressão, violência, negligência, discriminação, exploração e crueldade; e a atuação comprometida crítica e políticamente com a realidade histórica e cultural das comunidades que construíram, e continuam a construir, o Brasil e o Paraná.
Ensejamos, portanto, a abertura de noções fundamentais de teorias psicológicas aos outros saberes que as habitam ou coabitam; fomentando, da mesma forma, possibilidades de diálogo e manutenção da multiplicidade intercultural de práticas e de construção de conhecimento. Reconhece-se, neste movimento, a necessidade de interrogar as ideias (ou ideais) de universalidade colocados como substrato dos instrumentos psicológicos — historicizando nossas práticas, e seus contextos sócio-culturais, de forma a construir um projeto de Psicologia comprometido com a manutenção e proteção da diversidade cultural.
Nesta semana, evocamos igualmente o Dia da África, data para recordar as lutas por independência no continente, dos movimentos de enfrentamento à colonização europeia e ao regime do Apartheid. O dia 25 de maio de 1963 marca a fundação da Organização de Unidade Africana (OUA) na Etiópia — substituída, em 2002, pela União Africana. Em 1972, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabelece a data como o Dia da África ou o Dia da Libertação da África.
O Brasil, sendo o país com maior número de africanos e descendentes fora do continente africano, constitui-se como um país da diáspora, enfrentando cotidianamente seus efeitos. Há marcas perpetuadas em todas as relações neste território de um processo abolicionista inacabado, trazendo graves consequências violentas para a sociedade brasileira. Como disse o geógrafo e escritor Milton Santos: “A escravidão marcou o território, marcou os espíritos e marca ainda hoje as relações sociais deste país”.
Por isso, neste dia, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR), por meio de sua Comissão de Direitos Humanos (CDH) e do Núcleo de Psicologia e Migração (NUPSIM), convida profissionais da Psicologia a realizarem uma reflexão acerca do compromisso ético e político da profissão e do saber com o reconhecimento e valorização da ancestralidade e das culturas africanas. Tomando tal compromisso como instrumento de luta contra o projeto colonial; da atribuição ética de atuar contra o racismo, xenofobia e os estereótipos; tomando responsabilidade diante do racismo estruturante da sociedade e nos processos de produção do conhecimento.
Saiba Mais
1 Nascimento, E. L. (2008). A matriz africana no mundo: coleção Sankofa – volume 1. São Paulo: Selo Negro Edições. Nascimento, E. L. & Gá, L. C. (2009). Adinkra, Sabedoria em símbolos africanos. Rio de Janeiro: Ipeafro/Pallas.
2 Braga, R. (Diretora). (2020). Sankofa – A África que Te Habita [documentário]. Rio de Janeiro: FBL Criação e Produção.
3 e 4 Felipe, D. (2018). A presença negra na história do Paraná (Brasil): a memória entre o esquecimento e a lembrança. Revista De História Da UEG, 7(1), 156-171.
5 AfroCuritiba é um percurso histórico realizado por um Projeto de Extensão da Universidade Federal do Paraná, com o objetivo de identificar e divulgar locais relacionados com a história da presença negra em Curitiba, no período de vigência da escravidão, no Pós-Abolição e na contemporaneidade.
6 Filme Plas Ayiti (Praça Haiti, em creole) como é conhecida a Praça Tiradentes.
7 Cavalcanti, L. et al. (2020). Imigração e Refúgio no Brasil. Relatório Anual 2020. Série Migrações. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e Segurança Pública/ Conselho Nacional de Imigração e Coordenação Geral de Imigração Laboral. Brasília: OBMigra.