No Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro), o Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR) propõe uma reflexão sobre a saúde dessa população no país. Apesar da implantação de políticas com foco no tema, percebe-se que quando o assunto é colocado em prática ainda há muitas barreiras para um atendimento de qualidade.
Um dos motivos da luta pela saúde da população negra é com relação às Doenças Falciformes. Considerada uma mutação genética originária da África, que se espalhou pelo mundo com o deslocamento forçado da população negra escravizada, ela acomete, em determinadas regiões, como no Rio de Janeiro, um caso entre 1.400 nascidos, segundo dados do Ministério da Saúde (2013).
De acordo com a Psicóloga que representa a Rede Mulheres Negras – PR no Conselho Estadual de Saúde, Michely Ribeiro da Silva, atualmente essa é a doença de origem étnica que mais mata pessoas no país. “Ela acomete em maioria pessoas negras, mas também atinge pessoas não negras, que também acabam não tendo atendimento. Esse racismo institucional faz com que as doenças de origem étnica da população afrodescendente não tenham atenção devida, e acabamos com altos índices de mortalidade”, relata.
A doença, caracterizada por alterações no formato das hemácias, que ficam em forma de foice ou meia lua, causa dificuldade no transporte do oxigênio e na circulação do sangue. As crises de dor estão entre os principais sintomas. “Muitos pacientes relatam que quando procuram atendimento médico são atendidas de qualquer maneira, não sendo colocadas com prioridade no atendimento como o que ocorre com algumas outras patologias. Além disso, durante o quadro de crise de dor, muitos profissionais de saúde negam a analgesia afirmando que esses pacientes são viciados em morfina e que não há nada a fazer”, conta Michely.
Entre os outros sintomas estão anemia, febre, inchaços, fadiga, pneumonia, úlceras nas pernas e priapismo (ereção prolongada). “Sintomas que sem o diagnóstico próprio são tratados inadequadamente”, revela o Psicólogo e Coordenador do Núcleo de Estudos Ameríndios e Africanos (NEAA) da UNICENTRO, Jefferson Olivatto da Silva.
Segundo ele, houve um avanço nas políticas públicas em decorrência da luta de associações, como as que congregam a Federação Nacional de Associações de Pessoas com Doenças Falciformes (FENAFAL). Um dos resultados é o diagnóstico da doença no teste do pezinho, desde meados de 1990, no Paraná. “Porém, as pessoas que nasceram antes desse período precisam do diagnóstico para conseguir o devido tratamento”, explica.
O Psicólogo acredita que há duas questões que precisam ser integradas na atenção às pessoas com Doenças Falciformes. “Primeiro é o diagnóstico, que precisa ser amplamente realizado, por meio de encaminhamentos clínicos, juntamente com o incentivo à pesquisa. Segundo, a formação e capacitação dos profissionais da saúde para a produção de vínculos mais significativos de apoio e cuidado”, comenta.
Política Nacional de Saúde Integral da População Negra
Em 2006, foi criada a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) que visa promover uma equidade na saúde, combatendo a discriminação étnico-racial nos serviços e atendimentos oferecidos no Sistema Único de Saúde (SUS). “Foi um reconhecimento, por parte do governo, do peso do racismo, dos sentidos e significados sociais atribuídos à cor da pele, origem étnica ou racial na determinação das condições de saúde e na qualidade do cuidado”, ilustra Michely.
Atualmente, o Ministério da Saúde executa o II Plano Operativo, no qual estabelecem metas para a implementação da política. “Mas o segundo Plano Operativo é lançado sem termos os resultados do cumprimento do I Plano Operativo. Ainda assim as organizações de movimento negro conquistam mais espaços para o debate juntamente às secretarias de saúde, para que ela reduza indicadores desfavoráveis de saúde para populações negras”, conta.
No Paraná, de acordo com a Psicóloga, o atrelamento da política de saúde da população negra com as demais políticas de saúde confere resultados positivos na redução de indicadores. Um exemplo é o índice de mortalidade materna no Estado, que teve redução de 40% após a implantação da Rede Mãe Paranaense com a PNSIPN. “Nesse índice, estavam mulheres pretas e indígenas. Após essa identificação, estabeleceu-se que as gestantes negras (somatório das pretas e pardas) ou indígenas que ingressassem à rede de atenção materno-infantil fossem colocadas na classificação de risco. E com essa compreensão, ações de busca às gestantes e maior atenção no cuidado ao pré-natal, houve a redução dos indicadores de morte materna para mulheres negras e indígenas”, comenta.
Apesar dos vários avanços na luta por equidade decorrente da mobilização social, Michely acredita que ainda há muito o que fazer. “Preparar as equipes de saúde para o reconhecimento do racismo enquanto um determinante social em saúde é uma das principais tarefas para a implementação da Política”. Ela reforça que “falta a compreensão de que para o SUS ser igualitário é preciso compreender as pessoas como diferentes, e que tudo isso contribui muito para o processo saúde-doença”.
Para acontecer efetivamente uma atenção integral, o coordenador do NEAA acredita que deve haver políticas públicas de maior proximidade com as populações negras. “As tradições, os valores e as dinâmicas cotidianas das populações negras devem ser consideradas como elementos importantes da atenção à sua saúde. Assim é que a saúde precisa ser vista, como produção social e coletiva e não simplesmente como ausência de doença”, complementa.
Formação, capacitação e vontade profissional são alguns dos itens citados para a promoção da saúde da população negra. “Pela falta de conhecimento no que tange aos efeitos psicossociais do racismo, os profissionais de saúde têm despendido atenção aos sintomas desse mal social de forma equivocada”, expõe Silva.
Nesse contexto, a Psicologia pode contribuir no reconhecimento e interpretação do sofrimento da população negra. “Mesmo havendo a necessidade de se desdobrar sobre temáticas distintas das ‘clássicas’, a Psicologia consegue contribuir no diálogo com outras ciências sobre a importância do vínculo, da afetividade, que possibilitam o bem estar nas relações humanas. Por isso observamos que com o diálogo com as comunidades tradicionais, a prática psicológica tem sido mais discutida e integrada à vida comunitária”, complementa Silva.
Michely acrescenta que a ideologia racista manifesta-se por meio das relações interpessoais presentes no dia a dia (trabalho, família, religião, espaços de lazer, escolas, entre outros). “Essas representações sociais permeiam o imaginário coletivo, cristalizando e perpetuando práticas discriminatórias”, descreve.
Por essa compreensão dos determinantes das desigualdades e enfrentamento das iniquidades raciais, a profissional acredita que há necessidade de uma leitura psicossocial. “Com base nisso, a categoria de Psicólogas e Psicólogos no Brasil não pode ficar alheia às políticas públicas de igualdade racial, constituindo-se como importante estratégia para a saúde coletiva”, finaliza.