O Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR) disponibiliza a partir de hoje (24) uma Nota Técnica de orientação profissional em casos de violência contra a mulher, indicando casos para a quebra do sigilo profissional, que não consta mais no link que concentra as notas técnicas na página do Conselho Federal de Psicologia (CFP).
Para que as(os) Psicólogas(os) tenham acesso ao importante documento, que já havia sido noticiado em janeiro deste ano em nosso site (veja aqui), o download do PDF está disponível clicando aqui.
A republicação da nota acontece um dia antes do Dia Internacional pelo Fim da Violência contra as Mulheres (25 de novembro), que marca também o início dos 16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres.
Leia a íntegra do texto abaixo.
Nota técnica de orientação profissional em casos de violência contra a mulher: casos para a quebra do sigilo profissional
Segundo a OMS (2013), 35% das mulheres no mundo já foram vítimas de violência física e/ou sexual. Em alguns países esse número pode chegar a 70%. Isto implica em dizer que três em cada cinco mulheres foram ou serão vítimas de violência. A violência contra as mulheres é “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como privado” (Convenção de Belém do Pará, 1994, artigo 1º). O tema, que possui dimensões assustadoras e traz impactos importantes para a sociedade, ganhou visibilidade a partir da década de 90, sendo considerado, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como uma questão de saúde pública (OMS, 2005).
No Brasil, a realidade não é diferente. De acordo com o Mapa da Violência (2015), pesquisa realizada pela FLACSO/BR, o Brasil passou da 7ª colocação (2012) nas taxas de feminicídios em uma amostra de 84 países, para a 5ª colocação, em uma amostra de 83 países. O Mapa da Violência também mostrou que, dos 4.762 casos de feminicídio cometidos em 2013, 50,3% foram cometidos por familiares, sendo que a maioria (33,2%) foi realizada por parceiros ou ex-parceiros.
Levando em consideração estes dados alarmantes, os quais apontam para a situação epidêmica de violência contra as mulheres em nosso país, bem como contribuições anteriores sobre esta temática (CREPOP, 2013), o CFP vem reiterar seu compromisso com a construção de uma sociedade brasileira que seja marcada por maior equidade e menor violência para as mulheres. Sendo assim, essa nota técnica tem como objetivo pautar orientações à categoria profissional dos psicólogos em relação a este conteúdo.
Primeiramente, faz-se mister sublinhar que é OBRIGATÓRIA a notificação de todos os casos de violência contra a mulher atendidos pelos profissionais de saúde, psicólogos e outros, em território nacional, segundo a Lei Federal nº 10.778 de 24 de novembro 2003, tanto em serviços de saúde públicos quanto privados. Dessa forma, é necessário esclarecer o que significa a notificação compulsória. Essa definição se faz crucial por conta da constante imprecisão conceitual que existe entre a notificação compulsória e a comunicação externa. É fundamental destacar suas claras diferenças.
A notificação tem fins epidemiológicos e segue um processo interno dentro da Saúde Pública, servindo para a construção de perfis pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação-SINAN, os quais serão utilizados na construção de políticas públicas mais eficazes. Ou seja, é necessário conhecer minuciosamente como ocorre, a incidência e o perfil da vítima de violência para construir intervenções específicas que atendam à demanda do fenômeno. Ao não notificar, o psicólogo torna-se omisso frente a uma demanda de grande magnitude em nosso país, qual seja a da participação na construção de uma sociedade pautada em menor violência contra as mulheres.
A ficha de notificação está disponível em todos os serviços de saúde pública e, no caso de atendimento particular, pode ser baixado do site do Ministério da Saúde (http://portalsinan.saude.gov.br/) e ser entregue encaminhada para a vigilância epidemiológica de seu município (buscar no google). Devem ser notificadas todas as violências cometidas contras as mulheres: psicológica, física, sexual, moral e patrimonial (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm). O CFP produziu vídeos, os quais podem ser facilmente acessados (https://www.youtube.com/watch?v=084Z58rI8rE e https://www.youtube.com/watch?v=6r3_uaUh59Q&feature=youtu.be) no intuito de auxiliar as psicólogas e os psicólogos no (re)conhecimento destes tipos de violência. A comunicação externa se constitui como denúncia e, diferentemente da notificação, que segue um procedimento interno, é enviada para o exterior dos serviços de saúde e aciona a Polícia, a Justiça e o Ministério Público.
A comunicação externa pode ocorrer com o consentimento ou sem o consentimento da mulher vítima de violência. Com o consentimento é quando a mulher está impossibilitada de fazer a denúncia e assina um termo de autorização para que o psicólogo faça a comunicação. A comunicação externa sem o consentimento da paciente configura uma quebra de sigilo profissional. Estes casos são os que mais preocupam os profissionais de psicologia, todavia, eles configuram uma exceção, mas nem por isso devem ser esquecidos como possibilidade importante no caso de atendimento a qualquer mulher em situação de violência.
A comunicação externa deve ser feita em situações em que a vida da mulher corra sério risco ou ainda a de seus filhos ou de pessoas próximas. Nos demais casos, o psicólogo deve trabalhar com a mulher, fortalecendo o seu protagonismo e oferecendo ferramentas para que ela tome decisões (CREPOP, 2013). O papel do psicólogo deve se concentrar, assim, no acolhimento, orientação e fortalecimento da autonomia dessas mulheres e, somente em situações de extrema vulnerabilidade e risco de vida, fazer a comunicação externa. Semelhantemente aos casos de tentativa e ideação suicida, o objetivo maior é a preservação da vida da paciente/cliente. Na rede pública, a Comunicação externa pode ser realizada pelo órgão superior da Instituição na qual o psicólogo trabalha (hospital, CAPS, etc), tendo em vista a proteção do profissional. Caso o serviço seja facilmente identificável, a Comunicação poderá ser realizada pela Instituição superior ou de referência (por exemplo, se o psicólogo trabalha em um posto de saúde de um bairro ou município ou no Saúde da Família, a comunicação poderá ser realizada pelo Hospital de referência).
A comunicação externa deve ser encaminhada para os órgãos da rede de proteção à mulher, como a Delegacia de Polícia, Ministério Público ou Poder Judiciário. Caso a vítima seja criança ou adolescente, também pode ser encaminhada ao Conselho Tutelar. Caso eventualmente algum órgão da rede se recuse a receber a comunicação externa, o fato deve ser comunicado ao Ministério Público Estadual (Constituição Federal, art. 129, inciso VII e Lei n. 11.340/2006, art. 26, inciso II). Caso o Ministério Público se recuse a receber a comunicação, o fato poderá ser levado ao conhecimento da Corregedoria deste órgão.
O ideal é que o profissional se articule com os órgãos do sistema de justiça para que sua identificação não seja juntada ao procedimento, mas arquivada em pasta sigilosa, de forma a não expô-lo desnecessariamente a eventuais retaliações por parte do suposto agressor. Esta boa prática de fomento à comunicação externa mediante a proteção do profissional comunicante tem sido realizada em diversos Estados do Brasil, sendo conveniente uma articulação dos CRP’s para sua expansão.
Um aspecto relevante da atuação dos profissionais de psicologia é a sua articulação com a rede de proteção de direitos das pacientes, bem como o fomento do fortalecimento desta rede. Esta rede transcende o sistema policial ou de justiça, abrangendo áreas como saúde, educação, assistência social, trabalho e renda, instituições universitárias, sociedade civil organizada, e outros órgãos específicos de atenção aos direitos das mulheres.
O Código de Ética do Profissional Psicólogo, instituído pela Resolução CFP nº 10/2005, em seu art.10, já contempla situações de quebra de sigilo. Esta previsão já é usualmente realizada em casos de ideação suicida da paciente. Todavia, esta normativa de quebra de sigilo profissional é genérica e carece de uma especificação para o contexto específico de violência doméstica contra a mulher. Levando em consideração a necessidade de responder a um problema de saúde pública de tal magnitude, relacionado ao número alarmante de feminicídio em nosso país, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios realizou, durante um ano, encontros com representantes dos Conselhos Federais da área de saúde (Psicologia, Medicina, Serviço Social e Enfermagem) no intuito de construir uma minuta de resolução em comum que regesse a questão da quebra de sigilo, por parte desses profissionais, em certos casos de violência contra a mulher.
A minuta de resolução visa explicitar, portanto, a possibilidade de quebra de sigilo profissional já prevista no Código de Ética, de forma a amparar o profissional da Psicologia que porventura trabalhe ou venha a trabalhar em situações limite de violência contra a mulher (independentemente se no âmbito da saúde pública ou em consultório particular). Não se trata de incorporar uma lógica policialesca ou repressiva na atuação profissional do psicólogo, mas de reafirmar o compromisso social e ético da categoria na erradicação dos feminicídios no Brasil. No momento, a minuta está tramitando pelos Conselhos Regionais de Psicologia por todo o país.
Diante dos fatos apresentados, o CFP se posiciona como favorável aos pontos desta minuta, a saber: em casos de sério risco de feminicídio, o profissional psicólogo deve quebrar o sigilo profissional e realizar a comunicação externa, bem como acessar os serviços disponíveis na rede para dar suporte a esta mulher, tendo como propósito maior preservar e proteger sua vida. Os fatores indicativos de risco de feminicídio são:
I – gravidade concreta da violência noticiada (exemplo: facada, paulada, tiro, tentativa de enforcamento ou afogamento, etc.); ou
II – violência física grave e crônica associada a uma passividade ou dificuldade da mulher em romper a situação de violência; ou
III – presença de fatores de risco de violência grave ou letal, tais como:
a) aumento da frequência ou intensidade da violência em período curto de tempo; b) transtornos mentais graves na mulher; c) indicativos de transtornos mentais no agressor, com sintomas maníacos ou psicóticos, ideação suicida, alcoolismo ou dependência de drogas, transtorno de personalidade marcado por problemas com o controle da raiva, impulsividade e instabilidade; d) acesso a arma de fogo pelo agressor; e) histórico de violências graves anteriores pelo agressor contra a mulher, seus filhos, outras pessoas ou animais; f) dependência econômica ou emocional da mulher em relação ao agressor; g) gravidez ou lactância da mulher nos últimos 18 meses; h) mulher isolada de rede social; i) separação ou tentativa de separação recente da mulher em relação ao agressor; j) conflitos relacionados à guarda de filhos, pensão ou partilha de bens; l) comportamento controlador, perseguidor, ciumento ou obsessivo do agressor; m) agressor possui instabilidade profissional ou está desempregado; n) ameaças de morte à mulher; o) mulher com grave receio de agressões futuras.
Nas demais situações de violência contra a mulher, deve-se manter o sigilo profissional, realizando-se tão somente a notificação compulsória, de caráter interno ao sistema de saúde e obrigatória em todo o país.