As mais simples medidas de prevenção contra o coronavírus – higiene das mãos e isolamento social – encontram barreiras importantes nas favelas brasileiras. Segundo dados de pesquisa realizada pelo Instituto Data Favela e pela Locomotiva (2019), ficar uma semana em casa sem renda implicaria 72% dos moradores de favelas não conseguirem manter o já comprometido padrão de vida que possuem. A Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio Contínua de 2018 aponta que 50% da população brasileira, aproximadamente 104 milhões de pessoas, vivem com R$ 413 per capita.
Além da questão da renda, as condições de habitação (casas podendo ter apenas um cômodo, por exemplo), de saneamento, acesso à água, coleta de lixo e de transporte compõem o cenário preocupante que pode se agravar durante a pandemia do Covid-19. No Brasil, são 35 milhões de pessoas vivendo sem acesso à água tratada e 100 milhões sem esgoto (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, 2018). Anualmente, são 300 mil internações por doenças causadas por falta de saneamento, como a hepatite A e a leptospirose (BBC, 2020).
Para atender à população mais vulnerável, o governo chegou a propor, inicialmente, um cupom que teria valor equivalente ao Bolsa Família (R$ 89 a R$ 205 por mês). O impacto dessa ajuda seria de algo em torno de R$ 15 bilhões, 11 vezes menor que o socorro prestado aos bancos, na forma da compra de títulos soberanos, no valor de US$ 31 bilhões (equivalente a R$ 161 bilhões). Por conta da mobilização da sociedade e de parlamentares, o recurso proposto passou a ser de R$ 600, já tendo sido aprovado na Câmara e no Senado, aguardando agora a sanção presidencial. Além disso, também tramitam projetos para suspensão de pagamentos de tarifas como luz, água e aluguel – que podem representar grande percentual dos gastos mensais da população mais pobre.
Entretanto, na contramão do papel garantidor de direitos que o Estado deveria assumir, não só durante a pandemia, o Governo Federal cortou 158 mil bolsas do Bolsa Família, 61% só no Nordeste, ação que afeta moradores de favelas, quilombolas e indígenas. Alguns dos pronunciamentos de empresários e do presidente sugerem que a perda de algumas vidas é aceitável para não parar a economia. Quando se fala nessas mortes aceitáveis, quem mais provavelmente serão as vítimas, dadas as condições objetivas de prevenção e de acesso à saúde e assistência? O descaso parece explicitar um ideal, segundo o qual, para não prejudicar a saúde financeira, algumas vidas são mais descartáveis que outras.
Para as periferias não é novidade a sensação de abandono por parte das administrações públicas e o desenvolvimento de estratégias para passar por momentos de dificuldade é prática comum. Nesse sentido, ações de solidariedade têm se reforçadas (vaquinhas e doações de alimentos e itens de higiene), redes de ajuda, e combate às fake news por parte de comunicadores populares, como o material sobre coronavírus produzido pela e para favelas, disponível em: https://wikifavelas.com.br/index.php?title=Material_sobre_coronavírus_produzido_pela_e_para_favelas. Outra medida importante foi a do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro (https://www.facebook.com/Observatoriodefavelas) que, pensando na saúde mental nas favelas, elaborou material com dicas para a atenção ao bem-estar psicológico. As sugestões envolvem a escolha de horários específicos para se informar sobre o vírus, o envolvimento com estratégias e redes de enfrentamento e a importância de pedir ajuda.
Por mais importantes que sejam essas ações, é necessário exigir papel enérgico e ativo do Estado na prevenção e enfrentamento à pandemia. Em primeiro lugar, é preciso não tratar as favelas como uma entidade só. Os planos de contingenciamento devem ser específicos para cada comunidade e devem envolver a mobilização de recursos públicos e privados para oferecer atendimento às populações nesses locais. É fundamental reforçar a importância da coisa pública em momentos como esse, fortalecendo a defesa do SUS e exigindo a revogação da EC 95, que congelou gastos, por exemplo, em saúde e educação por 20 anos.
Algumas medidas que teriam impacto direto na eficiência no combate ao Covid-19 nas favelas envolvem a internet livre com campanhas de comunicação voltadas para as redes sociais, a redução do preço do gás, além da proibição de cortes de gás, água e luz por inadimplência, bem como a garantia do fornecimento de água para todos e de alimentação para alunos da rede pública, que viram sua frequência de refeições reduzir por conta do fechamento das escolas.
A assistência a trabalhadores informais ou cujos empregadores não os dispensaram também impacta diretamente a prevenção nas favelas. Dados da pesquisa “Perfil sociodemográfico dos moradores de favelas com UPP na cidade do Rio de Janeiro”, de 2016, mostram que as 12 ocupações mais frequentes da população dessas favelas envolvem serviços diversos (garçom, ascensorista, gari, limpeza, porteiro, entregador, etc.), trabalho doméstico em terceiros, comerciantes, atendentes, motoristas entre outros. Para muitos desses profissionais, parar não é uma opção e o sofrimento advindo da autovigilância constante em tempos de pandemia, somada a condições precárias de trabalho, como insegurança e falta de descanso, torna-se potencial fonte de transtornos, como a depressão, ansiedade, etc., além de outros problemas de saúde, como cardiopatias e diabetes, cada vez mais frequentes na população brasileira e de grande perigo na interação com o Covid-19. As mulheres, que nas favelas chefiam 49% dos lares (Data Favela, 2019), compõem 70% dos profissionais que atuam na linha de frente de combate ao vírus (OMS, 2019) estando expostas a condições muito estressantes para a saúde, bem como à infecção. Nesse sentido, é imprescindível a adoção de medidas como a dispensa remunerada para trabalhadores de serviços não essenciais, a garantia da ampliação das equipes de saúde, do fornecimento de EPIs para os que estão na linha de frente, assim como a renda mínima básica, como a que depende da aprovação do presidente, para os que precisarem interromper as atividades profissionais nesse período.
Fontes
https://open.spotify.com/episode/19i8dQ7SAeq9fLHYH0xBhs?context=spotify%3Ashow%3A6WRTzGhq3uFxMrxHrHh1lo&si=NWlfqML6R8eubWwSmuDRWQ
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