Entrevista com Christian Dunker
O Conselho Regional de Psicologia entrevistou, para essa edição da Revista Contato, o psicanalista e Professor Titular do Instituto de Psicologia na Universidade de São Paulo (USP), Christian Dunker. Ele possui graduação em Psicologia (1989), mestrado em Psicologia Experimental (1991) e doutorado em Psicologia Experimental (1996) pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano. É também escritor. Em 2012 ganhou o prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise com a obra “Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica” (Annablume, 2010). Publicou “O Cálculo Neurótico do Gozo” (Escuta, 2002), “A Psicose na Criança” (Zagodoni, 2014), “Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma” (Boitempo, 2015), “Por quê Lacan? (Zagodoni, 2016) e “Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano” (Ubu Editora,2017), entre outras obras. Confira a seguir a entrevista na íntegra:
Revista Contato: Apesar de o tratamento em liberdade e no território ser o mais adequado de uma perspectiva científica, existe uma grande pressão e a retomada de práticas de isolamento e tratamento por meio de internações, sobretudo nos últimos dois ou três anos. Isso tanto para pessoas em sofrimento mental decorrente de transtornos, quanto sofrimento mental decorrente do uso de drogas, que recebe ainda mais pressão. Como podemos entender esse movimento no contexto social, econômico e político em que estamos vivendo?
Christian Dunker: A gente tem que pensar na história dessas transformações das nossas relações com a loucura em geral. A partir da década de 60, 70, a gente teve uma grande transformação na Itália, mas também nos Estados Unidos, depois no Brasil, que são as diferentes reformas antimanicomiais e que se apoiaram em críticas do modelo hospitalocêntrico e da centralidade da medicina no acolhimento do sofrimento mental. Então a gente vai ter a psicoterapia institucionalista na França, a antipsiquiatria na Inglaterra, a gente vai ter o Basaglia, com a psiquiatria democrática na Itália. Agora, olhando para trás, fica relativamente fácil perceber que aquele momento estava muito marcado pelo reconhecimento do sofrimento como uma experiência que precisava ser revertida, que precisava ser amparada. A grande crítica baseava-se no fato de que o encarceramento entre muros, o uso de práticas de violência e coerção, uso do eletrochoque e convulsoterapia de forma completamente desregulada para manter a autoridade dentro das instituições. Tudo isso era parte indutora de sofrimento nas pessoas e que isso era intolerável. Para o próprio projeto de amparo e de reconhecimento de que a loucura precisava de ter um reconhecimento dentro da sua experiência prática.
O que se começa acontecer a partir dos anos 2000 e de forma mais acentuada no Brasil, depois da ascensão do governo Bolsonaro. A gente muda a nossa relação com o sofrimento suposto na loucura. Ela deixa de ser uma experiência que demanda integração, demanda reconhecimento e que precisa ser tratada e passa a ser gradativamente reconsiderada como experiência moral. Então aquele que precisa de tratamento, no fundo, necessita de uma reeducação. Aquele que precisa de acolhimento para o seu sofrimento, no fundo precisa de mais disciplina.
Isso tem uma relação direta com a mudança de paradigma na produção. Se nos anos 60 até os anos 90 a gente tinha um modelo, vamos chamar, um modelo liberal, e que o sofrimento precisava ser mitigado, com a chegada do neoliberalismo, a gente já tem essa grande sacada de que a gente pode acrescentar mais sofrimento nas pessoas porque assim elas produzem mais. Porque assim elas ficam em jornadas de trabalho mais extensas, porque assim elas entregam mais, vestem mais a camisa da empresa. Porque assim, pressionada, elas vão aumentar sua produtividade.
Então o que começa acontecer nas empresas, de certa forma, elas vão usar um saber psicológico para produzir o sofrimento e não evitar o sofrimento. Vão considerar o Big Brother das demissões. Nós vamos demitir as pessoas daqui. O que isso gera? Paranoia. E depois você administra a paranoia. Vamos considerar uma microsegmentação de tudo o que você faz, chamada microgestão. O que isso gera? uma experiência esquizóide, uma experiência esquizofrênica. Mas, agora isso aumenta a produção. Isso não é mais um problema. Vamos estimular os perfis de brilhantismo, talento, disposição infinita para ação, proatividade. Como se chama isso? Mania. Então a gente vai captar a mania como parte do sistema produtivo.
Com a exceção de alguns quadros como a depressão que aparecem como forma de resistência ao sistema, o que a gente vai ter é um aumento, uma mudança na nossa relação discursiva e ética com o sofrer. Então isso vai colocando a loucura, sofrimento mental em uma condição moral, que exige assim disciplina, reeducação, mais do que acolhimento e escuta. De certa forma, é como se o estado estivesse incorporado os argumentos da luta antimanicomial para se desincumbir da saúde mental.
Então, é como se o discurso fosse: vocês estão lutando contra manicômio, tudo bem. A gente fecha manicômio e deixa de investir esse dinheiro em saúde mental. A gente cria equipamentos substitutivos como o NASF, como CAPS, mas a gente não equipa esses equipamentos. A gente não escala as pessoas. A gente, quando coloca as(os) Psicólogas(os), por exemplo, a gente não dá condição de trabalho para eles ou não deixa que eles pratiquem a escuta. Aloca elas(es) para o trabalho mais administrativo. O que isso está dizendo?
E depois a gente empreita a função da saúde mental produzindo essas terceirizações informais em que os equipamentos de saúde pública se tornam administrados por cooperativas, associações, ligadas a hospitais, a grupos de benemerência, isso faz parte da moralização. Do retorno da abordagem moral da loucura e isso faz parte também do desinvestimento em saúde mental. É um truque, porque argumentos da luta antimanicomial são usados para desinvestir, para sucatear, para tornar o programa de saúde mental de inclusão do sujeito que tem um sofrimento psíquico e ele começa, então, a se dissolver com isso. Ele passa da condição de alguém que tem um transtorno – porque todo mundo tem um transtorno – e ele passa a entrar numa zona nebulosa. Isso tem que ver com a escalada da medicalização da loucura, com uma escalada da medicalização da infância, com a escalada dos diagnósticos, com a indústria farmacêutica que começa a capitalizar o sofrimento.
É o outro aspecto dessa mudança que a gente está falando. Se antes era caro e difícil você acolher o sofrimento, agora a gente tem uma indústria que é capaz, então, de produzir, de planejar medicações e de coordenar reformas nos códigos diagnósticos. O que a gente foi vendo a partir dos anos 80 com a progressão indevida da quantidade de diagnóstico. Esse processo vai culminar em uma explicitação, agora com o governo Bolsonaro, de um programa de não só deslocamento dos cuidados da saúde mental para hospitais e comunidades, mas a reconstrução do negócio da saúde mental. É um retorno ao modelo arcaico manicomial, porque aquele modelo manicomial, não vamos esquecer, ele estava altamente parasitário do estado. Ele era um casamento corrupto entre estado e determinadas clínicas, determinados grupos favorecidos do estado e que faziam que um terço ou mais da verba geral da saúde fosse destinada à saúde mental. Ficando os pacientes subtratados, sem ser acolhidos. O que está havendo agora? Uma reconstrução desse negócio. Só que agora, ele vai se apoiar na transformação da religiosidade em um negócio. Ele vai se apoiar no fato de que nesses 50 anos também a moral se alterou e também aqueles que organizam as narrativas morais se reformularam. Há, portanto, experiências religiosas que têm estrutura de uma empresa, se apoiando nessa escusa, nessa ambiguidade de que são instituições religiosas, portanto pagam menos impostos e têm uma certa proteção do estado.
Agora nos parece razoável, para essa política parece razoável inclinar então novos pacientes que vão ser tratados como matéria-prima para esse novo empreendimento chamado as comunidades terapêuticas. Hoje pessoas têm formação específica, seguindo regras de disciplina e moral em projetos não científicos, amparadas no apoio monetário do estado e jurídico em formação do estado, pretendem, então, fazer ressurgir, mas agora em uma outra chave, aquilo que de pior houve na história da loucura, pelo menos no nosso país.
Christian Dunker: A gente tem em paralelo um processo muito curioso de assunção ou de instrumentalização não democrática da raça, do gênero e da classe como condição de afetação da população. O que está acontecendo? De acordo com estas características, as pessoas que têm diagnóstico que exigem um tratamento do estado, elas são empurradas para uma outra categoria.
Parte das pessoas que tem diagnóstico ou apresentam sofrimento mental, que exigem um tratamento do Estado, são empurradas para outra categoria. Elas não são mais cidadãos que precisam de um cuidado especial. Elas são pobres, jogadas nas ruas ou encarceradas. E dessa condição, o recurso que deveria ser alocado para a saúde fica protegido, porque as ações e programas mudam de pasta, de território institucional e são reconhecidos por políticas que não são mais de saúde. Na verdade, por não-política. O que estamos fazendo é transformando pessoas que deveriam ser usuárias de saúde mental em criminosas.
Revista Contato: Ou até pior: em criminosos, porque hoje a gente tem a pasta da segurança muito envolvida com uma questão que seria de saúde, que é o tratamento das pessoas em sofrimento decorrente do uso abusivo de drogas…
Christian Dunker: Exatamente. Que é parte desse processo de re-moralização. Não é que ela precisa de ajuda, ela precisa de cadeia, ou pode ser deixada à sua própria sorte. Ele tem uma disposição moral que confronta com os outros. À medida em que se a experiência de sofrimento mental se disseminou pela sociedade, hoje cada um pode reconhecer seus sintomas, em que o estigma da loucura, de fato, se reduziu bastante. Mas, a loucura se reconfigurou em termos de classe e raça. Os ricos têm problemas mentais que vão ser tratados. Os pobres são reduzidos à condição de pobre e aí depois, se tiver também uma doença mental, também um transtorno mental, aí a gente, se sobrar espaço, fala sobre isso. É uma operação homóloga ao que acontece com os indígenas hoje no Brasil. Você tira o território deles, você reduz o tamanho das aldeias e daí se ele precisa sair das aldeias e o que eles viram? Pobres. Pobres nas periferias das grandes cidades do norte e nordeste. Aí você, assim, pode deixar de investir na Funai, reduz o encargo do estado com essa população.
Revista Contato: Mais que isso. Também pode se invadir esses territórios e utilizar riquezas, como é o caso do exemplo dos indígenas…
Christian Dunker: Isso. Agora, o ponto crítico nisso é como a gente não conseguiu, ou precisa investir mais em uma política de escuta dos sofrimentos. E como o Estado, eu acho que a Psicologia tem um grande papel nisso, e está ocorrendo esse movimento, por exemplo, as clínicas públicas de psicanálise que tomaram o Brasil afora, as equipes de escutatória trazendo um movimento que é muito interessante, porque não é um movimento público, ou pelo menos não é só público, e também não é privado. Não vem das associações de Psicanalistas ou Psicólogas(os), ou das universidades. Algumas universidades apoiam essas iniciativas, mas elas são um movimento social que está pleiteando e praticando a importância da escuta, que é o que foi suprimido nessa operação.
A ideia de que o sofrimento é uma demanda, essa demanda envolve reconhecimento. É preciso retomar a ideia de que o sofrimento se transforma com a palavra, e que a forma como a gente lida com sofrimento, narra, reconhece e acolhe transforma esse sofrimento. É preciso falar sobre o mito de que os transtornos mentais são uma espécie exclusivamente de alteração fisiológica no cérebro. Temos sim o cérebro em nossa mais alta importância nisso, mas, assim como o cérebro afeta a linguagem, a linguagem afeta o cérebro.”. E, se a gente não escutar, e fazer valer as prerrogativas da palavra, o que vai acontecer é que vamos tratar nossos cidadãos que sofrem com transtorno mentais como objetos de uma necropolítica.
É como se, durante 40 anos, a gente ficasse hibernando, aceitando muito passivamente a ideia de que o sofrimento mental ele não tem que ver sua forma de vida. Ela tem a ver com outras coisas, mas não com a forma que você se interpreta, como você fala de si, como você trabalha, como você deseja, como você usa a linguagem. Como se o transtorno mental fosse uma coisa assim à parte, fosse um processo sobre o qual a gente teria só uma ingerência paliativa, uma gerência secundária. Então a gente tem que tornar a realidade mais adaptada, a gente tem que dar suporte para isso, mas no fundo é como se o sofrimento tivesse perdido a sua valência transformativa ou a sua valência política. Isso que a gente está redescobrindo.
Revista Contato: Esses conceitos parecem carregar uma culpabilização do indivíduo. Então é como se fosse dar autonomia daquele sujeito, quase como uma escolha ele ter ou não o sofrimento mental, seja ele transtorno ou decorrente de abuso de drogas. Como você avalia esse aspecto?
Christian Dunker: É mais um capítulo desse processo de re-moralização do sofrimento mental. Entre os afetos que estavam disponíveis para isso, qual foi que a gente foi buscar? A culpa. A culpa para dizer Se você não está desempenhando apropriadamente, você não está se sentido adequado ao mundo, se você não está de acordo com o teu corpo, então a culpa é sua Porque você é uma espécie de empresário da sua vida e você não está fazendo isso bem. Ora, este discurso neoliberal vai deixar de fora o fato de que o sofrimento acontece sempre relacionado a forma de vida. Em um contexto econômico, uma família, uma comunidade, num grupo, numa cultura, ele envolve uma partilha social do sofrimento. Ou seja, há uma espécie de compartilhamento expansivo que é absolutamente negado por essa política, que uma política de individualização do sofrimento e de responsabilização exclusiva do sujeito, porque ela também é correlata de uma individualização da felicidade e do fracasso.”
Revista Contato: Existem conceitos muito subjetivos, por exemplo, para nomear uma pessoa traficante ou caracterizá-la como alguém que está em sofrimento mental. Por mais que, por exemplo, a Fiocruz diga que o uso de crack é, se comparado a outras drogas, infinitamente menor, em termos percentuais, o que se percebe é a representação social da “epidemia do crack”, concentrada em imagens de rapazes jovens, negros e pobres. Como seria possível dialogar com a sociedade sobre essa realidade, buscando explicitar essas contradições desse movimento?
Christian Dunker: É uma boa pergunta para o momento que a gente está vivendo, de quarentena, de enfrentamento de uma doença como o coronavírus porque é uma experiência que mostra como a gente precisa enfrentar essas questões coletivamente. Mostra como a experiência do sofrimento convoca os nossos fatos sociais nas pessoas. Seja de individualização, seja de segregação ou de isolamento. E isso está ficando óbvio. Então a gente tem uma janela de oportunidade de ver algo a partir da experiência mais concreta, mais aguda e mais radical pela qual a gente está passando. Mas eu acho também, a gente já tem um programa que é desconstrução da nossa fé diagnóstica na qual a gente acha que dar um nome a uma coisa é ter um imediato domínio sobre a coisa. Uma desconstrução da grande metáfora da diabetes mental, para falar dos transtornos mentais, uma desconstrução da ideia de que o sofrimento é invariante ou ele não é afetado pela escuta. Introduzir a dimensão da escuta e da palavra é muito importante. Outra coisa muito importante é a gente mostrar como a Psicologia é parte da saúde, é uma profissão de saúde e que, portanto, há formas de praticar clínica que não são ativamente naquela outra forma médica. Não são exatamente uma espécie de caso particular da Medicina, mas sim que tem uma epistemologia própria, tem uma ética própria, tem um conjunto de procedimentos que seriam próprios. Isso faz parte da reformulação dessa centralidade da medicina no campo da saúde que precisa e está sendo revista.
Revista Contato: Você falava na primeira pergunta a respeito dessa incompletude da RAPS. E isso é bem importante porque outros aspectos ou equipamentos que deveriam compor a rede acabam não estando presentes. E a pessoa acaba sendo abandonada imersa seu cotidiano de sofrimento, gerador de sofrimento. A partir disso há uma tentativa de desqualificar o trabalho realizado pelo CAPS, basicamente sem investimento e sem condições de trabalho, como ineficiente, justificando, a partir disso, uma precarização ainda maior. Há uma tentativa de estrangular a política por meio desse desinvestimento?
Christian Dunker: Essa lista de pautas ela teria assim como chave, uma síntese, o consulto do SUS que foi prescrito pela Constituição de 88, cuja implementação jamais se concluiu. Cuja destinação de verba jamais foi esclarecida. Portanto, a gente esta as voltas com um programa que não foi realizado e, ao mesmo tempo, um discurso que esse programa é insuficiente. Esse programa é ineficaz, ele consome mais recursos do que deveria e que não entrega aquilo que dele espera. Então é assim que se produz uma verdadeira fakenews. Uma verdadeira falsidade. Uma verdadeira impressão equivocada, que no fundo afasta as pessoas do entendimento de que a saúde é um processo coletivo gerido e produzido pelo coletivo. As pessoas ainda entendem que a saúde mental é um assunto para especialista. Inclusive dentro da saúde mental se pensa que é tema exclusivo para psiquiatras, psicólogos, psicanalistas poderiam então se interessar ou ter algum saber sobre isso. Hoje, a gente enfrenta no mundo uma crise global de saúde mental. Não vai afastar as pessoas da(o) Psicóloga(o), analistas, terapeutas ocupacionais que se dediquem a demanda que a gente tem. Mas, vai ser preciso encontrar como também professores, como enfermeiros, como qualquer pessoa que cuidam de pessoas, também precisam de conhecimentos e procedimentos básicos em saúde mental. Nós temos um déficit gigante de formação, a gente tem uma concentração de saberes em saúde mental que é equivalente a concentração de renda no Brasil. Totalmente não democrático e não equitativo.
Revista Contato: A experiência de quarenta e distanciamento social que estamos vivenciando pode nos tornar mais empáticos, por exemplo, com o sofrimento decorrente das internações forçadas, cujo distanciamento é muito mais solitário, longo e sem perspectivas. Isso pode fazer com que as pessoas, em algum nível percebam a crueldade disso tudo?
Christian Dunker: Quando passamos por uma situação como essa a realidade bruta do sofrimento mental bate em sua porta. Vamos nos deparando e nos encontrando com a consideração sobre o que fazer com isso. Você vai se individualizar, vai se culpar, vai se isolar, vai culpar o outro ou você vai transformar a si ou vai transformar o outro? Então é uma oportunidade de a gente reposicionar a importância e os recursos para a saúde em geral, a começar pela sustentação do SUS, mas também pela saúde mental em particular, que foi e está sendo muito afetada nessa situação. A gente tem como incremento os sintomas porque você tem um incremento do conflito, você tem um incremento do sofrimento porque você criou, você cortou aquilo que seria o recurso natural para fazer frente a esse sofrimento. O sofrimento é sintoma. Que são a escuta, a partilha social de afeto, a comunidade de referência, autoridades simbólicas, os laços desejantes, amorosos. Por isso que nós estamos em uma crise de saúde mental ainda mais aguda. Não é porque estávamos todos loucos, mas porque as condições de acolhimento e tratamento naturais elas foram suspensas ou estão muito diminuídas.
Revista Contato: Qual o impacto para as pessoas em sofrimento mental dessas internações forçadas ou por longos períodos?
Christian Dunker: A intervenção compulsória é símbolo dessa mutação na política de saúde mental rumo à autorização para o uso da violência. Em suma, o que está em jogo é a função da violência. Você poder em nome de um saber, do Estado, praticar a segregação, a exclusão, a violência sobre as pessoas das quais deveria cuidar. Então por que se fala tanto na ditadura militar, retorno da ditadura militar? Porque essa era a gramática básica daquele período. O estado que devia cuidar dos seus cidadãos oprimiu eles, calou, censura, violentou, torturou, matou. Então aquilo é um paradigma que jamais foi desativado no nosso país. A gente não fez o balanço. A Comissão Verdade não conseguiu fazer o seu trabalho em tempo. A gente foi o último país da América Latina a ter uma comissão verdade. A gente nunca pôs os nossos torturadores na cadeia. Não teve nenhum julgamento e isso tem um preço simbólico. Você sabe que essas situações traumáticas quando não são enfrentadas e não são reconhecidas elas tendem a se repetir. O que a gente tem agora é um curioso casamento entre o passado mal resolvido, esse histórico da ditadura e de violência mal elaborado, com essa novidade que é o tratamento neoliberal que considera aceitável pessoas apenas como capital humano para mais produção.