O Brasil tem vivido um processo de transformação profunda de como entende seu texto constitucional, especialmente no que concerne ao parágrafo único do Artigo 1º da Constituição Federal de 1988. Ao declarar que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, compreende-se a importância da participação social da sociedade civil no aparelho do Estado brasileiro. As políticas públicas de saúde e de assistência social, por exemplo, têm a participação social prevista e garantida constitucionalmente, através dos Artigos 198 (Saúde), 204 (Assistência Social) e 227 (Crianças e adolescentes). No entanto, a composição entre a sociedade civil e gestões governamentais se dá de forma cada vez menos orgânica e, recentemente, foi questionada em ações judiciais que contestam, por exemplo, o recente Decreto nº 9759/2019 do Governo Federal.
O decreto presidencial extinguiu de uma só vez todos os colegiados ligados à administração pública federal anteriores a 2019 que não foram criados por lei, com a promessa de recriar aqueles que, após avaliação do Governo, fossem considerados essenciais. Além disso, já no primeiro dia do ano o Poder Executivo apresentou a Medida Provisória nº 870, extinguindo o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA), alterando a composição do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) e de mais 51 conselhos, como a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa. O Presidente da República, Sr. Jair Messias Bolsonaro, afirmou em uma rede social que o motivo das alterações era “(…) redução do poder de entidades aparelhadas politicamente usando nomes bonitos para impor suas vontades, ignorando a lei e atrapalhando propositalmente o desenvolvimento do Brasil (…)”. Em julho deste ano, um novo ataque à participação social: o Decreto nº 9926/2019, também do Governo Federal, dispôs novas regras para composição do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD). A medida retirou os Conselhos profissionais (entre eles o Conselho Federal de Psicologia) e a sociedade civil do CONAD, que passa a ser composto majoritariamente por integrantes governamentais. A sociedade civil tem contestado a decisão, através de notas de repúdio e ações junto ao Supremo Tribunal Federal.
Na esteira destas transformações, os setores da sociedade civil ligados à proteção integral das crianças e adolescentes chocaram-se diante do Decreto nº 10.003, de 4 de setembro de 2019. A iniciativa retira a participação social do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), principal órgão de defesa dos direitos e de monitoramento de políticas públicas deste segmento, dispensando os membros democraticamente eleitos e burocratizando a participação dos novos representantes. A dissolução do CONANDA se dá através da restrição da participação popular em suas decisões, a subtração financeira e o impedimento de que a sociedade civil eleja seus próprios representantes. São processos gravíssimos que merecem toda a atenção da sociedade brasileira.
Na opinião do Conselho Regional de Psicologia do Paraná, o Decreto nº 10.003/2019 vem na contramão da proteção das crianças e adolescentes, uma vez que afronta não apenas o Artigo 1º, mas também o Artigo 227 da Constituição Federal, que aponta que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Combinado ao inciso II do Artigo 204, a carta constitucional impõe que, para dar efetividade a este exercício, as ações governamentais na política de atendimento aos direitos da criança e do adolescente devem estar atreladas à participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.
Para isso, fazemos menção ao próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990, conquista que marca nossa vida política na relação com as crianças e adolescentes. Na Lei nº 8069/1990, que promulga o ECA, há diretrizes explícitas sobre a criação e regulação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, como órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas da sociedade, segundo leis federal, estaduais e municipais (artigo 88, incisos II e IV). A própria Lei nº 8242/1991, que cria o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – que vigora até hoje – assegura a participação em número igual (ou seja, paritário) entre representantes do Governo Federal e das entidades da sociedade civil. Ambas foram criadas em um contexto de enfrentamento às consequências da ditadura civil-militar brasileira, com a ampliação e o revigoramento dos espaços democráticos, da participação social e do diálogo institucional entre sociedade civil e governos.
Este CRP-PR corrobora, portanto, o entendimento da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal, do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais e de seu Grupo Nacional de Direitos Humanos, que em recente nota afirmam que os conselhos de políticas públicas são instituições democráticas, previstas na Constituição para valorizar e possibilitar a participação da população no controle social e que incorre em inconstitucionalidade que qualquer ente federado deixe de manter ou não mantenha de forma eficiente estes conselhos de políticas públicas.
Resta a este Conselho Regional de Psicologia o questionamento sobre os interesses em praticamente dissolver o CONANDA e as ações de controle social no âmbito do direito da criança e do adolescente.
É notório que avançam no Brasil a barbarização das relações sociais e graves ataques à infância e adolescência – muitas vezes a partir da ação do Estado como o maior violador dos Direitos Humanos deste segmento. Está em curso, por exemplo, uma ação verdadeiramente genocida contra crianças, adolescentes e jovens negros e periféricos, que encarcera e/ou mata um segmento muito específico da população. Segundo o Atlas da Violência de 2019, 75,5% das vítimas de homicídios são indivíduos negros, 91,8% das vítimas são homens e, dentre os homens, 55% dos homicídios acontecem no período da juventude, entre 15 e 29 anos. Também não há dúvida sobre o componente de classe destes jovens negros: são pobres de baixa escolaridade, que cursaram até o segundo ciclo do ensino fundamental incompleto. Os números são reflexos da falida guerra às drogas, das violações cometidas no Sistema Nacional de Socioeducação, da ação policial repressora e seletiva contra a negritude e a pobreza.
Além disso, avança o conservadorismo e o autoritarismo no que se refere à educação de adolescentes e jovens sobre gênero e sexualidade. São gravíssimas as consequências da supressão da discussão pública sobre o autocuidado, o cuidado com o outro, a autonomia dos corpos e no que tange às questões de orientações sexuais e de identidade de gêneros. Projetos como “Escola Sem Partido”, combate à suposta “ideologia de gênero” e tentativas de censura de livros infantis com conteúdo pró-diversidade, a exemplo da ação contra a Bienal do Livro no Rio de Janeiro neste ano, tem avançado. Como resultado desta interdição de discussão, ampliam-se os casos de violências sexuais e de gênero contra crianças e adolescentes no Brasil. Dados do Observatório do Terceiro Setor (2019) apontam que 51% das crianças abusadas sexualmente no Brasil tem entre 1 e 5 anos, que 69,2% dos casos de violência sexual contra crianças ocorreram em casa e 33,7% tiveram caráter de repetição. Impedir que crianças e adolescentes compreendam como essas violências de gênero operam é, sem sobra de dúvidas, contribuir para o aprofundamento deste triste quadro.
Outra situação que pode ser enfrentada com o fortalecimento das políticas públicas e de seus mecanismos de controle social refere-se ao trabalho infantil. Segundo a Agência Brasil (2019), dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2016 mostram que o Brasil tem 2,4 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos trabalhando. Os adolescentes pretos e pardos correspondem a 66,2% do total do grupo identificado em situação de trabalho infantil. O trabalho infantil priva as crianças de sua infância, seu potencial de desenvolvimento e de sua dignidade.
Estas e muitas outras graves violações podem ser minoradas com a ação efetiva de políticas públicas para crianças e adolescentes. Para isso, é imprescindível fortalecer os mecanismos de defesa e proteção integral e este segmento, inclusive ampliando as ações dos Conselhos de controle social, e não os restringir.
Também ressaltamos a importância do trabalho de Psicólogas e Psicólogos nas políticas públicas de proteção integral a crianças e adolescentes. A intervenção envolve a abordagem junto à criança e ao adolescente quanto ao exercício de seus direitos e, também, às ações que asseguram um processo de transformação das instituições e mentalidades ainda orientadas pela doutrina da situação irregular, pelo punitivismo e pela coerção.
Neste sentido, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná atenta-se aos Princípios Fundamentais do Código de Ética da Profissão, especialmente aos incisos “I. O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.” e “II. O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” Deste modo, compreendemos como essencial que o CRP-PR se posicione em defesa dos direitos sociais de crianças e adolescentes, na perspectiva de sua proteção integral e dos mecanismos de controle social de suas políticas públicas.
Esta autarquia pugna, portanto, pela imediata sustação do Decreto nº 10.003/2019, pelo fortalecimento do CONANDA e dos outros fóruns de controle social no país, em todas as esferas. Acreditamos que qualquer iniciativa que suprima a discussão pública e a averiguação de denúncias de violações de direitos humanos no Brasil não deve vigorar.