Texto escrito pela Comissão de Mulheres do CRP-PR
Carta aberta à sociedade, às famílias e às demais instituições de serviços e políticas públicas,
Vimos, por meio desta carta aberta, registrar a urgente atenção ao que, ainda no século XXI, é destaque nos noticiários: a violência doméstica e contra mulheres, a violação do direito à vida delas!
Não é de desconhecimento de vocês que, diariamente, compõem as notícias de âmbito nacional atos criminosos que aviltam a integridade física, psicológica, moral, patrimonial e social das mulheres no Brasil. Mesmo diante dos avanços legislativos deste século, como a proteção e rede de serviços implementadas com a Lei Maria da Penha, ou com o agravamento da classificação do feminicídio como crime hediondo, os registros de violência e morte de mulheres não diminuem.
A título de contextualização, tomando somente o Paraná, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, 77 mulheres foram vítimas de feminicídio no Estado. Já em 2023, apenas no primeiro semestre, 62 mulheres foram vítimas de feminicídio no Paraná, de acordo com o Laboratório de Estudos de Feminicídios (Lesfem) da Universidade Estadual de Londrina (UEL), colocando a unidade federativa em terceiro lugar no ranking nacional do período. Um levantamento realizado pelo Ministério Público do Paraná (MPPR) indica o aumento de 26% no número de feminicídios e tentativas de feminicídio: no ano passado, foram registrados 354 casos em todo o Estado.
Muitos dos números ainda são subnotificados; no entanto, denotam-se alguns padrões. Considerados os níveis nacionais, o retrato da violência sofrida por mulheres é igualmente assustador. A maior parte das vítimas tem entre 18 e 24 anos e, conforme dados do Anuário, as mulheres negras correspondem a mais de 60% do contingente. O perfil dos agressores também revela uma constante: a maioria deles está no âmbito doméstico, costuma ser do círculo familiar, ou seja, tem intimidade com as vítimas ou teve vínculo conjugal com elas. Nesses casos, o que deveria oferecer cuidado e segurança é, exatamente, o que conduz mulheres a um trajeto de agressões ou até mesmo de morte.
No público feminino, além dos segmentos etário, étnico-racial, socioeconômico e de identidade de gênero, dentre outros marcadores, percebem-se discrepâncias que impedem a interrupção dos episódios de violência, sejam eles cíclicos ou fatais. Entre as mulheres negras e as mulheres trans, por exemplo, encontram-se mais desigualdades no acesso a várias políticas públicas; além disso, elas compõem a população que tem o direito à vida e à dignidade ainda mais aviltado.
O Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), aponta 145 assassinatos em todo o país para aquele ano, o que representa uma média de 12 mortes por mês. Sobre as vítimas desse perfil, pessoas entre 13 e 39 anos são a maior parte delas, contabilizando 81% do total de óbitos. No recorte estadual, o Paraná ocupa a quarta posição dentre as unidades federativas que mais matam pessoas trans e travestis. Em 2023, foram registrados 12 assassinatos no Estado, o dobro das mortes contabilizadas no ano anterior.
Uma das causas de maior contundência sobre o fato de decidir sobre a vida, o corpo, a liberdade e a dignidade de mulheres deve-se à cultura patriarcal da qual somos fruto. A diferença de gênero vem revestida de teorias que se desdobram de dogmas religiosos, perspectivas científicas machistas, entre outras práticas que se apresentam arraigadas em gerações nas nossas famílias. Em nome de tradições e de preceitos morais, homens se apropriam do direito à vida de mulheres, ceifam suas vidas com repercussões para seus filhos e filhas, seus pais, seus amigos e amigas, suas relações no trabalho. Entre as consequências estão as emocionais – como o luto, a insegurança e o medo -, assim como as econômicas, pois muitas dessas mulheres são arrimo de famílias, que ficam devastadas em todos os sentidos.
Nesse trágico cenário, compreendemos que uma das possibilidades de mudança se dá pela via educacional, com a ampliação de consciência sobre determinantes sociais e culturais que incidem sobre a legitimação e a naturalização da violência, sobre a forma como temos administrado as relações de gênero e as interações familiares. O modo como temos gerido a educação de todas as nossas crianças e adolescentes pode ser um ponto de partida para desenhar possibilidades mais saudáveis de respeito às diferenças, promoção de espaços mais seguros para todas as pessoas, políticas afirmativas de inclusão das mulheres em todos e quaisquer espaços sociais, como no contexto profissional e de representação.
Ainda que as mulheres sejam a maioria em vários espaços sociais, como em algumas profissões, contextos familiares e domésticos, cuidados com saúde e na educação, por exemplo, o preconceito de gênero se evidencia com menos-valia salarial, participação reduzida, discriminação e tantas outras formas de violência patriarcal. Verificamos que a violência contra a mulher, em suas diversas manifestações, tem raízes históricas e culturais.
A Psicologia, como ciência e profissão, tem o compromisso de combater as violações de direitos humanos, o que envolve o enfrentamento de violências, dentre as quais está a violência contra a mulher.