A Psicologia, que está inserida nos diversos contextos da sociedade e que possui a expertise para atuação em situações de emergências e desastres, se vê frente a um cenário de catástrofe mundial sem precedentes. Um dos espaços onde está inserido o saber da Psicologia é na Política Pública de Assistência Social, que por sua vez está entre os serviços essenciais, indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da sociedade.
Em meio a um cenário nacional de desalento e aflição pelo número crescente de contágio e mortes em nosso país em decorrência da pandemia do novo coronavírus (Covid-19), bem como seus reflexos nas questões sociais, vimos por meio deste texto dialogar e expressar nosso apoio a colegas Psicólogas(os) atuantes na Assistência Social. O Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR), por meio das Comissões de Psicologia na Assistência Social (CPAS), tem acolhido as demandas trazidas pelas(os) profissionais do SUAS, dialogado alternativas de apoio e fortalecimento da categoria e, aliado a demais publicações pertinentes de orientação já publicadas, objetiva ampliar as reflexões acerca da prática profissional da Psicologia em tempos de pandemia no SUAS.
Trabalhadoras e trabalhadores vêm sofrendo com o desmonte político do SUAS há algum tempo. Tal política, ainda jovem, é assim como seus usuários: um símbolo de resistência aos ataques, na tentativa de destruição de anos de luta por direitos daqueles e daquelas que, por inúmeras razões, buscam o acesso às políticas de assistência social enquanto um direito de todo o cidadão que dela necessitar, princípio básico de atuação e manutenção da dignidade humana dentro desta política, sem divisão ou separação por credos, sexo, raça ou mesmo a já extinta declaração de pobreza.
Como atuantes frente à proteção social, temos observado a constante situação de sofrimento para além da doença física, mas, ainda, pelos resquícios que a pandemia lança para a condição econômica, resultando em déficits no acesso aos benefícios e a consequente ampliação da desproteção social dos públicos em maior condição de vulnerabilidade.
Observamos, ainda, junto ao aterrorizante aumento no número de casos de infecção pelo vírus causador da Covid-19, o crescente número de mortes, dentre estas de colegas profissionais atuantes na Política Pública de Assistência Social em diversas regiões do país. Assim, destaca-se a necessidade imediata de ampliação da proteção individual e coletiva dos atores desta política, para de fato estarem aptos a garantir a proteção da população atendida.
Assim, a garantia da saúde da(o) trabalhador(a) também é direito inviolável, devendo ser cumprido por empregadoras(es), que podem ser responsabilizadas(os) por qualquer dano à saúde cometido por descaso ou não cumprimento da lei. A constituição Federal de 1988, no artigo 6, caput, garante à(ao) trabalhador(a) sua segurança de trabalho, saúde, entre outras provisões legais: “Art. 6º – São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
Às(Aos) gestoras(es) ou responsáveis por instituições tipificadas no SUAS, cabe ressaltar que essa política é construída sobre a premissa da horizontalidade de trabalho, pautada pela construção de diálogo entre gestoras(es) e trabalhadoras(es) para criação e implementação de políticas públicas de qualidade. Foi desta forma democrática e participativa que foi criada a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) de 1993, CAPÍTULO III, Art. 6o: “A gestão das ações na área de assistência social fica organizada sob a forma de sistema descentralizado e participativo, denominado Sistema Único de Assistência Social (SUAS)”. Respeitando a autonomia profissional das equipes de trabalho do SUAS, é dever da(o) empregador(a) garantir as condições de trabalho adequadas, neste caso em específico da Covid-19, respeitando as orientações de órgãos como Ministério da Saúde, OMS, Secretaria de Saúde e determinações asseguradas pelo Estado, como o Decreto Estadual nº 4230/2020 do Governo do Paraná, que dispõe sobre medidas de enfrentamento à Covid-19.
Cabe citar a Carta de Recomendações sobre a atuação da profissão diante da pandemia do coronavírus do Conselho Federal de Psicologia (Ofício CFP nº 040/2020) destinada a gestoras(es) públicas(os), empregadoras(es) de Psicólogas(os) e usuárias(os) de serviços psicológicos. O documento visa recomendar às(aos) gestoras(es) que sejam disponibilizados em todos os equipamentos as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) necessárias para que a prática profissional da Psicologia seja na modalidade a distância. Entretanto, para os casos que se configurem como emergenciais, que necessitem de atendimento presencial, é solicitado que sejam fornecidas todas as condições adequadas de prevenção e proteção contra a Covid-19, de acordo com os critérios das autoridades sanitárias.
Reitera-se a função dos sindicatos das(os) Psicólogas(os) como entidades responsáveis pela defesa dos direitos e dos interesses da categoria em cada esfera federativa. Condições de trabalho, qualidade do ambiente laboral, jornada de trabalho, proteção adequada, aprovação de medidas que beneficiem as trabalhadoras e os trabalhadores são as funções das entidades sindicais. Assim, reforça-se a disposição da classe trabalhadora em fortalecer as instituições que competem em suas atribuições garantir melhor condições de trabalho a Psicólogas e Psicólogos.
É sabido que as demandas primárias da Assistência Social se intensificaram, tendo em vista a necessidade da população e sua vinculação com esta política que lhe permite a orientação e acesso aos direitos. Têm acessado os equipamentos da Assistência Social tanto o público já vinculado quanto uma parcela populacional antes autossuficiente no acesso a bens, serviços e direitos sociais, mas que devido à pandemia passou a ser desprotegida, caracterizando um aumento no número de atendimentos e reafirmando a importância do Sistema Único de Assistência Social.
A população em geral tem buscado por orientações objetivas e específicas, mas, devido à situação de vulnerabilidade, encontram limitações no acesso à informação: muitas famílias não possuem acesso à internet e telefone e, assim, recorrem aos equipamentos de referência para auxiliá-las no acesso a direitos, seja para o recente e famigerado auxílio emergencial ou simplesmente para entender à profusão de critérios e burocratizações dos benefícios. Ainda, registra-se a busca pelo benefício eventual de alimentação básica, amplamente observada, tendo em vista a histórica precarização do trabalho e a informalidade que abrange grande parcela da população que, ao enfrentar as medidas de contenção da proliferação do vírus, resultou em um cenário no qual milhares de famílias encontram-se sem renda e sem direitos trabalhistas que lhes garantam o mínimo para sobrevivência neste momento.
Impacto financeiro e incerteza de renda têm sido fatores geradores de ansiedade na população, o que torna necessário trabalharmos na desburocratização do acesso aos benefícios eventuais. No entanto, em tempos de retrocessos na luta por direitos, somos assombradas(os) diariamente pelos fantasmas do nosso passado assistencialista, limitado à caridade e à benesse, condições essas que arriscam a atuação profissional de Psicólogas(os), Assistentes Sociais, Pedagogas(os), dentre outras áreas. Arriscam ao evidenciar uma intenção eleitoreira que se apropria deste campo de trabalho com a intenção de distorcer a atuação na Assistência Social, às custas do desmonte das políticas públicas (crime eleitoral, previsto no código eleitoral brasileiro).
Sobre a atuação profissional, mesmo antes do cenário da pandemia e seus agravos nas condições socioeconômicas, frequentemente nos deparamos com resquícios das atuações de caráter assistencialista voltadas às populações em situação de vulnerabilidade. Psicólogas(os), Assistentes Sociais e Pedagogas(os) atuantes no SUAS seguem ainda sujeitas(os) a ter sua atuação profissional confundida com benevolência, tanto pelas esferas governamentais quanto pela comunidade em geral. Com o aumento das problemáticas sociais, especialmente nas condições econômicas das(os) usuárias(os) do SUAS, esta relação tende a se intensificar no que diz respeito à substituição das atividades cotidianas das(os) profissionais nos serviços pela sua participação em ações assistencialistas promovidas pelas gestões.
Registram-se as publicações da Nota Técnica CRP-PR nº 001/2020, que orienta a(o) Psicóloga(o) sobre o atendimento psicológico nas políticas públicas e instituições privadas, diante da pandemia da Covid-19 e da Nota Técnica CRP-PR nº 002/2020, que orienta a(o) Psicóloga(o) sobre atuação nas políticas públicas de saúde e assistência social, diante da pandemia da Covid-19 – ampliando os discursos de trabalhadores(as) do SUAS para a correta atuação profissional. Por muito tempo trabalhamos para compreender as especificidades da(o) profissional de Psicologia neste sistema, e todo o desvio de função certamente acarreta a precarização do atendimento às(aos) usuárias(os) dos serviços, bem como o sucateamento da política e a desqualificação da atuação da(o) profissional de Psicologia neste campo.
Embora estejamos absorvidas(os) pelas demandas declaradas da população que tem acessado os equipamentos públicos, é importante reforçar que a política pública de assistência social nasceu e se fortaleceu pela movimentação popular e que se constitui como essencial não apenas pela distribuição de benefícios eventuais, mas pela proteção social como um todo, pela busca da garantia de direitos e pela luta contra todas as formas de violência e opressão.
As desproteções sociais já vinham em uma crescente: podemos exemplificar aqui a flexibilização das leis trabalhistas e o corte de recursos na assistência social. Desde então, já observamos regressos no enfrentamento às vulnerabilidades, como o aumento do número de pessoas em situação de rua e o crescimento dos dados de violência contra a mulher. Nesse sentido, é essencial lembrarmos, no que tange ao confinamento domiciliar, principal medida recomendada para a contenção da pandemia, que estamos falando de uma situação que têm intensificado as vivências de violência enfrentadas diariamente na política pública de assistência social. Tal colocação reforça a importância de não desviar das diretrizes de atuação profissional no SUAS mesmo nesta situação de emergência, compreendendo que não apenas as condições econômicas são afetadas, mas que as experiências advindas da vulnerabilidade possivelmente serão agravadas.
Como vemos, o público atendido provavelmente terá sua situação agravada com a pandemia, assim como novos casos vêm surgindo em decorrência do agravamento de questões sociais. Sendo assim, as equipes multidisciplinares enfrentam um novo desafio: desenvolver estratégias de intervenção no atendimento a essas demandas, em um momento em que respeitar o distanciamento social e outras medidas de proteção contra a Covid-19 são essenciais para garantir a sobrevivência das(os) próprias(os) trabalhadoras(es) e de seus(suas) usuários(as). Todavia, respeitando o compromisso profissional e compreendendo que, assim como foi necessário na elaboração do Plano Individual de Atendimento (PIA), do Plano de Acompanhamento Familiar (PAF), dentre outros, é necessário pensar cada caso individualmente, bem como as necessidades específicas para cada atendimento.
Faz-se essencial, então, a elaboração de planos de contenção que vislumbrem além dos benefícios eventuais, mas que contemplem a continuidade alternativa das proteções nos três níveis de atenção. É necessário, ainda, abranger a informação e a qualificação das(os) profissionais a fim de evitar a ansiedade frente ao inesperado e ao desencontro de informações. Assim, o diálogo entre gestão, vigilância socioassistencial e profissionais da linha frente dos serviços socioassistenciais é primordial na elaboração dos planos de contenção dos municípios, uma vez que juntos é possível mapear com maior precisão as fragilidades, potencialidades e necessidades de atenção de cada território.
Considerando possíveis estratégias de continuidade aplicadas aos níveis de proteção elencados no SUAS, é pertinente apontar formas cabíveis de continuidade dos trabalhos. A Proteção Social Básica contempla o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos que, embora sua natureza seja de intervenção em grupo, vem como complemento às metodologias de acompanhamento do Programa de Atenção Integral à Família (PAIF). Tais estratégias objetivam que a família e os indivíduos sigam em acompanhamento que, mesmo remoto, torna-se uma garantia de continuidade deste serviço. A suspensão da realização de atividades em grupo para evitar aglomerações não significa, portanto, a descontinuidade dos acompanhamentos, a proteção deve continuar no sentido de fornecer acolhimento e informação ao usuário e dar os direcionamentos para evitar o agravamento de violações.
Na Proteção Social Especial, por sua vez, cujo público contempla pessoas em situação de rua, mulheres em situação de violência, crianças em situação de risco, dentre outras violações de direitos, é necessária uma atenção especial frente às medidas tomadas para contenção da proliferação do vírus. É preciso sinalizar a estes indivíduos a continuidade dos acompanhamentos de forma individualizada e direcionada para evitar a ansiedade frente a uma possibilidade agravada de desproteção. O acolhimento, a escuta, o direcionamento e a orientação são tecnologias do atendimento e acompanhamento do SUAS que podem ser adaptados para garantir a segurança do usuário em tempos de pandemia.
No que diz respeito à Proteção Social de Alta Complexidade, entende-se que nos serviços de acolhimento institucional o trabalho é diário e constante em todos os turnos. Porém, com a particularidade da pandemia, novas estratégias precisam ser pensadas para garantir o isolamento social de usuários e usuárias, como o caso de crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, pessoas em situação de violência, entre outras. Nos casos de visitas familiares, reforçamos a importância do cuidado com a higiene e do distanciamento seguro entre os entes, bem como orientações necessárias e pertinentes em uma visita assistida. Ainda, é compromisso ético e moral pensar o cuidado de quem cuida, como o caso de equipes de apoio como cuidadores(as) e auxiliares de serviço, garantir EPIs, protocolos de higienização, transporte e orientação constante. Tais medidas preveem a avaliação cautelosa e a evitação (quando possível) de aglomerações para reuniões de equipe, assim como o cuidado redobrado com a entrada e saída de pessoas nas instituições, envolvendo acolhidas(os) no planejamento das ações de cuidado.
É fato que a Assistência Social por si só não dará conta de atender a proteção da população. Neste sentido, uma comissão intersetorial é uma estratégia importante no enfrentamento às consequências desta pandemia, sendo necessária, então, a articulação com outras políticas públicas para garantir o menor impacto possível da pandemia nos mais diversos territórios. Considerando a intersetorialidade como parte do SUAS, é fundamental conhecer a rede local, a lógica de funcionamento das comunidades em que atuamos e as particularidades do público que está recebendo a atenção, pois, mesmo dentro de um mesmo município, as particularidades de cada território podem influenciar no modo de construção dos planos de contenção locais.
Entendemos que um dos campos de atuação da Psicologia é o sofrimento humano. A Psicologia na Assistência Social, por primazia, trabalha com as desproteções sociais e a fragilidade das relações que resultam nas mais diversas formas de sofrimento psíquico. A atuação desta(e) profissional nas equipes multiprofissionais busca garantir a leitura das variadas situações de vulnerabilidade de forma ampla e atenta às especificidades do ser humano. Atuar diante da emergência do outro exige da(o) profissional uma organização mínima. É necessário que as(os) Psicólogas(os) estejam atentas(os) às diretrizes que norteiam a profissão, tenham uma atuação qualificada em consonância com a regulamentação da Política Pública de Assistência Social, e estejam alinhadas(os) com a rede de atenção do território em que atuam para contribuir na qualidade da atenção ao usuário(a) do Sistema Único de Assistência Social, evitando a revitimização deste sujeito e favorecendo sua autonomia de forma eficaz.
Por fim, em dias tão difíceis e de tanta complexidade, precisamos nos unir enquanto categoria profissional na luta pelas vidas brasileiras, prezando pela democracia, pelo SUAS e pela garantia de vida, especialmente daquelas(es) que se encontram em situações de vulnerabilidade social. Se puderem, fiquem em casa. Contando com a colaboração dos gestores e gestoras para dialogar com seus profissionais, o CRP-PR está enviando aos municípios um ofício com colaborações, sugestões e orientações quanto à responsabilidade de cada gestão.
Para qualquer dúvida, o CRP-PR e suas Comissões de Psicologia na Assistência Social estão à disposição de todas e todos que necessitem de orientação e queiram ampliar o diálogo e construir coletivamente.