O CRP-PR deseja a todas(os) as(os) trabalhadoras(os) um feliz Dia do Trabalho. Em especial às(aos) Psicólogas(os), que contribuem para a construção de uma sociedade melhor!
Neste Dia do Trabalho, relembre uma entrevista publicada na Revista Contato em 2017!
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Entre as empresas mais cobiçadas por jovens estão as gigantes da tecnologia, que oferecem benefícios como tempo livre para jogar videogame, áreas de descanso e brincadeiras, enfim, não controlam a jornada de trabalho como as organizações mais tradicionais. Longe de oferecerem liberdade, no entanto, o que estas empresas conseguiram foi atingir o mais alto grau de sequestro da subjetividade. “Estas empresas já possuem a alma do sujeito. Eles já estão tão identificados com a cultura organizacional que não é preciso controlar seu tempo”, explica José Henrique de Faria, economista e professor titular da Universidade Federal do Paraná.
Segundo Faria, o processo de sequestro da subjetividade é aquele em que o trabalhador passa a se identificar totalmente com a empresa, de modo a empregar mais que apenas a sua força de trabalho. “Sequestro da subjetividade é a forma mais sutil e desenvolvida de controle que as organizações utilizam sobre os seus trabalhadores e sobre o processo de trabalho. É uma forma planejada e executada através de programas na área de gestão de pessoas. Estes programas não se referem ao sequestro propriamente dito, mas fazem exatamente isso”.
A reportagem da Revista Contato conversou com José Henrique de Faria sobre o processo de sequestro da subjetividade e as relações de trabalho na atualidade. Faria, que possui doutorado em Administração pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado pela Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, falou também sobre as consequências da terceirização para os trabalhadores e empresas e sobre o papel da Psicologia Organizacional e do Trabalho: “o Psicólogo teria que ter a condição de ser o analista crítico do próprio sistema em que o sujeito está inserido para ser capaz de fazer uma intervenção adequada”, opina. Confira abaixo a entrevista completa.
Contato: Como se desenvolve o processo de sequestro da subjetividade nas empresas?
José Henrique de Faria: Quando a pessoa estabelece um contrato de trabalho com qualquer tipo de organização, coloca no processo sua força de trabalho, que é a capacidade física e mental. Estas capacidades não se distinguem, ou seja, estão ao mesmo tempo no mesmo sujeito. Historicamente, as empresas procuram controlar o processo de trabalho tendo em vista a produtividade e os resultados. Assim, elas desenvolveram um controle físico do trabalho, como tempos de movimentos, cumprimento da jornada, uso de uniforme, etc. Com o desenvolvimento dos conhecimentos da Psicologia aplicados à administração, que não foram, na maioria dos casos, desenvolvidos para isso, o ataque à subjetividade foi se tornando cada vez mais frequente e desenvolvido.
A organização não interessa por controlar qualquer subjetividade, mas aqueles elementos que interferem direta ou indiretamente no processo de trabalho. Aí começam a aparecer os primeiros programas na área de recursos humanos, com discussões sobre meritocracia, comprometimento, liderança, etc. As empresas passam a investir cada vez nestes programas ao se darem conta de que o controle da subjetividade resulta em aumento da produtividade. Com isso se desencadeia todo um processo que eu chamo de controle da subjetividade.
Começam a se desenvolver, então, programas que não controlam apenas a subjetividade, como o conhecimento, os sentimentos e as relações sociais. A empresa quer mais, ela quer sequestrar! Ela quer tomar para si a subjetividade além do processo de trabalho. Ou seja, é o comprometimento, a identificação com o chamado DNA da empresa, a ideia da grande família organizacional.
Então o sequestro se concretiza quando o trabalhador dedica mais que apenas algumas horas de trabalho à empresa?
Sim, quando o controle da subjetividade do sujeito vai além da jornada. Então a pessoa sai da empresa e continua pensando no trabalho, usa o final de semana para trabalhar, trabalha no aeroporto, etc. Especialmente hoje, com o celular, tablet, computador, elas ficam o tempo todo ligadas na empresa. Isso é uma subjetividade sequestrada. A empresa pretende ter o monopólio da sedução. Ela quer o indivíduo na semana, mas também oferece programas de final de semana, como competições, atividades em que se pode levar a família, de modo que ela vai se apropriando do tempo livre.
Existem processos de engajamento de funcionários que não sequestrem a subjetividade?
Não, o sequestro da subjetividade do sujeito é inerente aos programas de engajamento.
Há como estar empregado em uma empresa e não ter a subjetividade sequestrada?
Sim. Claro que a subjetividade é naturalmente controlada no processo de trabalho, mas há pessoas que cumprem sua jornada, saem da empresa e só voltam no dia seguinte. O fato de a pessoa empregar a subjetividade no trabalho não significa que ela seja sequestrada. O sequestro se dá num nível em que há uma identificação do sujeito com a empresa. Quando ela consegue sequestrar, desenvolve-se a Síndrome de Estocolmo, que é a identificação do sequestrado com o sequestrador. O sequestrador passa a ser idolatrado e a pessoa não se percebe como sequestrada. Esta é a grande sutileza do sequestro. Mas, o trabalhador pode fugir deste sequestro.
Se o sequestro da subjetividade leva a uma identificação completa, as pessoas deixam de ter uma visão crítica?
Como toda a dialética, você tem um problema: ao mesmo tempo em que você controla a subjetividade, e isso resulta em aumento da produtividade, a empresa perde a capacidade de criatividade e crítica do sequestrado. O problema é que não há desenvolvimento sem crítica. Aí a empresa começa a criar programas de incentivo à crítica. Mas como ela quer manter as duas coisas ao mesmo tempo e isso não é possível, a crítica passa a ser disciplinada, com regras de não exposição e manutenção do anonimato, ou, então, tem-se apenas a crítica permitida, ou seja, aquela que é aceita. A crítica mais contundente é colocada de fora. E, se há um processo de crítica, a empresa vai naturalmente mandar o sujeito para a rua.
Então, como o trabalhador pode fugir do sequestro sem sair do sistema, ou seja, mantendo seu emprego?
A pessoa vai receber suas tarefas e cumprir da melhor maneira possível como resposta em função do salário que recebe. Ela pode muito bem viver sem ter identidade com a empresa. Não precisa vestir a camisa, amar a empresa, nem se dedicar para além da jornada de trabalho. Ela pode desenvolver um bom trabalho sem colocar o seu emocional. Ocorre que qualquer um de nós coloca energia emocional nas relações e local de trabalho. Isso é fundamental para não termos problemas de saúde física e emocional. O trabalho precisa te dar um grau de satisfação. O que o trabalhador deve fazer é conviver com isso tomando consciência de que ele não precisa ter uma relação amorosa com a empresa, até porque esta é uma relação platônica: você ama a empresa, mas a empresa não te ama. Isso demanda uma consciência crítica das pessoas.
Entregar somente o que trabalho exige sem se dedicar mais não pode causar prejuízos à carreira?
O que a empresa quer é que você dê resultados. Você pode dar o resultado sem necessariamente se entregar para ela. Você pode estar altamente identificado com a empresa, mas se não der resultados vai ser dispensado de qualquer forma.
Atualmente, as relações de trabalho estão em evidência devido a reformas como a que permite a ampla terceirização das atividades-fim da empresa. Como o senhor vê esta questão sob a ótica do sequestro da subjetividade?
A terceirização é uma agressão perversa aos direitos históricos dos trabalhadores. No atual momento em que o Brasil está, com alto número de desempregados, investe-se contra os direitos do trabalhador, pois isso trará uma redução nos custos de mão-de-obra. No entanto, ao não estabelecer vínculo, a empresa vai perder o envolvimento das pessoas com o trabalho. Ou seja, com os trabalhadores terceirizados não há sequestro da subjetividade, uma vez que eles não se envolvem com a empresa por muito tempo. O sequestro vai se operar nos cargos estratégicos, de gestão e liderança, que são responsáveis diretos pela produtividade e fazem a gestão dos terceirizados. Estes cargos não serão terceirizados, pois seria ruim para a empresa e o capitalismo não se tem mostrado estúpido para tomar decisões ruins. Serão terceirizados os trabalhadores de chão de fábrica, que fazem um trabalho que pode ser substituído por qualquer outra pessoa. Exatamente a parte mais fraca da sociedade.
Dentro das empresas, a Psicologia Organizacional e do Trabalho atua tanto em prol da organização como dos trabalhadores. Como o senhor vê esta relação do ponto de vista ético?
Eu vejo grande parte dos Psicólogos Organizacionais como operadores do sequestro. Poucos têm uma visão crítica do trabalho. E a ação do Psicólogo se concentra quase em uma relação clínica, embora seja organizacional. Ele olha o indivíduo como indivíduo, isolado da própria realidade. Claro que isso não é para todos os Psicólogos. Mas, em geral, eles são operadores. Havia uma frase que dizia que o pessoal da área do RH era o algodão entre cristais. Isso é falso. Eles são o próprio martelo do cristal. Porque eles estão de um lado: o da organização. Então eles são empregados para promover o controle e o sequestro da subjetividade. O que o Psicólogo mais crítico pode fazer? Na frente dele há um trabalhador com demandas, carências, necessidades, problemas… Atendê-lo não precisa ser sinônimo de manipular. Um exemplo [em que a Psicologia atuou do lado da empresa] foi um caso em que uma pessoa apresentava diversos sintomas de estresse e estava somatizando. A Psicóloga responsável entendia que ele era totalmente responsável por aquilo. Ela dizia: ‘você não se trata, você não se cuida’. Conversando com esta pessoa, que foi parar no hospital e acabou fazendo uma cirurgia de úlcera, ele disse: ‘estou estressado porque não consigo dar conta das metas, porque cada vez mais eles tiram gente da minha equipe e aumentam a minha meta. Eles não me dão condição, eu estou estressado, eu fico no trabalho porque senão não dou conta’. Só que isso não foi visto pela Psicóloga que estava tratando do caso. Ela só via aquele sujeito como se fosse uma pessoa que não tomava conta de si mesmo, não se cuidava, não fazia tratamento, dormia mal, etc. Então ela isolava o indivíduo de todas as condições que fizeram com que ele estivesse sofrendo. É como se o trabalho não gerasse o sofrimento e o sofrimento fosse uma responsabilidade do indivíduo. O Psicólogo teria que ter a condição de ser o analista crítico do próprio sistema em que o sujeito está inserido para ser capaz de fazer uma intervenção adequada. Mas, são raros aqueles que se posicionam criticamente em relação a esta função de reprodução do discurso da empresa. Eles próprios são sequestrados e operadores do sequestro. Não significa que o sequestrador seja um sujeito assumido. Ele faz isso porque reproduz aquela lógica da organização que ele assume para si. A maior parte das pessoas que a gente entrevista não tem consciência. Faz porque acha que isso é assim mesmo.
Para assistir
Para ler
O amor sem escalas, 2009, Drama/Comédia, 109 minutos, dirigido por Jason Reitman
O filme relata a história de um executivo (vivido por George Clooney) cuja função é demitir pessoas. Ele executa esta função com muita frieza e gosta do seu trabalho. Por isso, José Henrique de Faria indica este filme como um exemplo do sequestro da subjetividade operado nos executivos.
Poder, controle e gestão
José Henrique de Faria
Editora Juruá, 2017
Análise crítica das teorias e práticas organizacionais
Organização de José Henrique de Faria
Editora Atlas, 2007
Disponível para download aqui.