O caminho de uma pessoa em sofrimento mental – incluindo aqueles decorrentes do uso abusivo de álcool e outras drogas – não é linear. É como um jogo de tabuleiro, com idas e vindas, diferentes etapas singulares para cada sujeito, no qual se objetiva, em última instância, a desinstitucionalização e a inserção plena na vida em sociedade, no território. A Reforma Psiquiátrica brasileira, instituída legalmente pela Lei n° 10.216/2001 e regulamentada por Decretos e Portarias posteriores, representou o avanço de muitas “casas” do tabuleiro.
Mas, nos últimos cinco anos, desmontes sistemáticos funcionaram como cartas de revés, aquelas que obrigam a regredir no jogo. A Portaria n° 596/2022, publicada em março, é ainda mais grave: ao revogar uma série de artigos das Portarias de Consolidação GM/MS nº 5 e 6 de 2017, as quais regulamentavam os programas de desinstitucionalização, a portaria reverte uma lógica de fechamento de leitos em instituições asilares e drena o financiamento de uma importante etapa da desinstitucionalização: os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT). Divididos em categorias 1 e 2, dependendo da gravidade da situação e a demanda de cuidado, SRT são espaços com características que se aproximam de um domicílio convencional, para até 10 usuárias(os) e com acompanhamento multiprofissional da equipes dos CAPS. Uma casa a mais no tabuleiro, em direção ao lar.
De acordo com o Psicólogo Maurício Marinho Iwai (CRP-08/IS-593), representante do Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR) no Conselho Estadual de Saúde do Paraná, esta não é a primeira vez que o governo federal modifica e descaracteriza os SRT. Já em 2017, a obrigatoriedade de instalar tais serviços em áreas urbanas foi substituída por mera “recomendação”. “A gente criticou isso porque a ideia da desinstitucionalização é proporcionar o acesso à cidade. Se você vai construir uma residência terapêutica em uma área rural, o isolamento social da pessoa tende a continuar,” explica.
Depois, a Portaria nº 3.588/2017 alterou a lógica de distribuição do aporte financeiro fornecido pela Autorização de Internação Hospitalar (AIH), que migrava do hospital para o SRT quando a(o) usuária(o) era transferida(o) e passou a estar fixo no leito psiquiátrico, desmontando a lógica de fechamento destas vagas e mudança para uma política de cuidado em liberdade. A medida também provocou uma política de excesso de internamentos nas instituições psiquiátricas, uma vez que o repasse financeiro é vinculado à ocupação da vaga. Outras normativas, como a Portaria nº 1113/2021 da Secretaria de Estado da Saúde (SESA-PR), também vão nesta direção ao incrementar e complementar o valor das diárias dos estabelecimentos psiquiátricos. “O valor já era consideravelmente alto e foi ainda aumentado, e agora está em torno de 41 milhões de reais por ano, somente de recursos do Paraná”, conta o profissional.
Mesmo com o estrangulamento financeiro, a desinstitucionalização ainda acontecia devido à pressão do Ministério Público, que atuava para o cumprimento da Lei nº 10.216/2001 no que tange à saída das instituições asilares. Para o Sistema de Justiça, a lei deve se cumprir independentemente de quem financie este processo (sejam as esferas municipais, estaduais ou federais). A portaria 596 joga uma pá de cal nestes processos que, a duras penas, vinham funcionando em acordo com a Lei da Reforma Psiquiátrica.
“Os movimentos sociais vão precisar se articular bastante, cobrando de maneira bastante incisiva a partir de espaços de Controle Social”, destaca Maurício, lembrando que as Conferências de Saúde Mental, que acontecem em 2022 depois de um hiato de mais de uma década, são importantes espaços de articulação de propostas. Além disso, as Conferências de Saúde possibilitam a renovação das vagas e a participação da sociedade civil – a 17ª Conferência Nacional de Saúde será precedida por etapas municipais, que deverão acontecer entre novembro de 2022 a março de 2023. Estabelecer as prioridades a serem apontadas aos próximos governos, após anos de desmonte de uma rede que tanto havia avançado, será a função dos movimentos sociais e entidades da sociedade civil, de modo a fortalecer, uma vez mais, toda a RAPS.
Apagão de dados e gerenciamento privado de CAPS
As fragilidades da RAPS vão além do desfinanciamento. O Paraná e alguns outros Estados brasileiros passam também por um apagão de dados das pessoas asiladas como condições de saúde, vínculos familiares, idade, gênero, cor e raça – e até mesmo o número de pessoas internadas é incerto.
Além disso, o gerenciamento de alguns equipamentos está a cargo de entidades privadas, em convênio com o município ou o governo estadual, e desvinculado da rede: uma situação assumida de maneira provisória para agilizar as desospitalizações, mas que já se prolonga há muitos anos. “São serviços de gestão indireta, o que dificulta o trabalho em rede e a parceria necessária do CAPS com a residência terapêutica. Então também temos dificuldade de acompanhar o processo de desinstitucionalização, que não termina quando a pessoa sai do hospital psiquiátrico”, afirma o Maurício Iwai. “Importante salientar que os serviços especializados contratados pelo Estado são destinados à reabilitação psicossocial, mas diferem dos Serviços Residenciais Terapêuticos no sentido de que são instituições privadas, contratadas para prestação de serviços.”
Ainda há trabalhadores da saúde mental que resistem, que se colocam como um contraponto à lógica biologizante, individualizante e mercantilizadora das relações. É no sufocamento que a gente bate o pé no fundo para tomar ar. O impacto [do desmonte] é o que também vai tecendo essas redes de apoio, tanto entre trabalhadores como também usuários e a comunidade.
Psicóloga Dayene Patrícia Gatto Altoé (CRP-08/08342), trabalhadora do CAPS de Apucarana
Resistência pela liberdade
Na opinião da Psicóloga Dayene Patrícia Gatto Altoé (CRP-08/08342), que atua há cerca de 20 anos no SUS e atualmente está alocada em um CAPS de Apucarana, o desmonte da RAPS não é fortuito: faz parte de um projeto de sociedade assentado em uma lógica manicomial que isola as diferenças, desconsidera as desigualdades sociais e atribui o adoecimento unicamente ao indivíduo. “Isso está, na verdade, escancarando uma lógica existente na sociedade, que centraliza o poder na medicina e nos complexos médicos, além de uma crescente centralidade religiosa. A ideia de que a solução para os nossos problemas deve vir de um ser superior pode fazer com que a gente não se implique socialmente”, afirma.
A desmobilização social diante dos desmontes acontece também, na opinião de Dayene, por conta da imensa sobrecarga física e emocional de profissionais da ponta, destituídas(os) de adequadas condições de trabalho e muitas vezes cooptadas(os) por uma lógica de competitividade e individualismo, ao mesmo tempo em que carecem de planos de carreira e incentivos à educação continuada, por exemplo. “É mais fácil destituir direitos quando estamos ensimesmados, envolvidos nas nossas próprias questões e na luta pela sobrevivência.”
Ainda assim, tanto Maurício como Dayene mantêm o otimismo e a confiança de que o movimento contra-hegemônico é capaz de manter vínculos e, com isso, “dar sentido para o próprio trabalho, a partir de uma lógica emancipatória, igualitária, inclusiva, fazendo ainda, apesar de toda a política, o cuidado em liberdade”, nas palavras de Maurício.
Como profissional da saúde atuando na ponta, Dayene compartilha de sentimento semelhante: “A gente vê, ainda, muitos movimentos de oxigenação da atuação a partir de redes de pertencimento, da identificação com a Luta Antimanicomial e a Reforma Psiquiátrica. Ainda há trabalhadores da saúde mental que resistem, que se colocam como um contraponto à lógica biologizante, individualizante e mercantilizadora das relações. O desamparo nos adoece, mas buscamos fortalecimento nos pares. É no sufocamento que a gente bate o pé no fundo para tomar ar. O impacto [do desmonte], concreto e simbólico, é o que também vai tecendo essas redes de apoio, tanto entre trabalhadores como também usuários e a comunidade.”
Para saber mais e se engajar
Evento | Quando a crise bate à porta: manejos em saúde mental na clínica e na atenção psicossocial
Quando: 27 de maio, às 19h
Onde: Sede do CRP-PR Curitiba (Av. São José, 699, Cristo Rei) e online pelo YouTube
Inscrições para a modalidade presencial: www.crppr.org.br/quando-a-crise-bate-a-porta
Coletiva Antimanicomial Clap: reúne trabalhadoras(es), usuárias(os) e familiares em defesa das Lutas Antimanicomial e Antiproibicionista no Estado do Paraná.
Site: www.coletivaclap.wordpress.com
Instagram: @coletiva.clap
Saiba mais sobre a campanha: Vidas Lokas Importam! Por uma Luta Antimanicomial, Antirracista e Antiproibicionista em https://crppr.org.br/18m2022