Por Núcleo de Psicologia e Migrações (NUPSIM)
O tema dos deslocamentos territoriais de sujeitos de um contexto para outro é uma constante na história humana e o processo de globalização contemporânea intensificou e complexificou os fenômenos de deslocamento nas últimas décadas. Tem sido notável o crescente aumento das migrações forçadas, assim denominadas por suas motivações que envolvem crises humanitárias e ameaças à vida. Tendo como uma de suas principais características a fragilidade do momento de saída e a falta de perspectiva de retorno, o tema mobiliza constantemente debates sobre políticas públicas, saúde mental e Direitos Humanos. O Brasil, neste contexto global, é signatário dos principais tratados internacionais de direitos humanos, sendo um receptor importante de migrantes, pessoas refugiadas, solicitantes de refúgio e apátridas, condições migratórias que expressam uma diversidade de experiências e histórias.
Considerando a importância do país no fluxo migratório, há grande demanda pelo fazer de novas políticas públicas, que sustentem o acolhimento desses sujeitos, somadas ao pensar do contexto cultural e de suas consequências, tratando-se de um tema que constantemente questiona a construção social da cultura. O trabalho com migrantes e refugiados, neste sentido, apresenta em grande escala o aparecimento de novas demandas nos serviços de saúde, educação e trabalho atrelado ao olhar sensível para as demandas subjetivas e particulares dos sujeitos.
A diversidade, além de presente nas origens dos sujeitos migrantes, diz respeito também às regularizações jurídicas da migração e considera-se que os deslocamentos forçados são os que podem resultar em fatores mais expressivos de vulnerabilidade e barreiras no acesso a direitos. É importante relembrar que a legislação brasileira garante acesso a direitos básicos como saúde, educação e assistência social, conforme indicado na Lei de Migração (Lei nº13.445/2017) independentemente da situação migratória. No entanto, a efetivação destes direitos esbarra em fatores como a barreira linguística, a dificuldade de acesso da população migrante às informações sobre serviços e seus direitos, o frequente atravessamento da discriminação, uma vez que é comum o medo em procurar serviços básicos devido à constante estigmatização que sofrem durante o atendimento. A precariedade estrutural e institucional submetidas aos migrantes já anunciava a omissão do Estado brasileiro em garantir o acesso a direitos sociais básicos, situação que é evidenciada e constantemente escancarada pela dificuldade de acesso a serviços essenciais, longas jornadas de trabalho, má remuneração, moradias insalubres e situação migratória não regularizada. É frequente encontrar migrantes e refugiados morando em lugares sem infraestrutura. Por conta disto, migrantes e refugiados são considerados como população vulnerável no momento atual, uma vez que crises econômicas, políticas e sanitárias podem intensificar as vulnerabilidades vivenciadas por esses grupos.
Outro aspecto relevante é a realidade de migrantes que se encontram em abrigos e campos de refugiados. No Brasil, a maior concentração destes abrigos está na região norte do país e acolhem principalmente adultos e crianças venezuelanas. Nestes espaços, as dificuldades são imensas. Grande parte do trabalho é realizado por ONGs e pela sociedade civil, evidenciando mais uma vez a negligência do Estado em relação a essa temática. Organizações internacionais de saúde pública têm alertado acerca da vulnerabilidade deste grupo em meio à pandemia da Covid-19, particularmente quanto à moradia (residências ou abrigos superlotados), ao acesso à serviços de saúde e aos meios de subsistência. As reflexões aqui propostas sustentam-se na premissa de que se vivencia neste momento uma acentuação da estigmatização sofrida por este grupo, com fatores como xenofobia e racismo multiplicados. Somam-se a isso as dificuldades e barreiras no acesso às políticas públicas e na tendência governamental de culpabilização e negação de direitos à população migrante. Situações extremas e de vulnerabilidade social podem ter efeitos significativos na saúde mental, portanto é fundamental considerar esses impactos ao construir práticas de cuidado para esta população.
A restrição de entrada de imigrantes no Brasil e as consequências à população migrante e refugiada
O Governo brasileiro iniciou o processo de restrição excepcional e temporária de entrada de venezuelanos em território nacional em março deste ano (Portaria nº 120 de 17 de março de 2020). A medida, inicialmente adotada apenas para a Venezuela, posteriormente foi estendida a todos os países que fazem divisa com o Brasil em fronteiras e entradas aquáticas ou terrestres.
De acordo com as Portarias nº 120,125, 8 e 203 sobre a restrição de entrada de estrangeiros em território brasileiro, as diretrizes adotadas têm como base recomendações técnicas da Anvisa (nº 1/2020/SEI/GADIP-DP/ANVISA, de 17 de março de 2020), por motivos sanitários relacionados aos riscos de contaminação e disseminação da Covid-19. No princípio da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (VI caput do art. 4º da Lei nº. 13.675, de 11 de junho de 2018), permanecem mantidos os serviços de ações humanitárias transfronteiriças, mas somente aqueles previamente autorizados a funcionar com o aval das autoridades sanitárias locais. No que tange ao migrante que pretende solicitar refúgio, caso descumpra a portaria, poderá responder por “responsabilização civil, administrativa e penal do agente infrator; e a deportação imediata do agente infrator e a inabilitação do pedido de refúgio”.
Diante da publicação dessas portarias, alguns contrapontos importantes de violação de Direitos Humanos e as possíveis consequências para a população migrante devem ser considerados:
1) Violação de direitos. As portarias de restrição, citadas acima, discorrem sobre a possibilidade do migrante ser deportado imediatamente do Brasil, mesmo se estiver em situação de migração forçada. Essas portarias violam a Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017), na qual a deportação é prevista somente após a audiência com amplo direito à defesa ao migrante. Ao invés do Estado brasileiro realizar ações que visem à acolhida humanitária das pessoas que chegam no território, as ações estão direcionadas a impedir que elas busquem por proteção internacional no território brasileiro.
2) Xenofobia e racismo. De acordo com as Nações Unidas Brasil, o cenário de pandemia contribui também para o discurso xenófobo e racista. O medo de uma doença pouco conhecida pode ser ressignificado em ações que colocam o estrangeiro como responsável pela doença. Historicamente, migrantes tendem a ser estigmatizados, haja vista os atos xenófobos e racistas nos Estados Unidos em 2013 contra a população negra durante o surto de Ebola.
Discursos que têm como argumentação colocar os migrantes e refugiados como culpados pelo colapso na saúde e no sistema econômico se baseiam em premissas falsas, como traz o relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) (2018) ao discorrer sobre a importância socioeconômica do migrante e refugiado no país anfitrião. Iniciativas como o Projeto de Lei nº 1056/2020, em tramitação no Senado brasileiro, que visa à instalação de campos de refugiados nas fronteiras terrestres na tentativa de evitar a sobrecarga do sistema público, colocado aqui como uma consequência da inserção dessas pessoas na comunidade e, ainda, na perspectiva de combate a migrantes erroneamente colocados como “ilegais”, vão de encontro a uma narrativa xenofóbica. Projetos de lei como esse levantam algumas preocupações e evidenciam a necessidade do monitoramento e do debate na produção de políticas públicas relacionadas à população de migrantes e refugiados.
3) A restrição inicial à Venezuela. A restrição é bastante simbólica e controversa, tendo em vista os conflitos de ordem política e ideológica existentes entre os dois países. É possível, por conta disso, interpretar a medida de proteção à saúde como um pretexto para a legitimação de ações anti-imigração, tendo em vista o histórico de tensionamentos entre os países. Ademais, o deslocamento de venezuelanos se enquadra legalmente como migração forçada; sendo assim, essa população necessita de proteção internacional e tem em seu status migratório a garantia de atenção e atendimento. Em nota, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA relata que a crise epidemiológica pode se constituir como um fator de aumento do fluxo de deslocamento forçado, e, especificamente no caso da Venezuela, a comunidade internacional deve estar atenta às violações dos Direitos Humanos desse grupo.
4) Riscos para o futuro das migrações. Em princípio as restrições são temporárias, mas podem abrir um precedente para dificultar a entrada de migrantes e solicitantes de refúgio futuramente e, consequentemente, a atrofia da rede de atendimento a migrantes, impactando diretamente nas possibilidades de permanência dos migrantes no país.
Impactos do contexto na saúde mental de migrantes e refugiados
Em tempos de urgência e crise político-sanitária, a intensificação de processos já existentes de desamparo e vulnerabilidade psicossocial, como exposto acima, produzem demandas que concernem à saúde mental da população geral, manifestando-se de diferentes formas nas comunidades que a compõem. Em congruência com os Princípios Fundamentais do Código de Ética Profissional do Psicólogo (Resolução CFP nº 010/2005), é dever da(o) Psicóloga(o) zelar por uma atuação que leve em conta a responsabilidade social da profissão, analisando criticamente a realidade política, econômica, social e cultural que nos cerca. Além disso, faz-se necessária uma postura combativa em relação às formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão institucionalizadas.
No que diz respeito à população migrante, cabe às(aos) profissionais localizar as práticas que promovem a intensificação de vulnerabilidades em contexto de pandemia e suas consequências no bem-estar psicológico dos indivíduos e suas comunidades, sendo profissionais habilitadas(os) a produzir uma resposta adequada às demandas de cuidado, amparo e acolhimento.
Desta forma, através das contribuições desenvolvidas pela Fiocruz Brasília e pelo Comitê Permanente Interagencial (IASC), possíveis impactos do cenário pandêmico nos processos subjetivos e sociais da população migrante devem ser levados em conta no trabalho da categoria e dos demais serviços de atendimento, promovendo, desta forma, uma reflexão sobre as novas formas de organização político-institucional nestes novos tempos e suas consequências nos indivíduos e grupos em condição pré-existente de vulnerabilidade, a saber:
1) Receios, medos, dificuldades e solidão. Com a emergência da pandemia vislumbramos a criação de novos estigmas. Migrantes podem ter medo de sofrer discriminação em certos aparelhos de saúde por conta de narrativas xenófobas que surgem junto com o contexto viral, assim como apresentar dificuldades em descrever seus sintomas e compreender as recomendações médicas em língua portuguesa. Além disso, a exclusão social pela falsa associação da estrangeiridade à propagação do vírus é um potencial gerador de sofrimento, intensificado pela impossibilidade de união física com a comunidade, podendo deteriorar as redes afetivas pré-estabelecidas. Os espaços de convivência comumente utilizados pela população migrante, em contextos educacionais, culturais ou religiosos, são ressignificados como locais de risco de infecção.
2) Vulnerabilidade, frustração e angústia. A população migrante é particularmente vulnerável à violência e exploração no ambiente de trabalho, além de exercerem, em sua maioria, atividades laborais informais. A falta de garantia na manutenção de emprego ou de proteção jurídico-sanitária providenciada pelo Estado pode gerar um quadro intensificado de desamparo. Aumenta-se a dificuldade nas formas de subsistência e proteção de entes queridos presentes fora do Brasil, pela redução dos possíveis repasses de dinheiro a familiares e a dificuldade de acesso a meios de comunicação remotos. Estas dificuldades também geram impossibilidades na realização de processos de enlutamento, compartilhadas pela população geral em tempos de pandemia.
3) Reavivamento das lembranças de crise anteriores. Migrantes e refugiados podem ser originários de contexto de crise política, sanitária, ambiental e bélica — o contexto de pandemia pode fazer ressurgir estas relações traumáticas com a finitude, com a ameaça à existência de si e de entes queridos. Alguns destes podem, inclusive, ter passado por experiências de epidemias como cólera (epidemia no Haiti em 2010) e Ebola (diversos países do continente africano), revivendo experiências de medo e insegurança.
Rede e atuação da Psicologia a partir das especificidades
Como exposto anteriormente, a restrição de entrada de estrangeiros no território nacional como medida de prevenção contra a disseminação do coronavírus tem grande relevância para os estudos migratórios e para o trabalho com a população de migrantes e refugiados. Somadas a isso, as preocupações com os impactos do contexto sanitário, socioeconômico e cultural se tratando da saúde mental da população em questão são inúmeras. No Brasil, as Leis Orgânicas da Saúde (nº 8.080/90 e 8.142/90) preveem um sistema de saúde gratuito, universal e integral. Esta política nacional inclui o atendimento aos migrantes, independente da nacionalidade ou condição migratória, sejam documentados ou não, inclusive em situação irregular, como afirma a Lei de Migração. Ademais, a Política Nacional de Assistência Social também tem como princípio a universalização dos direitos sociais, visando a atender às necessidades básicas, garantir a proteção social e o auxílio em situações de grande complexidade, tal qual vivenciamos hoje. Diretrizes do IASC (2020) orientam que, em situações de emergências humanitárias, é necessária a organização de sistemas de suportes integrados e o fortalecimento de políticas já existentes. Frente a isso, as políticas de saúde e assistência são fundamentais quando refletimos a respeito dos aspectos psicossociais e de saúde mental no contexto de pandemia.
Assim, considera-se importante um movimento do poder público e uma sensibilização da categoria de Psicólogas(os), no sentido de ter “conhecimento das fragilidades sociais, ambientais, habitacionais, econômicas e estruturantes do seu território, a fim de se antecipar e, de forma intersetorial, se preparar e preparar os recursos e a própria população para os efeitos das contingências” (CFP, 2011). Os obstáculos que migrantes enfrentam são inúmeros, desde a dificuldade de acesso a serviços até barreiras administrativas, financeiras, legais e linguísticas, sem contar a ausência de políticas de saúde que levem em consideração as especificidades da migração (CEPEDES, 2020). Muitos desses são fatores que afetam a saúde mental da população migrante. Desta forma, o fortalecimento da atuação do Estado na questão migratória, a criação de políticas públicas para migrantes e ampliação do sistema de saúde (garantindo qualidade no ambiente de trabalho, manutenção de equipamentos e infraestrutura, fornecimento de bens de primeira necessidade) são medidas cruciais para a efetivação de direitos.
Com relação à atuação da(o) Psicóloga(o) no contexto de pandemia e as interfaces com a migração, levando em consideração as particularidades expostas anteriormente, nota-se a necessidade de sensibilização da(o) profissional da Psicologia inseridas(os) na esfera pública, em ONGs, organizações sociais, religiosas e educacionais quanto às questões de saúde mental e intervenções em crises, às especificidades dos aspectos culturais de saúde, bem como sobre rituais de luto em diferentes culturas. A capacitação destas entidades e profissionais da saúde para a especificidade deste cenário, assim como para com as especificidades migratórias, é crucial para que haja competência técnica. Ressalta-se, ainda, a importância de não contribuir na disseminação de estigmas e mitos para a população.
A(O) Psicóloga(o) deve também atentar-se às diferenças culturais acerca do processo saúde-doença, bem como reconhecer as vulnerabilidades sociais e psicológicas dos sujeitos migrantes. Frente a isso, sua prática deve respeitar os padrões técnicos e normas éticas estabelecidos no Código de Ética Profissional do Psicólogo, o qual aponta para responsabilidade social e de práticas não discriminatórias. Considerando os elementos aqui citados, é indicado que a rede de saúde para esta população seja constituída multidisciplinarmente, por meio do trabalho conjunto das diferentes instâncias que promovem cuidado e com os próprios migrantes.
Em uma analogia à dialética do singular-particular-universal, observa-se a necessidade do estabelecimento de práticas de cooperação e de solidariedade em diversos âmbitos. Em nível global, nos beneficiamos de práticas cada vez mais cooperativas. Já em nível singular, sentimentos de coletividade adquirem importância quando refletimos sobre a produção de cuidado e estabilidade psicológica. Portanto, estratégias de cooperação, formação e valorização de redes socioafetivas, além da procura por fontes de informações fidedignas, são estratégias-chave para um fazer ético em um momento de crise.
Por fim, percebe-se que, em um contexto como o da crise econômica, política e sanitária, os sujeitos são convocados a repensar e reformular alguns de seus pressupostos na vida cultural e social. Especificamente em se tratando da migração é perceptível que o contato entre a população hospedeira e os indivíduos migrantes elicia mudanças e ressignificações do próprio espaço cultural, pessoal e coletivo, seja para a abertura de novas perspectivas acolhedoras ou para o estreitamento das relações de preconceito. Enquanto profissionais e participantes da sociedade, é necessário considerar constantemente as práticas técnicas e culturais a partir de olhares sensíveis e que caminhem para formas mais adequadas de cuidado e efetivação de direitos. Para tal, a atenção aos Direitos Humanos e aos princípios éticos da Psicologia é fundamental.
Fontes:
CFP. (2011) Psicologia de emergências e desastres na América Latina: Promoção de direitos e construção de estratégias de atuação. Brasilia: CFP.
CEPEDES. (2020) Pessoas migrantes, refugiadas, solicitantes de refugio e apátridas. Saúde Mental e atenção psicossocial na pandemia COVID-19. CEPEDES.