A adoção não começa nem termina no encontro da criança ou adolescente com uma família. Antes da união entre pretendentes e abrigadas(os) – que no Brasil envolve uma discrepância devido ao perfil mais procurado (criança de até 3 anos, menina, branca e sem deficiências), fazendo com que haja mais famílias (cerca de 42 mil) que crianças (4,5 mil) na fila – existe um processo de destituição do poder familiar e de preparação de possíveis pais e mães para adoção; já em casa, a nova família precisa se desenvolver, adaptação que pode carregar peculiaridades de cada história, mas que nunca é fácil como se romantiza. Nesse cenário, ainda há de se pensar nas crianças e jovens que não encontram famílias substitutas nem voltam para as suas de origem, passando seus anos até a maioridade nos serviços de acolhimento institucional.
Não faltam aspectos a serem discutidos quando se fala do assunto, fundamentais para a garantia da proteção de crianças e adolescentes prevista na Constituição Federal de 1988 e regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que completa 30 anos em 2020 sendo alvo de ataques e desmontes. Neste Dia Nacional da Adoção (25 de maio), o Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR) ouviu especialistas para trazer alguns dos principais tópicos na atualidade no que concerne ao tema.
O Estatuto da Adoção
O Projeto de Lei n° 394/2017, conhecido como Estatuto da Adoção, tem como um dos principais objetivos acelerar o processo de destituição familiar e consequente adoção de crianças e adolescentes, reduzindo o tempo que passam nos serviços de acolhimento institucional aguardando uma nova família. O que pode parecer ser um avanço, no entanto, é visto com preocupação por especialistas.
A Psicóloga Dayse Cesar Franco Bernardi (CRP-06/008585), do Movimento de Proteção Integral de Crianças e Adolescentes, explica que o projeto, se aprovado, tiraria do ECA (Estatuto da Criança e Adolescente) seu caráter protetivo, de investimento nas famílias e da garantia dos direitos fundamentais, de saúde, de educação, de moradia, etc., como obrigações do Estado, deixando remanescer apenas as medidas socioeducativas. Além disso, as mudanças nos critérios de busca pela família extensa (quando pais e mães biológicas não têm condições de cuidar das crianças ) são pouco explicadas e podem impedir a criação de vínculos. “Eu não acho que a família biológica sempre é a melhor e que a adoção é ruim – eu mesma sou mãe adotiva. Mas, é preciso garantir que haja uma oportunidade para que estes vínculos aconteçam”, explica.
Um risco do Estatuto da Adoção, segundo Dayse, é a naturalização da pobreza e a culpabilização das mães e pais que entregam as(os) filhas(os) para adoção, classificando os casos de forma generalista como “negligência”. “O abrigamento deveria ser provisório pelo tempo necessário para resgatar a capacidade protetiva da família e de proteção integral da criança ou adolescente acolhido. A assistência social é um direito, não uma benesse”, avalia a Psicóloga. Além disso, a violação dos direitos maternos pode se revelar de forma ainda mais expressiva, como no caso das usuárias de drogas ou mulheres em situação de rua que, em alguns casos, têm as(os) filhas(os) retiradas(os) de forma sumária de suas guardas ainda na primeira infância. Estas(es) bebês, se levadas(os) à adoção sem a busca pela família extensa ou auxílio às mães, engrossam a parcela de crianças disponíveis na idade mais procurada e com menos representatividade nos abrigos: hoje, apenas 3,4% das crianças têm menos de 3 anos de idade, faixa etária que concentra 44% de possíveis adotantes.
“O Estatuto da Adoção vem sendo defendido por entidades como o IBDFAM [Instituto Brasileiro de Direito da Família] como política pública, mas nós precisamos ser refratários a ele, e o Movimento de Proteção Integral de Crianças e Adolescentes inclusive nasceu em resposta ao Estatuto”, destaca a Psicóloga.
A pandemia, as famílias e os serviços de acolhimento institucional
Já é fato conhecido que a pandemia da Covid-19 trouxe efeitos nos mais variados setores da sociedade. Mas, é nas camadas mais vulnerabilizadas que ela se faz mais presente. Quando o assunto é adoção, os efeitos já começam a aparecer nas famílias biológicas e nas unidades de acolhimento institucional, principalmente.
Com a estimativa de que milhões de pessoas podem ser arrastadas para a pobreza no contexto da pandemia, é cada vez mais evidente a necessidade do papel do Estado na garantia de condições de vida dignas às famílias para evitar a falta de alimentos, água e moradia, entre outros itens básicos. Neste sentido, a infância precisa ser priorizada nas ações do Estado, na opinião da Psicóloga Dayse Cesar Franco Bernardi. Ainda em suas casas de origem, crianças e adolescentes também ficam mais expostos a violências, o que ressalta o papel tutelar responsável do Estado e da sociedade dentro da tríade protetiva que envolve também a família.
Já as instituições de acolhimento, que tiveram avanços significativos de um modelo total e distanciado fisicamente das cidades para outro, inserido nas comunidades, também estão sofrendo as consequências do isolamento social – necessário para conter a expansão desenfreada no número de novos casos da Covid-19. “A pandemia interrompeu o atendimento terapêutico das crianças, e os abrigos não possuem computadores para atividades online”, conta Alicia Beatriz Dorado de Lisondo, psicanalista que atua com crianças abrigadas e famílias adotivas.
De acordo com recomendações do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), o Estado deve prover medidas que “além de mitigar a transmissão comunitária do COVID-19, também garantam o direito à vida e à saúde da criança e do adolescente, expressos no artigo 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente, por meio da aplicação dos recursos orçamentários necessários, sendo necessária inclusive a suspensão ou revogação da Emenda Constitucional 95/2016”. O documento traz ainda recomendações sobre o provimento de recursos para trabalho remoto, fornecimento de informações a crianças e adolescentes, cuidado em casos de violência doméstica, entre outras.
Um panorama mais completo das demandas e respostas das unidades de acolhimento institucional será conhecido a partir de uma pesquisa que está sendo realizada pelo NECA/FICE BRASIL e o Movimento Nacional Pró-Convivência Familiar e Comunitária, que integra Movimento de Proteção Integral de Crianças e Adolescentes, mas Dayse destaca o trabalho realizado por técnicas(os), educadoras(es) e cuidadoras(es): “Tem muita gente boa na ponta, fazendo um trabalho com dedicação, que muitas vezes não aparece”.
A pandemia também gerou uma agilização dos processos de adoção que já estavam em andamento ou de restituição do poder familiar, quando possível. As crianças que remanesceram nos abrigos estão sendo realocadas, em alguns casos em casas temporárias de famílias ou mesmo educadoras(es), para reduzir o número de crianças em um mesmo espaço. Na avaliação de Dayse, é preciso cuidado para não colocar as crianças “em qualquer família”, mas os modelos de abrigamento menores deve permanecer mesmo após a pandemia.
Os desafios da adoção na contemporaneidade
As psicanalistas Alicia Beatriz Dorado de Lisondo e Gina Khafif Levinzon reuniram, no livro “Adoção: desafios da contemporaneidade” (Editora Blucher), estudos e reflexões sobre diferentes aspectos da adoção, desde a retirada da criança de sua família de origem até a formação de vínculo com a nova família, passando por problemas como a devolução aos abrigos (que acontece antes de se efetivar da adoção, já que este é um passo irrevogável).
Alicia se dedica ao trabalho na clínica psicanalítica e avalia que, ainda que já tenhamos avanços na área da adoção, existem medidas essenciais para a humanização do processo adotivo. O primeiro ponto destacado é a necessária preparação de pretendentes à adoção, para que se desenvolva o autoconhecimento e se trabalhem as expectativas. O acompanhamento terapêutico também é essencial com as crianças e cuidadoras(es), que são também responsáveis pela formação psíquica das crianças no abrigo.
Vínculo é a palavra-chave: a criança precisa ter um nome (e não ser apenas um número), ter uma pessoa de referência, poder escolher suas roupas e presentes, além de conhecer suas histórias familiares (neste sentido, Alicia defende visitas a presídios e cemitérios, por exemplo, sempre acompanhadas de profissionais ). “Se um ser humano é tratado como coisa, ele um dia vai tratar os demais como coisas. Os abrigos não podem ser ‘depósitos’, precisam prover carinho e atenção sem vitimizar a criança, dando os limites necessários”, avalia.
O acompanhamento profissional também é importante após a adoção, uma vez que as famílias podem encontrar dificuldades na formação dos vínculos e as crianças podem vir a desenvolver comportamentos que “testam” o amor dos pais, segundo Gina, que também é autora dos livros “Tornando-se pais: a adoção em todos os seus passos” (Editora Artesã) e “Adoção” (Editora Blucher). Neste sentido, ela destaca que a adoção não é apenas um ato de amor, e que os traumas trazidos pelas crianças e pelas famílias adotivas – que frequentemente vêm de lutos pela infertilidade ou perda de outras(os) filhas(os) – precisam ser adequadamente trabalhados para que não se desenvolvam problemas de rejeição ou comportamentos antissociais, por exemplo. “A adoção precisa ser desejada, não pode ser um ato de caridade”, explica, ao afirmar que o trabalho para a flexibilização do perfil desejado de criança deve ser feito sem “forçar” uma adoção. “Os técnicos que trabalham nesta área precisam ter cuidado saber se as famílias têm condições reais de adotar.”
Adoção internacional
Mas, se no Brasil muitas famílias buscam na adoção a “substituição” de filhas(os) biológicas(os) – e por isso tendem a querer crianças mais novas e semelhantes fisicamente – em outros países essa visão é diferente. Em nações nas quais o Estado é mais presente, há menos crianças para adoção, já que a pobreza é menos frequente e famílias vulnerabilizadas são atendidas de forma mais eficiente.
“Desta forma, os estrangeiros tendem a vir para cá com menos expectativas e perfis mais flexíveis”, conta Gina. No entanto, ainda que seja um caminho para crianças e adolescentes encontrarem uma família, é preciso ter um cuidado maior com a adaptação, já que estas crianças perdem o contato com a cultura de seu país.