* Este texto é uma versão resumida e inédita da reportagem de capa que será publicada na próxima edição da Revista Contato
Neste Dia Mundial da Prevenção do Suicídio (10/09), o tema em pauta são as consequências do estresse e da sobrecarga sobre profissionais da saúde que atuam tanto na atenção a emergências e desastres quanto no dia a dia dos serviços. Um relatório sobre a saúde mental de pessoas trabalhadoras da saúde durante a pandemia da Covid-19, publicado pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), mostrou que, em 11 países (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Bolívia, Guatemala, México, Peru, Porto Rico, Venezuela e Uruguai), estes grupos apresentaram algum nível de mal-estar psicológico, sintomas depressivos ou pensamentos suicidas.
A fadiga por compaixão é um fenômeno estudado por Charles Figley desde os anos 1980, descrito como uma forma de burnout que afeta especialmente psicoterapeutas e se diferencia por ser multifatorial e enfatizar “os custos da prestação de cuidados, da empatia e do investimento emocional na ajuda ao sofrimento”. O autor também elucida que o estresse por compaixão pode se manifestar de forma súbita, sem sinais prévios, diferentemente do que normalmente acontece com o burnout que afeta demais profissionais.
Na Clínica, setor que emprega 73,1% da categoria, de acordo com o Censo da Psicologia Brasileira publicado pelo Conselho Federal de Psicologia em 2022, existem fatores intrínsecos que precisam ser observados. Na função de cuidar, é esperado que tais profissionais se deparem, em algum momento, com situações-limite, casos em que pacientes apresentam risco de suicídio e precisam de um ponto de apoio constante. Uma pesquisa realizada pela psicóloga Rafaela de Mello Schnorr (CRP-08/41703) em sua graduação revelou que, muitas vezes, profissionais da saúde não recebem a adequada formação para lidar com tais situações. “Ninguém fala sobre como a gente se afeta com ouvir e cuidar de alguém com ideação ou tentativa de suicídio, ou do luto de perder um paciente desta forma.”
A psicóloga e professora adjunta da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Renata Bellenzani (CRP-06/67777), explica que o momento social que vivemos hoje é de agudização do sofrimento que afeta pessoas em diferentes idades e contextos. Assim, a empatia e o compromisso em acolher e tentar reduzir o sofrimento das pessoas acaba gerando, nas equipes, um fator propício para o estresse, especialmente nas condições de trabalho precarizadas que os setores público e privado frequentemente ofertam. “Nas políticas de resgate a direitos e de proteção à vida, você vai ter um alto nível de estresse se tiver um grau de empatia com a vida humana”, destaca a psicóloga.
Marini, por sua vez, avalia que o sofrimento de profissionais advém de questões que vão além do contato com a dor ao seu redor. Em um país que não se prepara para suas tragédias e paga um preço por uma cultura pouco voltada à prevenção e muito mais voltada à resposta nas emergências de saúde pública em geral, é a categoria de profissionais da saúde que fica mais à mercê dos fatores estressores: o trauma em si, o luto não reconhecido das perdas que envolvem aquela tragédia e as condições de trabalho, muitas vezes aquém das adequadas.
A psicóloga Renata Bellenzani avalia, ainda, que há um viés étnico-racial e de gênero que favorece o adoecimento. Todas estas questões forjam um cenário pouco propício ao autocuidado por parte de profissionais da saúde, que muitas vezes nem mesmo têm acesso a serviços como a própria terapia, considerando salários achatados e a sobrecarga de despesas das famílias.
“Há um nó crítico entre a condição de trabalho precarizado, a exploração, as opressões de gênero e as questões socioeconômicas e de desigualdade que vêm de uma racialização. O adoecimento e o colapso emocional não vêm exclusivamente de uma dessas esferas, mas da interseccionalidade”, complementa.
Autocuidado também é coletivo
O estigma da saúde mental ainda é uma realidade social, embora esteja mais recentemente sendo combatido. Quando se trata de profissionais da Psicologia, no entanto, não estar bem pode vir com um peso a mais, como se não fosse esperado que estas pessoas pudessem adoecer. Isso se soma à estigmatização e medicalização do sofrimento e do fenômeno do suicídio, e à cultura meritocrática que culpabiliza o indivíduo unicamente os conceitos conjunturais de “sucesso” e “fracasso”.
Se é ponto pacífico que a redução do estresse de profissionais da saúde com fadiga por compaixão passa por separar aspectos do trabalho da vida pessoal, bem como criar rotinas de autocuidado, que podem incluir psicoterapia, atividades de lazer, relaxamento e descanso, esta é apenas uma parte da solução. É também preciso haver estratégias de democratização do trabalho, gerando engajamento político e união da equipe para enfrentar as condições adversas.
Neste sentido, algumas das principais demandas da categoria e uma luta histórica do Sistema Conselhos e demais entidades que representam a categoria são a carga horária semanal de 30 horas e o piso salarial. Recentemente, em 7 de agosto, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado Federal aprovou a sugestão legislativa que prevê o estabelecimento de um piso salarial de 4.750,00 reais para profissionais da Psicologia, além da limitação da carga horária semanal em 30 horas.
Com isso, a SUG 13/2022, que contou com mais de 31 mil opiniões favoráveis da sociedade, passa a tramitar no Senado como projeto de lei, a ser votado por parlamentares. Além da sugestão legislativa, agora transformada em projeto de lei, outros dois projetos relacionados à demanda das 30 horas estão em tramitação nas casas parlamentares: o PL 1214/2019, da Câmara dos Deputados, e o PLS 511/2017 do Senado.
COF orienta
É sempre bom lembrar: de acordo com o Código de Ética profissional da Psicologia, é dever fundamental de profissionais da Psicologia “assumir responsabilidades profissionais somente por atividades para as quais esteja capacitado pessoal, teórica e tecnicamente” (artigo 1º, alínea “b”).
Diante de impedimentos de alguma ordem, é previsto que seja feito encaminhamento a demais profissionais conforme disposto no artigo 1º , alínea “k”: “sugerir serviços de outros psicólogos, sempre que, por motivos justificáveis, não puderem ser continuados pelo profissional que os assumiu inicialmente, fornecendo ao seu substituto as informações necessárias à continuidade do trabalho.”
Ainda que cada área de atuação tenha a sua particularidade, observa-se que este encaminhamento é possível de ser efetivado, seja no contexto da Clínica, das políticas públicas ou demais instituições. No âmbito das políticas públicas, recomenda-se o diálogo com equipe e gestão, posicionando-se de forma embasada, visando a definir encaminhamentos e a construção de fluxos que garantam o acesso da população a serviços com qualidade e alinhados aos preceitos éticos e técnicos da profissão. Diante de dificuldades, é possível acionar os conselhos profissionais, bem como sindicatos, para orientação e apoio necessários.