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31 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente: garantia de direitos na escola

Por Psic. Felipe Montrucchio Ilkiu (CRP-08/22362), colaborador da Comissão de Psicologia Escolar e Educacional do CRP-PR

Ao entrar em uma escola, poderíamos encontrar algumas destas situações: uma criança que chega cansada na escola porque teve que ajudar um dos pais no seu trabalho, até à noite; um outro coleguinha está amuado, “seu peito dói”, porque o padrasto chegou embriagado em casa, brigou com a mãe, e ameaçou a irmã. Em outra sala desta mesma escola, uma aluna recebe muita atenção e carinho dos pais, porém sente fome e frio, durante a semana, pois seus pais estão desempregados. Outros alunos aprendem e brincam: há muitas coisas boas acontecendo também. Mas há muito trabalho a se fazer.

No dia 13 desse mês, neste ano, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) faz 31 anos. A concretização e efetivação do ECA são preceitos fundamentais para o estabelecimento de uma sociedade saudável, e nessa busca por justiça social e emancipação, apenas o papel da lei não basta. É preciso agir em função dela. A partir disso, e atentas(os) ao cenário atual da pandemia, podemos nos questionar sobre o papel da escola diante da garantia de direitos.

Assim, o retorno às aulas é um discurso que é resgatado, em alguns locais, como uma forma de proteger as crianças. Pretendemos, nesse texto, pensar um pouco além desse ponto de vista. A escola é peça central para fortalecer as premissas do ECA, porém, podemos pensar que outros espaços e serviços estão faltando para o cuidado e proteção integral das crianças que frequentam o ensino público.

Durante a pandemia, percebe-se a falta que as escolas fazem para as crianças. Esse cenário demonstrou quanto as crianças precisam de outros acessos e direitos que a escola acaba suprindo (ou tentando suprir) na ausência de outras políticas efetivas. As escolas acabam por concretizar não apenas o direito à educação pública, gratuita e de qualidade; a escola… ou os profissionais das escolas veem-se confrontados com a tarefa de fazer acontecerem todos os direitos do público infantil que acolhem diariamente.

Para que os direitos sejam efetivados deve-se trabalhar intersetorialmente. Não é possível atuar em prol dos direitos, sem a mobilização de todos aparatos estatais: Centros de Referência Especializados em Assistência Social (CREAS) e Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), Conselhos Tutelares, Segurança Pública e Saúde Pública. A sociedade civil também deve estar preparada para receber, enxergar e desenvolver a criança, mas na realidade, no fazer diário, muitas vezes ela não está preparada para enxergar a criança nas suas particularidades, e a criança acaba, frequentemente, distante daqueles serviços e instituições. É, portanto, nas escolas que as violações dos direitos são verificadas. A equipe escolar é testemunha do que acontece ao público infantil, recebe e trabalha com este público diariamente, conhece seus alunos de perto. Não à toa, apesar das denúncias de violências contra crianças apresentarem uma queda em 2020, com as aulas remotas, o número real de violências domésticas aumentou, porém não é notificado. É na escola que se recebe e se percebe que há algo errado, que prejudica a aprendizagem da criança, portanto, a escola tem um papel de destaque, um olhar privilegiado a respeito dos direitos da criança.

Um dos direitos previstos no ECA é a educação pública, gratuita, integral e de qualidade. Aproveito para o alerta: uma vez que há muitas formas de entender cidadania… algumas mais moralistas, e outras que permitem uma ampliação do próprio senso, dos próprios pré-conceitos, a fim de encontrar novos consensos… enfim, uma cidadania mais ou menos moralista… menos ou mais aberta a aprender a partir da realidade e pontos de vista do outro. Porque se a cidadania parte de pressupostos universais, a sua efetivação prática incide sobre sujeitos, na concretude local. “Formar” a(o) cidadã(ão) mas atenta(o) às particularidades que esta(e) já possui. Ser sujeito ativo, junto com a criança, ser estudante conjuntamente.

Com este gancho, penso em inverter uma fala: direi aqui que a criança não deve ser protegida pela escola. Falando de um viés que reivindica a dignidade humana, ela deve ser cuidada. A proteção parece dar o tom de alguém superior, que sabe resolver os conflitos, e vem para salvar (a)o sua(seu) pupila(o), sua(seu) protegida(o), essa(e) vista(o) como indefesa(o). Vejo que, na realidade, não é isso que acontece. Como profissional que trabalha com crianças, vejo que muitas delas criam seus próprios recursos e estratégias para lidar com as problemáticas que se lhes apresentam. E não são situações fáceis, e nem há um adulto que tenha uma resposta simples para dar conta de seus dilemas. Abandonos, violências, carências, perdas e lutos... a escola irá sanar todos os conflitos juvenis?

Os educadores não deveriam proteger, mas cuidar da(o) aluna(o). Acolher o público discente, dar-lhe as ferramentas para lidar com o mundo: seu exemplo, seu conhecimento, suas saídas, suas formas de estar no mundo em sociedade, ensinar a metodologia científica, subsidiar as relações sociais dentro da escola. Proporcionar o ensino de artes, o estudo do belo, a forma artística de ver o mundo (invenção humana, que amplia os modos de viver, de estar no mundo, de ser-com outras pessoas, com outras culturas), trazer noções de cidadania, conhecimentos históricos, ensinar sobre dignidade humana e direitos humanos. E neste mundo de pandemias… explorações, guerras, desequilíbrios climáticos, desigualdades… de violações diversas, de descuidos… a(o) educadora(or) também é vítima, a(o) trabalhadora(or) da educação é pouco valorizada(o). Este é o ponto: a(o) profissional da escola deve ser cuidada(o). Está desprotegida(o) também. Na linha de frente, batalha diariamente com a realidade. Sem todos os recursos que poderia ter.

Portanto, proponho que a escola não deve proteger as crianças, pois não tem todas as ferramentas para desempenhar esta função, sozinha. A escola deve ser protegida. A escola deve cuidar das crianças, numa relação recíproca, onde não tem senão uma parte da responsabilidade: a de munir estudantes de pensamento científico, de ampliar potenciais de socialização e de apropriar e se apropriar das construções culturais e humanas, em um papel ativo, corresponsável. Tem a corresponsabilidade em formar cidadãs(ãos) e é formada por cidadãs(ãos).

Ela pode se investir de muitas atividades, no sentido de ampliar a visão de mundo das(os) alunas(os), das famílias e da comunidade, inserir sujeitos no mundo e na sociedade. Alunas(os) que, futuramente, também ampliarão as maneiras de ensinar. Ela potencializa a proteção das(os) alunas(os), e essas(es) poderão multiplicar fazeres e saberes cada vez mais refinados para uma sociedade mais justa, mais pensadora, mais letrada, mais artística, mais comunicativa e cidadã. Mas isso depende fundamentalmente de outros dispositivos para exercer sua função dentro dos direitos e proteção às crianças.

A escola é fundamental para que se cumpra o ECA, e tem suas atribuições. Atribuições que se complementam com outros atores e instituições. Ela precisa da sociedade civil, consciente e integrada ao que se passa na cidade, no Estado, país e planeta; precisa do CREAS e CRAS, atentos aos cuidados e fortalecimento de grupos; precisa também da Segurança pública, uma que respeite, capaz de entender as particularidades das crianças; necessita de leis sintonizadas com a realidade vivida (como a recente lei, que implementa a atuação de Psicólogas(os) e Assistentes Sociais nas escolas, as leis antirracistas, dentre outras); precisa conversar com o Sistema Único de Saúde(SUS), com a saúde na escola; precisa ampliar, quanto for possível, seu diálogo com a cultura: músicas, artes, teatro, cinema,  artes visuais plásticas. Precisa ter acesso a esportes e projetos para a juventude. Para que a escola cumpra seu papel de formar cidadãs(ãos) dignas(os), capazes de enxergar a realidade e entender o que significa a palavra dignidade, ela precisa se aproximar dos espaços da cidade: parques, praças, centros culturais, bibliotecas, hortas comunitárias, associações, precisa ir aos espaços legislativos. E também a comunidade precisa cuidar da e ser cuidada pela escola e educadores.

A escola, os atores que ali estão, precisam também aprender: aprender as novas dinâmicas globais; aprender a receber o aluno da era digital; aprender a receber o aluno das medidas socioeducativas. Todas(os) precisam cuidar das escolas, pois as(os) educadoras(es) precisam estar bem para que possam então receber e se desenvolverem com suas(seus) alunas(os), para serem estudantes e aprendentes… e transformadoras(es), rumo a uma realidade mais saudável e ampliada. O cuidado é mútuo.

Voltando aos exemplos do início e fechando o texto: na escola, a criança que é vítima de violência deve ser protegida, uma vez que na sua condição, a priori, não possuirá meios para combater e superar a violação de direitos que sofre. A(O) profissional da educação – sempre em formação, desenvolvendo continuadamente sua estimada atuação -, possui e vai acumulando suas capacidades para lidar com estas situações. Deve proteger de uma forma específica, própria. E, para isso, precisa de todos outros aparatos sociais, inclusive os que protegem a escola, a educação e seus atores sociais.

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