No dia 1º de maio, celebra-se o Dia Internacional das Trabalhadoras e Trabalhadores, um dia histórico de luta e reivindicação por melhores condições de trabalho, libertas de opressões e explorações. Em 2020, a data é permeada pelo contexto da pandemia da Covid-19, que traz diversos impactos para a saúde mental de toda a população e expõe ainda mais os problemas que já existiam nas relações laborais e que levam ao adoecimento.
Múltiplos fatores sociais, psicológicos e biológicos podem colocar em risco o nível de saúde mental de uma pessoa ou grupos, como, por exemplo, rápidas mudanças sociais, perda de laços sociais ou familiares, condições de trabalho estressantes, discriminação, exclusão social, estilo de vida não saudável, violência e violação dos direitos humanos, pressões socioeconômicas contínuas, etc. Estes fatores se expressam de forma contundente durante a pandemia: a incerteza, o excesso de carga horária da jornada laboral, o afastamento de entes queridos, o luto, a falta de estrutura para o trabalho remoto ou de equipamento de proteção individual (EPIs) para o trabalho presencial, entre outros, podem levar a quadros como raiva, insegurança, frustração, medo, impotência e tantas outras reações.
Sendo assim, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR) aproveita esta data para propor importantes reflexões sobre trabalho, sofrimento psíquico e saúde mental de trabalhadoras e trabalhadores, em especial frente aos efeitos da pandemia.
O valor do trabalho na saúde mental
Quando discutimos saúde mental, há de se refletir o como construímos significados. Desde pequenas(os), aprendemos não somente os nomes das coisas, mas a estabelecer relações entre elas. Uma série de relações são estabelecidas pela comunidade verbal, como relações de valoração, de construção de identidade, de pertencimento grupal. Assim, convenciona-se que trabalho e indivíduo são indissociáveis. Isso se expressa em máximas como a de que o trabalho define o ser humano, enaltece a alma, forma caráter, nos torna merecedoras(es) de recompensas sociais, etc. Assim, não possuir um trabalho socialmente reconhecido agride diretamente o sentido de indivíduo e de coletividade dos sujeitos. O sofrimento não vem apenas pela ameaça de perda do emprego, vem relacionado também a uma noção de perda de merecimento, de individualidade, de identidade, de pertencimento.
Dessa maneira, as próprias relações que compõem o significado de trabalho podem ser, por si só, adoecedoras. Outras relações implícitas no significado de trabalho envolvem o esforço, a dedicação e a competição. Em cenários de emergência como o que vivemos, aumentam o grau de cobrança pessoal e a sensação de precisar dar conta de mais tarefas do que o habitual.
Outro aspecto importante para compreender o adoecimento nas relações laborais são as condições básica de trabalho (a disponibilidade dos EPIs, por exemplo), bem como o quanto a pessoa sente que é importante para o trabalho e para a(o) empregador(a). Por exemplo, um(a) funcionária(o) que atua na limpeza que perceba em dificuldade para acessar os EPIs, que se expõe frequentemente a materiais que podem estar contaminados, que tem que voltar para casa sem garantir que está livre do vírus e que, ao solicitar melhores condições escuta respostas pouco elucidativas ou até mesmo ríspidas, tem grande probabilidade de desenvolver quadros de adoecimento no ambiente de trabalho. O conceito de trabalho e a relação que se tem com este, portanto, já podem ser, independentemente de outras variáveis, promotores de saúde ou doença. Afeta a construção da identidade, a autoestima, o acesso a bens e recursos, a sociabilidade, a dinâmica familiar e várias outras dimensões de nossas relações.
A situação de um adoecimento de um trabalhador não pode ser tomada isoladamente, pois o adoecimento coloca em questão as práticas cotidianas e os projetos de vida das(os) trabalhadoras(es) e também das organizações. Dessa forma, a relação “saúde x espaços de trabalho” carece de maior atenção e estudo objetivando a criação de políticas de prevenção, de melhores condições de saúde e de qualidade de vida. Se não houver esperança de melhora nas condições de trabalho e de vida, o sofrimento só irá aumentar (Dejours, 2007).
O trabalho na linha de frente do combate ao vírus
A OMS apresenta algumas sugestões para promover o cuidado com a saúde mental para trabalhadoras(es) que estão na chamada linha de frente do combate à pandemia, grupo formado em 70% por mulheres.
– Para a OMS, é normal sentir-se “sob pressão” e o estresse é “de modo algum um sinal de que você não pode fazer seu trabalho”. Para prevenir o adoecimento psíquico, as(os) gerentes das unidades de saúde e líderes de equipe (e se aplica para gestoras(es) em qualquer contexto de enfrentamento à Covid-19) devem garantir o rodízio da equipe, descanso o suficiente para todas(os), parceria de trabalhadoras(es) inexperientes com experientes e sempre lembrar que essa é uma corrida longa e não uma “corridinha”.
– Além disso, espaços de videoconferência para que os profissionais possam entrar em contato com seus familiares nos períodos de descanso podem ter impacto positivo. É importante também que as(os) profissionais de todos os níveis incentivem e pratiquem os descansos, os cuidados alimentares, as atividades físicas e o cuidado emocional.
– Capacitações frequentes, matriciamentos, espaços online para tirar dúvidas ou conversar podem contribuir muito no manejo dos anseios decorrentes deste período. Por fim, garantir EPIs e testagem, além de ambientes salubres de trabalho, deve ser entendido como obrigação e não apenas cuidado. A preocupação, acima de tudo, deve ser em isolar o vírus, não o afeto.
– Os ambientes de trabalho podem adotar todas as medidas de prevenção possíveis, e isso certamente já contribui para minimizar a insegurança e os temores relacionados ao vírus. Mas, há uma série de outros problemas que não têm sido discutidos com frequência: os impactos no bem-estar psicológico de trabalhadoras(es). Anseios como a distância da família, a preocupação de acabar se contaminando ou contaminando familiares, o contato mais direto com a gravidade do tema, além dos temores mais intensos em locais que não conseguem tomar ou deliberadamente não adotam as medidas preventivas são alguns fatores que provocam esses impactos. Além disso, não é incomum que esta(e) trabalhador(a) da linha de frente seja o(a) principal provedor(a) da família. Sendo assim, as preocupações com os direitos trabalhistas contribuem para aumentar a sensação de pânico.
E as(os) trabalhadoras(es) que não estão na linha de frente?
Uma parte expressiva das orientações da OMS se dirige a profissionais de saúde, por serem parte importante da ponta da lança no enfrentamento à Covid-19, mas há de se considerar também as especificidades de outras(os) profissionais, como trabalhadoras(es) da educação, as(os) que fazem atendimentos a episódios de violência, as(os) servidoras(es) administrativos, (as)os servidoras(es) de limpeza, etc.
O próprio trabalho remoto esbarra em diversas dificuldades de adequação do ambiente doméstico para dar conta das sugestões que vêm sendo frequentemente apontadas para garantir a produtividade (um cômodo separado, sem distrações, conexão de internet, equipamentos, etc.) e isso, por si só, já é um agravante psíquico em um cenário de tantas incertezas.
Para as(os) que não podem fazer trabalho remoto, a invisibilização já notória, como em relação a profissionais de limpeza, o que pode acentuar ainda mais a sensação de isolamento, ainda que não isolados.
Outra questão diz respeito aos trabalhos que estavam iniciados em muitos setores e que precisaram ser interrompidos ou que viram seus prazos se estenderem de maneira indefinida. Isso pode gerar preocupações nas(os) trabalhadoras(es) no sentido de considerarem que não estão fazendo seu trabalho adequadamente ou que estão “abandonando” pessoas que estariam necessitando de algum serviço que é considerado não essencial.
A importância do autocuidado
Há uma analogia interessante entre o nosso cuidado com as instruções que se recebe em um avião em casos de imprevistos. Coloque a máscara primeiro em você e depois ajude os outros. De fato, um dos pressupostos do bem-estar é lembrar que não há como você cuidar de outras pessoas sem se cuidar primeiro. Desde a importância, para os que conseguem, de buscar ajuda psicológica para lidar com adversidades e desafios, até a organização da própria rotina no que diz respeito a descansos, contato com pessoas queridas e acesso às informações, há uma série de medidas que podem contribuir para melhor navegar nessas águas turbulentas (e mares “calmos”, também).
Luta coletiva pela saúde pública: para além da pandemia
Outra dimensão importante que costuma ser secundarizada ou diminuída no que diz respeito à saúde é a importância da coletividade e do engajamento em estratégias de enfrentamento da pandemia que vão além da prevenção e do autocuidado. Defender a saúde pública, o SUS, as entidades que lutam pelos direitos trabalhistas e a organização coletiva na luta por direitos humanos tem papel importante no apontamento de perspectivas e na solidariedade, fundamental para a promoção do bem-estar.
É importante lembrar que, antes da pandemia, já vivenciávamos um processo de precarização e retirada de direitos. Uma das maneiras que o sofrimento se acentua durante a Covid-19 é amplificando os temores e incertezas que já permeavam as relações de trabalho das(os) brasileiras(os). A Reforma Trabalhista, aprovada no governo Temer, bem como a EC-95, que congelou gastos em saúde e educação por 20 anos, estenderam um tapete vermelho para que a primeira crise que viesse tornasse as trabalhadoras e os trabalhadores, bem como pessoas que não compõem a chamada população economicamente ativa, ainda mais vulneráveis em um contexto de recessão como o que estamos passando.
Assim como o trabalho, a saúde precisa ser compreendia por meio das relações que são estabelecidas em torno dela. Saúde não pode ser ausência de doença, ou um lugar mágico individual em que os problemas não são tão grandes. Saúde psicológica é indissociável de saúde física, uma vez que o organismo é um só. Não há, na prática, uma dimensão racional ou outra emocional, há seres se relacionando constantemente e, ora aprendendo significados, ora os questionando.
Entender a saúde e o trabalho como relações também nos permite questionar a forma com que são acessados em nossa sociedade. Se algo nos falta, por que não o temos? Será que se deve a uma falta de esforço, de vontade, à preguiça, ao foco na tristeza ou nos problemas, como se costuma apontar em sociedade? Ou será que pode estar relacionado com condições materiais, bem como com significados arbitrários – que muitas vezes reproduzimos, mas não paramos para refletir, além de com a maneira como os bens sociais são distribuídos?
Em se tratando de saúde, contextualizar o sofrimento historicamente, geograficamente e materialmente traz muito mais possibilidades de planejamento de políticas e estratégias de intervenção que tratem a questão como deve ser tratada: coletiva e publicamente. Perceber a saúde como algo além da responsabilidade individual é, por si só, uma estratégia de promoção de bem-estar.
Por fim, há de se ter um cuidado particular ao olharmos para esse momento que é o de não lhe atribuir peso demais ou de desviar a atenção do que ele expõe. As principais tensões em torno da epidemia têm girado em torno da falsa polêmica “vidas x economia”, a ponto de empresárias(os) e figuras públicas registrarem posicionamentos sugerindo que algumas vidas serem perdidas não seria um problema, mas que a economia não poderia parar por isso. Discursos como esses têm impacto direto na saúde das pessoas, uma vez que algumas podem se sentir asseguradas de que não serão essas vidas perdidas, enquanto outras já lidam com essas perdas e medos recorrentemente.
A crise na saúde brasileira é anterior à epidemia, assim como o cenário recessivo que já estamos passando na economia. O vírus pode estar evidenciando que as coisas não estavam tão boas assim antes, mas até o momento, a direção que ele aponta é de piora. Para superarmos esse cenário, é necessária a luta coletiva pela saúde pública, pelo cuidado com as pessoas e proteção aos direitos trabalhistas como marcos da relação entre administração pública e sociedade.