Estamos em crise.
Ainda que estejamos apenas começando a compreender os efeitos que a pandemia da Covid-19 impôs ao mundo inteiro, quase de uma só vez, já é possível dizer: esta é a maior e mais profunda crise sanitária, econômica, política e social das nossas vidas. Somente uma resposta robusta e conjunta entre Estados e sociedade civil pode prevenir uma crise humanitária em escala global, mas o que temos percebido é a histórica denegação de direitos básicos assumindo dimensões cada vez mais explícitas.
Há meses que estamos lidando com os efeitos de uma síndrome respiratória aguda e severa causada por um novo vírus, até então desconhecido. À medida que o número de casos subia e mais países eram atingidos, e o potencial pandêmico se delineava, várias pessoas que tinham condições ao redor do mundo começaram a estocar suprimentos, muitas vezes de forma beirando o irracional, levando à falta de produtos como álcool em gel, máscaras exclusivas para profissionais de saúde e até mesmo produtos remotamente relacionados à doença, como papel higiênico. Nas redes sociais, as imagens de sistemas de saúde (em especial os da Itália, Espanha e Equador) colapsando assustaram. Corpos amontoados nas ruas, equipes de saúde em completo desespero, a vida de pessoas idosas sendo preterida diante de mais jovens – com “mais condições de lutar pela sobrevivência e tempo para usufruir a vida depois de recuperados” – foram cenas chocantes e que nos jogaram na cara que as coisas não vão nada bem.
Grande parte da população percebeu a necessidade de isolamento social como forma de proteção. Algumas pessoas tiveram condições de adotar esta prática voluntariamente, enquanto outras se desesperavam sem saber o que fazer. Muitas(os) de nós, talvez a maioria, nunca passou por circunstância semelhante: “de uma hora pra outra”, a vida teve uma mudança brutal. Recomendações enfáticas de autoridades sanitárias começaram a ocupar os noticiários, os letreiros iluminados nas ruas e as telas dos nossos celulares. Em todos os lugares, as mesmas orientações: “evite contato físico”, “evite aglomerações”, “não toque”, “lave as mãos”. Essas práticas passaram a ordenar o comportamento de muitas(os) de nós e logo evoluíram para um cenário jamais vivido por ampla parcela da população: “fiquem em casa”.
Ao longo das semanas, as recomendações de “ficar em casa” passaram a ser mais enfáticas. O regime de teletrabalho começou a ser organizado para muitos setores que sequer imaginavam que conseguiriam operar desta maneira. Os serviços de delivery deram um salto: foi possível encomendar de tudo um pouco – contanto que se tivesse dinheiro para pagar por isso. Tudo à mão, no conforto dos lares. Na televisão se ensinavam passatempos com as crianças, enfadadas pela impossibilidade de brincar fora de casa. Ríamos dos gatos e cachorros passando atrás de jornalistas que transmitiam notícias em frente a enormes e lindas estantes de livros. Uma das práticas mais antigas do mundo, a de “fazer o próprio pão”, ganhou ares de novidade, com farinhas de trigo gourmet. Comerciais de televisão diziam que esta crise seria uma oportunidade de repactuar laços, aproximar pessoas, exercitar o corpo e aquecer o coração. Vizinhas(os) cantando nas janelas, salvas de palmas a “heróis da saúde”, e uma sensação de que a solidariedade e a paciência bastariam para nos salvar.
Infelizmente, a possibilidade de adotar estas medidas de proteção e autocuidado não é uma realidade para a maior parte da população brasileira. A pandemia escancarou a desigualdade social que aflige nosso país.
A crise é estrutural.
Há uma fratura a história do Brasil desde o período colonial, passando pelos quase 350 anos de escravização da população negra, por uma república oligárquica e plutocrática, pela ditadura militar, por nossas crises democráticas, determinando quem vive e quem morre.
Somos bombardeadas(os) com vídeos, lives e notícias de jornais sobre o escalonamento da doença, sobre o quanto é fundamental ficarmos em casa para podermos “achatar a curva” de contágio. Por outro lado, comentários duvidosos dizendo que o pior já passou, que temos que ser melhores e mais fortes que a doença. E na garganta fica apenas a vontade de sair e poder ir aos lugares a que sempre fomos. A angústia, medo, ansiedade criam a necessidade de fugir, se refugiar, não mais da doença, mas sim da informação – afinal, somos a sociedade da informação. E, para isso, quem tem condições para tal consome seus deliverys, lives, séries, jogos, todo o possível para nos distanciarmos minimamente da realidade que está lá fora, à espreita e nos assombrando. Chega a ser irônico que, agora, nessa pandemia, muitas pessoas estejam entendendo o valor da arte.
Porém, o isolamento não vem de graça, ele custa, custa o não isolamento de muitas(os), de entregadoras(es), motoristas de aplicativos, trabalhadoras(es) do varejo que, para garantir o isolamento, não podem se isolar. Para garantir o sustento e a comida do mês, da semana e às vezes do dia, tem-se que sair, com chuva, sol, pandemia, máscara e transporte lotado. Vivemos o sentimento paradoxal do isolamento, todos devem se isolar, mas se isola quem pode, como quem, com a desculpa pelo trocadilho, lava as mãos para a situação.
Isso não ocorre apenas com quem tem emprego, ou mesmo casa. A população em situação de rua passa a vida lutando por direitos, principalmente à moradia, e agora, mais do que nunca, estão isoladas(os)… na rua, porque até alguns abrigos fecharam por causa da pandemia.
A crise não vem de agora. Estamos em crise há muito, muito tempo.
Milhões de trabalhadoras(es) brasileiras(os) se viram diante de uma brusca piora de suas já difíceis condições de vida. Estamos no Brasil, o 2º país mais desigual do mundo, de acordo com o último Relatório de Desenvolvimento Humano da Organização das Nações Unidas (ONU). Apenas 1% das pessoas mais ricas do Brasil tem renda 34 vezes maior do que a metade mais pobre (IBGE), diferença que só aumenta, e apenas cinco pessoas juntas têm a mesma renda que 100 milhões de brasileiras(os). De um dia para outro, milhões de trabalhadoras(es) formais e informais tiveram suas fontes de renda cessadas. Muitas(os) foram demitidas(os). A taxa de desemprego oficial já atingia 12,3 milhões de pessoas em fevereiro, influenciada pelo corte de postos de trabalho nos setores de construção, indústrias, serviços domésticos e no ramo de transportes particulares, e subiu para 12,9 milhões em março (última divulgação do IBGE). Profissionais liberais e em regimes informais de contratação ficaram à mercê da própria sorte. Os efeitos da desregulamentação do trabalho, do desmonte dos sindicatos e de imensos retrocessos promovidos pelas Reformas Trabalhista e Previdenciária, associados ao desmonte das políticas públicas, ficaram ainda mais evidentes.
O número de pessoas em situação de rua e de sem-teto não parou de aumentar e medidas de enfrentamento a suas duras realidades se resumiram quase que exclusivamente à solidariedade da sociedade civil, sem apoio consistente do poder público. Com o fechamento de restaurantes ou estabelecimentos que forneciam comida e água potável para estas pessoas, bem como a redução da circulação nas ruas, a fome – que para muitos nunca passou – voltou com toda força. A resposta de muitas(os) gestoras(es) públicas(os) não foi diferente do que costuma ser: invisibilizar a miséria com a expulsão da população de rua dos centros urbanos, ações da Guarda Municipal para recolhimento dos seus pertences e muita violência.
Outras filosofias, não brancas nem ocidentais, contribuem imensamente para a compreensão deste momento que vivemos. Um exemplo é o conceito de “necropolítica”, cunhado pelo historiador camaronês Achille Mbembe, que significa, literalmente, política de morte, referindo-se às ações ou omissões do Estado que determinam qual parcela da sociedade pode viver e quem pode (ou deve) morrer. Em tempos de pandemia, essa política de morte ficou ainda mais escancarada nos pronunciamentos e práticas de várias(os) representantes do governo.
De maneira subjacente, também podemos identificar a necropolítica quando trabalhadoras(es) são implicadas(os) a decidir sobre qual paciente deve ser prioritariamente atendida(o) nos leitos de UTI, embora a Constituição nos aponte justamente que a saúde deveria ser um direito de todas(os) e um dever do Estado. Ou, diante da desassistência social e a volta da carestia, em que “ficar em casa” não é uma possibilidade para todas as pessoas. No entanto, para muitas(os), as necessidades extrapolam os R$ 600,00 do Auxílio Emergencial (ou a ele nem tiveram acesso). Outras, porque nem casa têm.
Quando o Estado não possibilita formas de que todas(os) fiquem em casa, a experiência de “confinamento social” torna ainda mais nítida, com dureza e muita força, nossas desigualdades sociais. Para alguns setores da sociedade, o “confinamento” pode representar uma experiência de proteção e segurança diante da ausência de vacinas e tratamentos à COVID-19. Para outros, ele está tão distante da realidade que, ainda que deva ser firmemente defendido como a melhor medida possível, reflete os efeitos do desemprego, da precarização da vida e do trabalho, das próprias condições de moradia e da necropolítica. Para muitas(os), as medidas de isolamento social são vistas como uma ameaça a sua subsistência, pois a negação histórica aos direitos mais básicos naturalizou a certeza de que serão abandonadas(os). O acesso aos direitos mais básicos de todas as pessoas para muitas(os) é tomado como um privilégio.
Somos forçados viver com um paradoxo. As medidas de isolamento social que, se garantidas as condições para uma adesão em massa, poderiam ter um caráter de autocuidado, passam a demandar a obrigatoriedade – o chamado lockdown. Muitos países já tiveram que adotar estas medidas, assim como várias cidades e estados no Brasil já contam com formas mais brandas ou severas de restrições. O paradoxo é que estas mesmas medidas que visam garantir o direto fundamental e universal à vida interferem em outros direitos universais como a liberdade ir e vir, de livre associação e à privacidade, entre outros.
Os direitos humanos universais são inalienáveis e somente em situações extremas podem ser suspensos; ainda assim, desde que observados os princípios da legitimidade e proporcionalidade. Isto significa que as restrições de direitos devem atender a uma necessidade legítima e não podem em hipótese alguma serem usadas para justificar medidas que visam atingir determinadas populações, como, por exemplo, utilizar as necessidades reais impostas pela pandemia para encarcerar grupos específicos, sob a égide do isolamento social. Devem ser previstas e reguladas por leis que explicitem o que está sendo restringido, quem tem poder para impor a restrição e quando estas restrições devem acabar. E devem ser proporcionais, devem estar diretamente relacionados à crise que estamos combatendo e devem ser garantidas condições para que as restrições sejam observadas sem o prejuízo desnecessário de outros direitos. Tudo isso é assustador na medida em que temos que lutar pelo direto de acesso à saúde que está sendo negado a milhões de brasileiras(os), temos pouco tempo e forças para monitorar a legitimidade e proporcionalidade das medidas restritivas.
As restrições à livre circulação e acessos deveria ser uma exceção que só um evento do impacto de uma pandemia poderia demandar. Infelizmente, nossa história recente depõe contra este princípio. A luta antimanicomial teve uma longa caminhada para evidenciar as restrições de liberdade e os tratamentos desumanos impostos a pessoas em sofrimento psíquico no Brasil. E, neste momento, os efeitos manicomiais tão combatidos desde o princípio da Reforma Psiquiátrica atuam com força. Desde o congelamento de gastos em políticas sociais, a Rede de Atenção Psicossocial já vinha tendo seus desmontes intensificados. A lógica do cuidado em liberdade no território estava, assim, sob ameaça de instituições de caráter total, revestida de novos pavimentos, ungidas por destinações orçamentárias generosas do Executivo e posicionando seus discursos em nome de uma suposta “ineficácia” do modelo da atenção psicossocial que defendemos.
Agora, durante a pandemia e em nome de “cuidados às populações vulneráveis”, instituições e práticas manicomiais podem se acentuar. Um exemplo é a opção de diversos setores de, sob a desculpa do “confinamento”, propor a todo custo internações de pessoas em uso abusivo de álcool e outras drogas em instituições totais como as comunidades terapêuticas.
Tal ação acentua uma lógica que é dissonante (e por vezes antagônica) das diretrizes da Reforma Psiquiátrica, asfixiando por meio da dotação orçamentária insuficiente os equipamentos e dispositivos que deveriam garantir a existência e o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial com forte interlocução com a atenção primária à saúde. Fomenta-se assim um mercado que se alimenta da crise sanitária que o país atravessa e agudiza ainda mais os efeitos do controle e gestão do Estado sobre os corpos, ao mercantilizar a saúde e o cuidado, ao “naturalizar” práticas de higienização e gentrificação social.
Sim, estamos em crise.
E, para algumas pessoas, esta é uma excelente época para os negócios e para o fortalecimento da lógica manicomial. Em um país em que as crises se sucedem e o Estado de exceção é regra, talvez soe como natural a lógica do manicômio que transforma a intervenção na crise em tratamento crônico.
Não há como desvincular os processos: o Estado necropolítico que escolhe quem atravessa a pandemia com conforto e segurança é o mesmo Estado manicomial que determina que os corpos “dissonantes” devem ser trancafiados em manicômios pela vida inteira – por critérios que muitas vezes dizem mais respeito à raça, à condição socioeconômica e à possibilidade de acesso a serviços. É esse Estado servil ao poder econômico que produz e se retroalimenta de desigualdades, operando de forma muito ativa nas subjetividades e afetos. E que fará de tudo para nos conduzir a um “novo normal”, que de “novo” não tem nada. “Eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades”, como canta Cazuza, nunca fez tanto sentido.
Do outro lado desta fronteira, estão aquelas(es) que querem a mera “normalidade” de até então: foi em nome dessa “normalidade” que se sustentou este estado de profunda desigualdade e violência. A última coisa que devemos permitir é, justamente, voltar ao “normal”. Aquela “normalidade” com seus muros e segregações, com os discursos únicos sobre o que é “ser um sujeito normal”, sobre o que é a saúde ideal ou sobre como levar a vida ordinária.
Estamos em crise, e a crise pode trazer novos ares.
Se tantos repetem que o mundo nunca mais será o mesmo, qual é então o mundo que queremos? Deixar para projetar – e, por que não, sonhar? – esse mundo apenas depois que a pandemia passar pode ser tarde demais. Imaginar hoje como será o amanhã, disputar essas narrativas e utopias em defesa da sociedade é também um gesto ético e político. E, mais do que isso, é fundamental reatualizar o compromisso social da Psicologia com ações concretas e conectadas à realidade da população brasileira.
Nós, Psicólogas e Psicólogos, somos sonhadoras(es)-do-mundo-pós-manicômio. Ao defendermos o fim do horror manicomial, com o derrubamento de grades e muros altos, sonhamos com algo maior do que um “novo normal”, uma sociedade com pluralidade e onde caiba toda a diversidade. Defendemos laços e encontros verdadeiramente solidários, sob a égide do cuidado e da dignidade humana.
Neste 18 de maio, Dia da Luta Antimanicomial, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná quer ecoar as vozes de muitas trabalhadoras e trabalhadores da saúde mental, usuárias e usuários dos serviços. Convidamos você a voltar a sonhar e colocar em prática os princípios que moveram a Reforma Psiquiátrica.
Solidariedade, cuidado, Direitos Humanos, dignidade, afeto, comunidade, território e alteridade são os nossos recursos para enfrentar o “normal”. Se não fizermos isso, o “mundo pós-pandemia” pode aprofundar brutalidades, violências e desigualdades sociais, nos levando a crises ainda mais agudas. Que usemos esse momento para nos mobilizarmos a pensar e criar estratégias para o fortalecimento das nossas redes de cuidado e afeto, e não para a construção de muros.
A Luta Antimanicomial já nos ensinou que não há saúde mental sem solidariedade e encontro. Que colegas da “linha de frente” da atenção psicossocial merecem muito mais que palmas, mas valorização efetiva e condições de trabalho e segurança. A atuação ético-política dessas(es) trabalhadoras(es) e a continuidade na prestação do serviço nos equipamentos demonstram que uma sociedade sem manicômios é possível, mesmo em épocas de pandemia.
São as reverberações e a potência dessas práticas antimanicomiais que promovem a articulação intersetorial e buscam a (re)inserção social, que possibilitam ao sujeito – com a sua loucura – algum cabimento (para circular) na cidade.
Se a pandemia não nos deixa dormir, não deixaremos de sonhar: convidamos você a destruir os muros, tanto os do manicômio quanto os que nos separam entre “pessoas que podem se manter protegidas” e outras que precisam arriscar suas vidas para manterem um mínimo de dignidade. Venceremos!