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18M 2024

Trancar não é cuidar. Saiba como a lógica manicomial se mantém viva na sociedade!

Texto produzido por: Juliana Cordeiro, com base em reportagem de Ellen Nemitz  a ser publicada na Revista Contato de Abril/Maio/Junho – 2024

Mais de duas décadas após a promulgação da Lei nº 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas em sofrimento mental dentro da compreensão dos direitos humanos e do cuidado em liberdade e territorializado, o paradigma manicomial se mantém vivo.

Os manicômios de hoje vêm disfarçados, reeditados em novas roupagens, mas ainda prejudicam as  conquistas da Reforma Psiquiátrica outrora celebradas.  Aqui, uma ressalva: a internação, por exemplo, pode ser utilizada, mesmo dentro do paradigma antimanicomial, em casos nos quais os “recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”, como preconiza a Lei nº 10.216/2001. Os leitos, contudo, devem ser territorializados, preferencialmente em CAPS III ou hospitais gerais. 

Na atualidade, o paradigma da luta antimanicomial reside na compreensão da existência do modus operandi dos manicômios transposto para a  lógica de privação de liberdade (tanto a liberdade física de ir e vir como de ser, crer e se expressar) e exclusão do convívio social e comunitário. A internação de longa permanência em instituições como, por exemplo, comunidades terapêuticas, clínicas de reabilitação e hospitais psiquiátricos, ganham constância. Outra faceta desse paradigma é o entendimento da subjetividade do que definimos ser uma lógica manicomial, que não está no equipamento, mas no paradigma biomédico.

Em entrevista à Ellen Nemitz, para a Revista Contato, a psicóloga Loraine Oltmann de Oliveira (CRP-08/20067), psicanalista antimanicomial, mestre em Saúde Coletiva e professora de Psicologia, explica que “a lógica manicomial é subjetiva”, sendo que o combate a ela passa pela reorganização de eventos e serviços, mas também pela maneira como a pessoa em sofrimento psíquico é percebida na sociedade.

“[Ernesto] Venturini, um teórico da desinstitucionalização, diz que o terceiro passo da luta antimanicomial é a promoção de valor social. Não basta fechar os manicômios se a sociedade não aceitar a circulação, por exemplo, de pessoas com diversidade de experiências. E, se o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) não coloca a pessoa no centro do processo e patologiza as experiências, também acaba reproduzindo essa lógica manicomial subjetiva”, destaca Loraine. 

Conforme explica a psicóloga e professora de Psicologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), com pós-doutorado pela Université Paris VII Denis Diderot, Maria Virginia Filomena Cremasco (CRP-08/16007), o paradigma manicomial vai além das paredes e das trancas de uma instituição de longa permanência. “Todas as instituições ou tratamentos, incluindo os que ‘trancam’ emocional e psiquicamente as pessoas, mesmo que sem paredes, são manicomiais”, afirma.

Neste sentido, Maria, que tem vasta experiência na área de traumatismos psíquicos, luto, prevenção do suicídio e psicopatologia psicanalítica, cita como exemplo a medicalização excessiva ou arbitrária, usada como forma de emudecer e entorpecer as pessoas. 

A Lei nº10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas em sofrimento mental dentro da compreensão dos direitos humanos e do cuidado em liberdade e territorializado, preconizou mudanças no modelo assistencial em saúde mental. 

A ciência comprova que a lógica de exclusão e segregação, além de práticas violentas como abstinência compulsória, trabalho forçado e falta de itens básicos contribuem para o agravamento do sofrimento e para a estigmatização das pessoas em sofrimento mental. “São práticas hierarquizadas de privação de direitos humanos, controle do tempo e do espaço subjetivos por dispositivos de poder”, explica a professora Maria Virginia Cremasco.

Endossando esta percepção, a psicóloga Loraine Oltmann, destaca que o princípio de privação de liberdade relaciona-se, não apenas a liberdade física de ir e vir, mas a liberdade de expressão de gênero e de crenças religiosas. Portanto, qualquer restrição a estas liberdades constituem importante violação dos direitos humanos. “Existe muita imposição [de crenças em determinadas instituições], e imposição é uma lógica manicomial, porque na luta antimanicomial a gente acredita na diversidade”, explica a psicóloga.

A Reforma Psiquiátrica promovida, entre outros marcos legais, pela Lei nº 10.216/2001 foi, sobretudo, na designação da adoção de tratamentos de recuperação da saúde mental ancorados em cuidados que não retirem as pessoas de seus territórios. “Saímos de uma concepção higienista e segregadora para uma concepção inclusiva, que não deve ter qualquer forma de discriminação, e para o cuidado emancipatório de autonomia, em liberdade”, afirma Maria Virginia Filomena Cremasco

Diga não ao manicômio disfarçado

Atualmente há avanços ocorrendo em pró da Reforma Psiquiátrica. A Portaria SAES/MS nº 1.509, publicada em fevereiro de 2024, por exemplo, retira as clínicas de reabilitação do rol da RAPS, a partir da revogação da Portaria SAES/MS nº 375/2022. Em contrapartida, as comunidades terapêuticas seguem integrando o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas.

Se os manicômios em suas mais variadas formas seguem à espreita, é preciso seguir dizendo não a eles. Neste sentido, a referência de cuidado para pessoas em sofrimento mental e uso abusivo de álcool e outras drogas segue sendo a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), ainda que demande atualização e avanços.

Nadya Pellizzari destaca que a defesa da saúde humanizada e do cuidado em liberdade passa por profissionais da Psicologia assumam o protagonismo do cuidado – não “se assustar”, como define Loraine Oltmann, com demandas mais complexas, encaminhando a outras categorias profissionais -, e também pela ocupação de espaços como sociedade civil organizada na elaboração e implementação de políticas públicas. 

Já no que se refere ao encaminhamento de pacientes, é preciso reforçar os caminhos que levam à RAPS. A porta de entrada para a rede são as Unidades Básicas de Saúde (UBSs), uma vez que fazem parte do território do sujeito, outra premissa do cuidado humanizado presente na reforma psiquiátrica, e permitem que o acolhimento seja feito onde a pessoa mantém seus laços. No entanto, o desfinanciamento e sucateamento do SUS contribui para que tanto as UBS como os NASFs, agora tratados como equipes multidisciplinares (EMulti’s), por exemplo, estejam aquém da demanda. 

É nesse contexto que entendemos que trancar não é cuidado. Precisamos fortalecer as políticas públicas que apoiem a permanência das pessoas em sofrimento mental em seus territórios, ao mesmo tempo educar a sociedade para aprender a conviver e respeitar os direitos desta parcela da população. Diga não ao manicômio disfarçado! 

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